Trata-se de um blog despretensioso de um jornalista dublê de sociólogo que deixou as grandes redações depois de ter acumulado décadas de experiência e, em função disso, acredita que tenha algo a transmitir a eventuais leitores... além de, claro, cumprir o dever de ofício de ajudar a "desafinar o coro dos contentes", como dizia Torquato Neto, e de "consolar os aflitos e afligir os consolados", como pregava Joseph Pulitzer.
O colapso do comunismo provocou uma confusão tão grande na cabeça de intelectuais europeus que tinham sido de esquerda que levou muitos deles a confundir o "adeus às armas" com a entrega delas ao arsenal do imperialismo. Alguns desses intelectuais começaram a defender que tiranias terceiro-mundistas deveriam ser derrubadas por meio de intervenções militares "benignas" do Ocidente, inclusive da Otan. Assim, a ação da aliança militar ocidental na ex-Iugoslávia e as invasões do Iraque e do Afeganistão por tropas americanas e britânicas se converteram em cruzadas "humanitárias" em defesa dos oprimidos da terra. Dessa forma, esses intelectuais revestiram interesses geopolíticos precisos com um manto ideológico pseudo-iluminista, mas na verdade bastante "panglossiano". No Iraque, tratava-se de defender os curdos e xiitas contra a tirania de Saddam Hussein (um ex-aliado dos americanos); na ex-Iugoslávia, proteger os bósnios e kossovares contra a ditadura de Slobodan Milosevic; no Afeganistão, defender o povo contra o Taliban e seu mentor, o terrorista Osama Bin Laden (outro ex-aliado de Washington).
Curiosamente, a maioria desses vira-casadas era francesa: Bernard Kouchner, que virou ministro de Nicolas Sarkozy, os "novos filósofos" André Glucksmann e Bernard-Hénry Levi, entre outros. O episódio nos remete à advertência de Julien Benda (1867-1957) em A traição dos intelectuais: "(eles) adotam as paixões políticas, integram-se ao coro de raças, de facções políticas e adotam as paixões nacionais. Adulam a vaidade dos povos e alimentam a arrogância com que cada um lança sua superioridade à face dos vizinhos".Felizmente, muitos outros intelectuais, como Paul Virilio, inscrevem-se na tradição de Benda:
Bombardeio da Otan sobre Belgrado, 1999
"Depois da queda do muro de Berlim, assistiu-se ao desenvolvimento de uma estranha 'defesa do gênero humano', popularizada na mídia por numerosos teletons e outros shows interativos (sociais, sanitários, ecológicos...). Na realidade, eles se destinavam a preparar os espíritos para grandes manobras humanitárias, muito menos pacíficas, como as de Kosovo. Manobras bem-sucedidas, como se pôde constatar na ocasião, "o nascimento de um imenso impulso de solidariedade em favor dos kosovares, apoiado pelas vedetes do showbiz, do cinema, das finanças..." "Aqui, o humanitário substitui o missionário do massacre colonial, ou o messianismo das últimas carnificinas mundiais, perturbando até pressupostos religiosos ocidentais, voando em socorro de populações muçulmanas que em princípio lhes são hostis. 'A fé começa pelo terror' - a divisa do teólogo é mais do que nunca atual - dado que a propaganda de guerra, como a propaganda fide (a propagação da fé religiosa da qual deriva), são as formas mais antigas de marketing publicitário.
Civis mortos por bombardeios da Otan na Sérvia, 1999
Por isso, seria conveniente, ao final do equilíbrio do terror, substituir o medo partilhado do fogo nuclear - o que chamei de fé nuclear - pela administração de múltiplos terrores íntimos e cotidianos. Portanto, ao lado de um terrorismo ordinário cada vez mais ativo, o público pôde ver, durante a última década do século XX, os anúncios publicitários repulsivos da Benetton ou ainda os grandes espetáculos que se fizeram em favor da luta contra a Aids, o câncer etc., coma exibição, diante das câmeras, de doentes terminais, de deficientes incuráveis... "Prevenir é curar!" Ameaças veladas, eugenia rasteira, terrores secretos, motivos de desconfiança, mal-estar, de ódios recíprocos. [...]
Diante da opinião pública, o exercício inédito do novo direito de intervenção nos assuntos internos de uma nação soberana sem dúvida teria sido impossível sem essa longa preparação psicológica, esse cinema total nascido durante a guerra fria [...]
Paul Virilio
Quando se pretende travar uma guerra em nome dos 'direitos do homem', uma guerra humanitária, renuncia-se ao direito de negociar a cessação das hostilidades com o adversário. Se o inimigo é um inimigo do gênero humano, não há outra escolha senão a desmesura de uma guerra total e de uma capitulação incondicional."
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