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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

IGNOMÍNIAS VATICANAS: A PORNOCRACIA



O papa João XII, o devasso
O período entre os anos 904 e 935 ficou conhecido, na Igreja Católica, como Pornocracia – denominação cunhada no século XVI pelo cardeal César Baronio – ou ainda Reinado das Prostitutas. Era alusão à influência de duas cortesãs, Teodora e Marozia, respectivamente mulher e filha do senador romano Teofilacto I, que tiveram grande influência sobre o Vaticano naquela época.

Um dos papas desse período é considerado um dos pontífices mais devassos e cruéis de todos os tempos: João XII, cujo nome verdadeiro era Octaviano e cujo pontificado durou apenas nove anos, de 955 a 964. Ele era filho ilegítimo do príncipe Alberico II de Spoleto e neto de Marozia, que por sua vez tinha sido amante do papa Sérgio III e mãe do papa João XI. Octaviano subiu ao trono com apenas 18 anos, escolhendo o nome de João XII. Seu pontificado faria corar os Bórgias, que reinariam séculos depois.

Ameaçado pelo rei da Itália, Berengário II, João XII se aliou ao rei alemão Oto I e fez dele imperador de um novo império, o Sacro Império Romano-Germânico, uma tentativa de recriar o antigo reino de Carlos Magno. Ambos selaram uma aliança pela qual o imperador confirmava as doações territoriais feitas à Igreja por Pepino, o Breve, em troca da reafirmação do Constitutio Lotharii, que estabelecia que nenhum papa seria consagrado até que sua eleição fosse aprovada pelo imperador. Mas o acordo durou enquanto Oto esteve em Roma, pois João XII o rompeu, buscando alianças com bizantinos, húngaros e príncipes italianos.

Algumas de suas torpezas, segundo o livro A História Secreta dos Papas, de Brenda Ralph Lewis:
“Dormiu com as prostitutas de seu pai e chegou ao cúmulo de manter relações com sua própria mãe. João XII também presenteava suas amantes com cálices de ouro, verdadeiras relíquias sagradas da igreja de São Pedro. Ele ainda cegou um cardeal e castrou outro, causando sua morte. Apoderava-se das oferendas feitas pelos peregrinos para apostar em jogos. [...]. As mulheres eram advertidas a se manterem longe de São João de Latrão, ou de qualquer outro lugar frequentado pelo papa, pois ele estava sempre à procura de novas conquistas. Após pouco tempo, os romanos estavam tão furiosos com tais atitudes que o papa começou a temer por sua vida. Sendo assim, resolveu saquear a igreja de São Pedro e fugir para Tívoli, a 27 quilômetros de Roma.
João XII estava causando tanto estrago ao papado e ao Vaticano, superando os crimes e pecados de seus antecessores, que um sínodo especial foi convocado. Todos os bispos italianos, 16 cardeais e outros prelados (alguns alemães), reuniram-se para decidir o que fazer com o devasso pontífice. Convocaram testemunhas e ouviram evidências sob juramento. Então, fizeram uma lista que adicionava ainda mais acusações às informações bizarras e assustadoras que já possuíam sobre João.
[...] (caso fosse deposto, o papa ameaçou excomungar todos os envolvidos no sínodo), [...].
O imperador Oto não se curvou à ameaça de excomunhão do papa e o depôs, colocando em seu lugar o papa Leão VIII sem que João soubesse. Quando retornou a Roma, em 963 D.C., sua vingança foi infinitamente pior que sua ameaça. João XII depôs o papa Leão e, ao invés da excomunhão, executou e mutilou todos os que fizeram parte do sínodo. Um bispo teve a pele arrancada, um cardeal teve o nariz e dois dedos cortados e a língua arrancada, e 63 membros do clero e da nobreza romana foram decapitados. Na noite de 14 de maio de 964, parece que todas as rezas implorando a morte de João XII foram ouvidas. Segundo a descrição do bispo João Crescêncio de Protus: ‘enquanto estava tendo relações sujas e ilícitas com uma matrona romana, o papa foi surpreendido pelo marido de sua amante em pleno ato. O enfurecido traído esmagou seu crânio com um martelo e, finalmente, entregou a indigna alma do papa João XII a Satã.’”


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

IGNOMÍNIAS VATICANAS: O JULGAMENTO DO CADÁVER DO PAPA FORMOSO


O Concílio Cadavério (1870), de Jean-Paul Laurens 
Não foi só no tempo dos Bórgias que o Vaticano foi uma esbórnia. No final do ano da graça de 896, o papa Estevão VI ordenou a exumação do cadáver do papa Formoso, morto nove meses antes, para julgá-lo perante um Concílio que passou à história como Sínodo Cadavérico ou Sínodo do Terror. O pontífice morto e mumificado foi vestido com as vestes papais e colocado no trono para ser julgado pelos bispos. A principal acusação era a de ter abandonado a diocese do Porto, em Portugal, para ocupar o trono de São Pedro. Na verdade, o julgamento ocorreu por determinação de Lamberto de Spoleto, rei da Itália e imperador do Sacro Império Romano Germânico, que havia sido deposto pelo rei alemão Arnulfo, com o apoio de Formoso.

Formoso foi declarado culpado e sua eleição como papa, anulada, bem como todos os seus atos pontifícios. Seu cadáver foi despojado das vestimentas sacras e lhe arrancaram os três dedos com os quais dava as bênçãos. Seu corpo foi reenterrado secretamente. Anos depois, Formoso foi reabilitado e seu restos mortais foram restituídos à Basílica de São Pedro. Mas, em 904, o papa Sérgio III anulou a reabilitação e ordenou um novo julgamento de Formoso, que foi novamente declarado culpado. Desta vez, os despojos foram jogados no rio Tibre. Em 1464, o cardeal Pietro Barbo, ao ser eleito papa, foi dissuadido de usar o nome de Formoso II; ficou sendo o papa Paulo II. 

O ÚLTIMO HUMANISTA


Com Stéphane Hessel, morto ontem aos 95 anos, desaparece um dos últimos humanistas de esquerda europeus. Há dois anos, ele surpreendeu o mundo ao lançar um manifesto, intitulado Indignai-vos, no qual aludia ao espírito da resistência e à consigna sartriana do engajamento pessoal para conclamar os cidadãos do mundo a protestarem contra a injustiça social, a xenofobia das políticas anti-imigratórias e a crise capitalista global. Esse livreto vendeu mais de quatro milhões de exemplares em 35 países e acompanhou os levantes populares nos países árabes, servindo também de bandeira aos movimentos de protestos dos indignados nos países ocidentais, da Espanha à Grécia e aos Estados Unidos, onde inspirou o movimento Occupy Wall Street. De origem judaica, Hessel era um incansável defensor da causa palestina.

Ele era filho de Franz Hessel e de sua esposa Helen Grund, que inspiraram, junto com o escritor Henri-Pierre Roche, a história de Jules et Jim, levada ao cinema pelo diretor François Truffaut. Nascido em Berlim, mas naturalizado francês desde 1937, Stéphane Kessel fugiu para Londres em 1941 para unir-se ao general Charles de Gaulle e à resistência contra os nazistas. Preso em 1944 pela Gestapo em Paris, foi deportado ao campo de Buchenwald e depois a Dora. Com o fim da guerra, participou na ONU da elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Trabalhou muitos anos como diplomata. Na França, juntou-se ao radical-socialista Méndes-France, que se opunha à guerra colonial na Argélia.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A POLÍTICA, SEM ILUSÕES

Daniel Day-Lewis como Abraham Lincoln
A grande surpresa do filme Lincoln é que Steven Spielberg, finalmente, parece ter atingido a maturidade política: nenhuma patriotada, como em O Resgate do Soldado Ryan; nenhuma pieguice, como em A Lista de Schindler; apenas a política comme il faut, digna de Maquiavel, Hobbes, mas também dos mestres do Iluminismo. Talvez por isso a academia tenha ignorado olimpicamente este grande filme, dando a estatuteta somente ao ator britânico Daniel Day-Lewis. E, cá nas terras do Benvirá, poucos se atreveram a fazer associações entre o que ocorreu nos EUA e o que aconteceu e acontece aqui.       

Lincoln dá aula de política

No Brasil, país onde a atividade parlamentar tem sido sufocada por um debate de tom moralista, o filme Lincoln, de Steven Spielberg, equivale a uma aula magna sobre o tema.

Paulo Moreira Leite, em seu blog

Debruçado na luta parlamentar do mais importante presidente dos Estados Unidos para aprovar a emenda constitucional que aboliu a escravidão, Spielberg não tem receio de mostrar a política como ela é – com seus ideais e suas ambições, compromissos sociais e visões diversas, mas também com seu jogo de bastidores, a troca de favores e benefícios que permitiram um avanço que mudou a história americana e abriu novas perspectivas de prosperidade mundialmente.

O filme não idealiza um momento épico com frases de efeito e lições pedantes. Pelo contrário. Ajuda a recordar que os homens travam seu combate político a partir de condições dadas. 

As condições reais da luta política nos EUA daquele período não tinham nada de um convento de freiras carmelitas. Para quem acredita que a política americana tem outra “cultura”, com um maior apego “à ética” e aos “valores morais”, o filme serve como um banho de realidade. 

O choque entre as verdades que o filme exibe e as crenças estabelecidas a respeito da história dos EUA é tão grande que ajuda a explicar porque Steven Spielberg perdeu o Oscar de Melhor Diretor. Sem exagerar na sociologia de botequim, meu palpite é que Lincoln exibe verdades inconvenientes demais para receber tamanha consagração.   

Lincoln se passa num momento histórico preciso, quando a derrota militar do Sul escravocrata está definida e é preciso negociar como o país irá sair de uma Guerra Civil que já fez 600 mil mortos. Com um roteiro bem estruturado, o filme mostra qual é o debate daquele momento. 

De um lado, com imenso apoio popular, mas isolado junto à elite americana e dentro de seu próprio governo, Lincoln está convencido de que é preciso aproveitar aquela conjuntura favorável como uma oportunidade única para abolir a escravidão. Em vez de reconstruir os velhos acordos de sempre, que permitiriam a manutenção do cativeiro, coloca a abolição como condição para a paz. Já seus adversários querem o contrário. Garantir a paz em primeiro lugar para, em posição mais confortável, negociar o destino dos escravos – com resultados previsíveis. 

Tommy Lee Jones, no papel de operador 
Entre os dois lados do conflito, há um Congresso onde Lincoln tem uma leve maioria, insuficiente para aprovar uma emenda constitucional. O enredo do filme consiste na luta de um presidente politicamente resoluto, socialmente progressista e quase um fanático religioso, que avança a passos largos pelos escombros de um pacto social inviável, mas protegido por homens de força, tradição e muito poder.

Spielberg faz justiça aos operadores políticos que se dedicam a buscar os votos que faltam. Não esconde seu papel decisivo em vários momentos, inclusive numa situação insólita, minutos antes da votação, quando uma pequena manobra conservadora pode colocar tudo a perder. 

Os operadores se mostram incansáveis no trabalho de convencer deputados em fim de mandato, que não conseguiram reeleger-se no último pleito – e, às  vésperas de tomar o rumo de casa, podem mudar de lado se ouvirem bons argumentos, em alguns casos, ou receberem uma boa oferta material, em outros, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Estas conversas e negociações ocupam o centro dramático do filme – e terão um peso decisivo no desfecho dos acontecimentos. Spielberg não foge da discussão, não embeleza nem esconde os fatos. Mostra como eles se passaram. 

Baseado numa obra respeitada pela pesquisa histórica, o filme exibe o presidente em reunião com seus operadores, discutindo técnicas de abordagem dos indecisos. Quando um dos presentes comenta que alguns votos vão sair mais caros, sugerindo que seria recomendável que se fizesse oferta em dinheiro, o presidente reage em silêncio – o filme deixa a cada um o direito de imaginar o que ele queria dizer com isso.

Numa das cenas finais, um veterano das campanhas abolicionistas chega a definir a abolição, explicitamente, como uma das mais belas e mais corruptas decisões do Congresso americano. 

Num país atingido por esforços sucessivos de criminalização da atividade política, Lincoln é um instrumento útil para se refletir como uma mudança desse vulto foi operada num dos regimes de democracia mais ampla daquele período. Antes e depois da abolição, a política norte-americana conviveu com esquemas variados de corrupção. 

A pergunta honesta e difícil que o filme evoca consiste em saber qual a melhor opção: manter o regime do cativeiro ou jogar as regras do jogo para fazer o país avançar? 

Fica claro que, sem o pacote de empregos, benefícios e favores distribuídos por seus operadores – e sem uma postura política irredutível de eliminar o cativeiro – Lincoln teria entrado para a História como um presidente de ótimas intenções e péssimos resultados. 

A luta contra o cativeiro não se resumiu aos bastidores de Washington nem à guerra de parlamentares republicanos e democráticos. Incluiu revoltas, fugas em massa e outros atos de insubordinação conduzidos pelos próprios escravos, que terminaram por colocar o fim do cativeiro na ordem do dia, como se vê em Django, que se passa na mesma época. Mas a abolição precisava de uma emenda constitucional e esta mudança só poderia ser feita pelos métodos usuais da política. 

Eu acho importante que Spielberg não tenha querido embelezar a história, fingindo que ela aconteceu de forma mais edificante. 

Ao exibir os fatos em sua verdade e feiúra, o filme em nada diminui a grandeza de uma mudança decisiva para o conjunto da humanidade. Spielberg mostra que Lincoln estava determinado a aproveitar cada brecha, cada oportunidade, para empurrar a roda da história. Esta é a lição do filme.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

UM FILME JINGOÍSTA


O ex-premiê Mossadegh, deposto e acusado de traição
 Argo, de Ben Affleck, ganhou,previsivelmente, a estatueta do Oscar de melhor filme de Hollywood deste ano. É a celebração da patriotada, do “jingoísmo” da pior espécie. Este foi um termo que aprendi com Mark Twain e Gore Vidal, mas que depois fiquei sabendo que ele foi cunhado em 1878 na Inglaterra por um tal de George Holyoake para designar o nacionalismo imperialista, desfraldado tanto por políticos tories (conservadores) quanto whigs (liberais) no século XIX. Curioso é que, logo no início, Argo parece fazer uma autocrítica do papel dos EUA e da CIA no golpe de 1953 no Irã, quando o premiê nacionalista Mossadegh foi derrubado do poder e substituído pelo xá Reza Pahlevi, serviçal de Washington. O resultado (blowback, segundo a expressão de Chalmers Johnson, que o filme, salvo engano, utiliza) os americanos colheriam 26 anos depois, quando a revolução iraniana derrubou o xá e implantou uma ditadura teocrática antiamericana. Depois do início que parecia autocrítico, Argo descamba para uma insuportável “jogação” de confete na CIA e demonização dos iranianos. Abaixo, a devastadora crítica feita por Harold Von Kursk, jornalista e diretor de cinema com nome de batalha de tanques da II Guerra.                 

Uma mentira conveniente: por que Argo é uma fraude histórica

O filme de Ben Affleck  inverte e distorce os fatos em sua tentativa frenética de apresentar um agente da CIA como heroi.

HAROLD VON KURSK (*)

O ex-embaixador Ken Taylor: protagonismo que o filme esquece
Durante o stalinismo, a história foi reescrita com freqüência em conformidade com a ortodoxia soviética. O protagonismo de Leon Trotsky, um dos principais arquitetos da Revolução Russa de 1917, foi minimizado ou apagado – até mesmo fotos de Trotsky em pé ao lado de Lênin, Stalin e outros membros do comitê central foram desajeitadamente retocadas para remover vestígios de sua existência.
Com “Argo”, um exercício desenfreado de ufanismo americano e imperialismo cultural, Ben Affleck cometeu uma forma similar de fraude. Essa é a opinião de Ken Taylor, o ex-embaixador canadense no Irã que realmente arquitetou a fuga dos seis reféns que ele e o primeiro-secretário da embaixada John Sheardown haviam escondido em suas casas, em situação de risco pessoal considerável.
“Foram três meses de preparação intensiva para a fuga”, explica Taylor. “Eu acho que o meu papel foi um pouco mais importante do que abrir e fechar a porta da frente da embaixada.” (Essas são essencialmente as imagens que comprovam a existência de Taylor no esquema criacionista de Argo.)

Affleck fez um filme de propaganda, uma auto-felação que inverte e distorce os fatos em sua tentativa frenética de apresentar o agente da CIA Tony Mendez (interpretado por ele mesmo) como a pessoa que trabalhou nos bastidores para realizar a retirada. O roteiro se baseia em documentos confidenciais da CIA, abertos ao público nos anos 80, que revelaram como Mendez desenvolveu um disfarce para os seis americanos – o de uma equipe de cinema que queria fazer um filme de ficção científica no Irã.Essa é a única parte do filme Affeck que possui alguma verdade. Praticamente todo o resto é uma mentira para satisfazer um público americano faminto de heróis.

“Tony Mendez ficou um dia e meio no Irã”, diz Ken Taylor. Em vez de apresentar um relato honesto de uma missão de resgate histórico, que o embaixador canadense tinha em grande parte planejado e que a CIA apenas ajudou a executar, Affleck se entrega a uma pirotecnia mal disfarçada que corrompe a verdade, dando primazia ao envolvimento dos EUA.

Jimmy Carter recebe os fugitivos na Casa Branca em 1979
Na sexta passada, a frustração de Taylor atingiu o limite. “Não haveria filme sem os canadenses. Abrigamos os seis sem que nos fosse solicitado”. Argo tem recebido vários prêmios nos últimos meses. Embora Affleck tenha sido supostamente “esnobado” por Hollywood ao não ser apontado na lista de melhor diretor no Oscar, seu longa recebeu várias indicações.
Além de “Argo” ter sido canonizado por ligas e premiações de diferentes setores nos meses passados, a questão mais ampla é como Affleck conseguiu enganar tanta gente em seu caminho para a glória da crítica, apesar das enormes distorções, invenções e fabricações que o filme comete para defender a CIA como um grupo de espiões inteligentes. Como a Grande Mentira tomou conta da imaginação limitada de Affleck?

“Argo” se situa no Irã, logo após a queda do Xá em 1979, quando a Guarda Revolucionária invadiu a embaixada americana. Seis funcionários conseguiram escapar e se esconderam por vários dias até que dois deles entraram na residência do casal Pat e Ken Taylor. Outros quatro foram para a casa de John Sheardown e de sua mulher Zena depois que o funcionário consular Robert Anders telefonou para o amigo Sheardown pedindo que ele o recebesse com seus três colegas fugitivos. “Por que você demorou tanto?”, foi a resposta do Sheardown.(Nada disso aparece na versão de Affleck. Sheardown sequer é mencionado.)

Os fugitivos passaram três meses no limbo das duas residências até que Taylor finalmente convenceu um reticente Departamento de Estado americano de que as autoridades iranianas estavam começando a farejar as casas.

Em seu zelo para contar a história do agente Tony Mendez, Affleck reescreveu boa parte da história e enxugou radicalmente o papel do embaixador. Não foi só ele que deixou clara sua discordância. 

Em uma entrevista para o jornalista Piers Morgan na semana passada, o ex-presidente americano, Jimmy Carter,  afirmou que “90% do plano foi dos canadenses”, mas o filme “dá crédito quase completo à CIA”.

Affleck defende sua selvageria autoral dizendo que uma TV canadense já havia feito um filme em 1981. De acordo com ele, “Argo” foi concebido para revelar o “papel secreto da CIA” – que basicamente se resume à criação de uma equipe de cinema a fim de enganar os funcionários da alfândega no aeroporto de Teerã. “Este filme mostra um maravilhoso espírito de colaboração e cooperação. É um grande cumprimento para o Canadá”, afirmou Affleck para mim.(Taylor tinha originalmente planejado que eles se passassem por engenheiros, apenas para ter sua ideia rejeitado pela CIA, que de alguma forma bizarra pensou que o approach hollywoodiano fazia mais sentido.)

Não havia absolutamente nenhuma necessidade de transformar o papel central do embaixador num “concierge” de luxo, que basicamente servia bebidas e canapés e seguia ordens. Taylor, que é interpretado pelo canadense Victor Garber, declarou que “‘Argo’ faz parecer que os canadenses estavam ali apenas a passeio”.

Affleck respondeu um tanto irritado: “Eu admiro Ken por seu papel no resgate. Estou surpreso que ele continue a ter problemas com o filme”. Em outubro, quando Argo estava sendo lançado na América do Norte, Affleck soube que Taylor estava começando a falar publicamente sobre sua decepção com seu trabalho. Ben Affleck organizou às pressas uma exibição e, depois de ouvir suas objeções, concordou em inserir um texto no início dos créditos: “O envolvimento da CIA complementou os esforços da embaixada canadense”.

A verdade é outra: Taylor planejou a fuga, enquanto a CIA e seus homens, Mendez à frente, simplesmente ajudaram a preparar o estratagema esquisito que serve como um contraponto cômico para o drama subjacente no Irã. Tony Mendez era uma espécie de assessor técnico. Mas, na narrativa falsificada de Affleck, todo o heroísmo é reservado para seu alter ego.

O agente da CIA no bazar em Teerã, algo completamente improvável
A história real por trás da fuga evoluiu de outra forma. Durante os quase três meses em que os seis fugitivos estiveram escondidos, o governo canadense em Ottawa preparou documentos oficiais – passaportes, carteiras de motorista, até mesmo alfinetes com a bandeira –, enviados a Teerã via mala diplomática.

O papel da CIA foi forjar os vistos de entrada – mas até isso eles conseguiram ferrar. Os selos falsos continham um erro catastrófico feito por um agente, que se equivocou na data de entrada. Um membro da embaixada canadense, Roger Lucey, apontou a burrada (ele podia ler farsi, em oposição ao apparatchik da CIA). Lucey passou várias horas debruçado sobre uma lupa, forjando os passaportes e torcendo para que seu trabalho penoso passasse despercebido pelas autoridades.

Outro ato flagrante de omissão de Argo é que a CIA contou com Taylor para fornecer informações sobre o caos da tomada de reféns em curso na embaixada dos EUA, onde 52 americanos ainda estavam sendo mantidos em cativeiro pela Guarda Revolucionária. Taylor pediu a um sargento canadense, Jim Edwards, que saísse e monitorasse, com seu time, a área ao redor da embaixada dos EUA durante várias semanas, para uma possível missão dos Estados Unidos. Edwards foi detido e interrogado por cinco horas, até ser liberado por volta da uma da manhã. “Nós bebemos um monte de uísque juntos”, Taylor recordou. “Ele poderia facilmente ter sido preso como um espião.”

Mark Lijek, um dos dois americanos que passaram 79 dias na casa de Sheardown, confirma o relato. “Toda a embaixada canadense passou a se concentrar em nossa sobrevivência e eventual saída, o que é praticamente sem precedentes na história diplomática”, Lijek explicou. “É triste que Argo ignore tudo isso.”

Argo também inventa três cenas-chaves que nunca aconteceram. A primeira é quando Affleck-Mendez leva os fugitivos a um local e atravessa um bazar iraniano. “Isso teria sido suicida,” diz Lijek. A segunda instância da imaginação fantasiosa de Affleck é a sequencia do aeroporto, no final, em que a Guarda Revolucionária interroga o grupo – o que simplesmente nunca aconteceu.
Finalmente, “Argo” inventa o clímax em que um jipe militar cheio de soldados armados persegue o avião na pista. “É tudo ficção”, conta Taylor. “Foi bom ir ao aeroporto – exceto por nossos nervos”.

A fuga no aeroporto, outra cena que não aconteceu como o filme relata
Affleck é um homem cujo coração está normalmente no lugar certo. Ele apoia causas liberais, defende a liberdade de expressão, é delicado nas entrevistas e freqüentemente crítico da direita republicana. Mas ele ou é terrivelmente ingênuo ou estúpido quando se trata de sua leitura do registro histórico. 

Ele achou que seu bolo fofo de entretenimento lhe dava a “licença artística” para cortar, ajustar e mentir. Em uma entrevista ao Hollywood Reporter, afirmou que era um ex-estudante de assuntos do Oriente Médio da Universidade de Vermont e que escreveu um artigo sobre a revolução iraniana.

Mas, como um crítico freqüente da política externa americana e da administração Bush, por que Affleck decidiu cantar os louvores da CIA, que projetou a queda de Mossadegh e a subsequente substituição pelo Xá?

Ele deveria checar os fatos. Podemos perdoar a adição de um jipe ​​carregado de metralhadoras perseguindo um jato comercial. Podemos perdoar a adição de um tour suicida em um bazar lotado. Podemos até perdoar “Argo” por fazer John Sheardown desaparecer. Mas não há como desculpar uma visão manipuladora e irremediavelmente distorcida da realidade para maquiar uma peça de propaganda.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

DO SPLEEN ÀS TRINCHEIRAS

La cità che sale (1910), de Umberto Boccioni

Outro pensador pouco citado, mas um analista arguto do mal-estar ocidental, George Steiner (1929), que, há mais de 40 anos, escreveu O Castelo do Barba Azul. Trechos do livro:   

“O colapso das esperanças revolucionárias após 1815, a brutal desaceleração do tempo e das expectativas radicais deixaram um reservatório de energias turbulentas, não realizadas. A geração romântica tinha inveja de seus pais. Os “anti-heróis”, os dândis assolados pelo spleen (melancolia) no mundo de Sthendal, Musset, Byron e Púshkin movimentam-se pela cidade burguesa como condottieri desempregados. Ou, pior, como condottieri aposentados antes da primeira batalha, com uma pensão miserável. Mais ainda, a própria cidade, outrora festiva com os sinos da revolução, tinha-se tornado uma prisão. 

A conjunção do extermo dinamismo técnico-econômico com larga medida de imobilismo social imposto, conjunção sobre a qual foi construído um século de civilização liberal burguesa, preparou uma mistura explosiva. Provocou na vida da arte e da inteligência certas respostas específicas e, no fim das contas, destrutivas. Estas, segundo me parece, constituem o significado do romantismo. É a partir delas que crescerá a nostalgia pelo desastre.     
          
" [...] a descrição que Freud faz (em O mal-estar da civilização) das tensões que as maneiras civilizadas impõem aos instintos humanos centrais e não realizados continua válida. Assim como as insinuações, abundantes na literatura psicanalítica (que é, por si mesma, pós-darwiniana), de que há nas interrelações humanas uma inelutável pulsão à guerra, a uma afirmação suprema da identidade à custa da destruição mútua [...]. 

“[...] por volta de 1900, havia uma propensão terrível, uma sede mesmo, por aquilo que Yeats viria a chamar ‘maré turva de sangue’. Exteriormente serena e brilhante, La BelleÉpoque estava demasiado madura, de um modo ameaçador. Sob a superfície do jardim, compulsões anárquicas estavam chegando a um ponto crítico. Notem-se as imagens proféticas de perigo subterrâneo, de influências destrutivas prontas a levantar-se dos esgotos e dos porões que atormentavam a imaginação literária desde o tempo de Poe e do Les misérables até o Princess Casamassima de Henry James. A corrida armamentista e a crescente febre do nacionalismo europeu eram, acho, apenas sintomas desse mal-estar intrínseco. O intelecto e o sentimento foram, literalmente, fascinados pela perspectiva de um fogo purificador."

OS MITOS E A ORIGEM DA PROPAGANDA POLÍTICA

Jean-Marie Domenach

Um trecho do livro seminal La Propagande Politique (1950), de Jean-Marie Domenach (1922-1997), escritor francês católico de esquerda que lutou contra os nazistas na Resistência. Ele dirigiu a revista Esprit, fundada por Emmnuel Mounier, porta-voz do chamado Movimento Personalista. Durante a Guerra Civil da Argélia, a revista criticou duramente o uso da tortura pelo Exército francês. Hoje Domenach está quase esquecido.

“A propaganda política moderna não é simplesmente o uso pervertido das técnicas de difusão destinadas às massas. Ela precedeu a invenção da maior parte dessas técnicas: seu aparecimento coincide com o dos grandes mitos que arrastam um povo e o galvanizam em torno de uma visão comum do futuro.

No século XVIII, na França, desabrochou o mito revolucionário; depois, na metade do XIX, verificou-se a cristalização, lenta e perturbadora, do mito socialista e pro1etário. O primeiro, depois de ter explodido, tal qual uma série de bombas de efeito retardado nos países europeus, progressivamente perdeu sua virulência até o fim do século XIX, quando ainda animava a vivência da III República; antes de passar ao estágio de culto histórico, chegou a conhecer o rejuvenescimento com a questão Dreyfus; quanto ao
segundo, depois de haver suscitado grandes lutas civis, a Comuna em junho de 1848 e inúmeras greves, foi empolgado pelo marxismo e, mais tarde, pelo leninismo; hoje movimenta massas gigantescas, no Extremo Oriente.

A força com que esses dois grandes mitos revolucionários se espraiaram pelo mundo serviu de ligação aos pensadores políticos. Compreenderam a ajuda que poderia advir dessas representações motrizes, cujo conteúdo, a um só tempo ideológico e sentimental, atua diretamente na alma das multidões. Georges Sorel, antes de qualquer outro, discerniu perfeitamente a insipidez que ameaçava uma social-democracia que se tornara verbalista e parlamentar, propondo, como remédio, que se recorresse a mitos violentos, capazes de aliciar os trabalhadores na Revolução: “Enquanto o socialismo permanece uma doutrina inteiramente exposta em palavras, é muito fácil desviá-lo no sentido de um meio-termo; essa transformação, porém, é manifestamente impossível quando se introduz o mito da greve geral, que comporta uma revolução absoluta”, disse Sorel. Foram as reflexões de Sorel que, exploradas em um sentido inteiramente diverso por Mussolini, o impeliram a construir o fascismo na base de mitos nacionais de outrora (grandeza da antiga Roma) e de mitos conquistadores do futuro (exaltação da força, da guerra e da vocação imperial da Itália). Doravante, a revivescência dos mitos do passado e a criação dos mitos do futuro caracterizam as propagandas fascistas, seja a de Hitler, de Mussolini ou de Franco. Ao passo que, na Itália ou na Espanha, os mitos assim fabricados permanecem argumentos retóricos e conseguem inflamar apenas uma minoria de fanáticos, logram profundo eco nas grandes massas alemãs.

Nessa primeira metade do século XX, discerne-se por toda parte na Europa uma reação contra o abuso do pensamento racionalista e liberal do século XVIII francês. Em verdade, tal pensamento tornou-se o apanágio de uma elite. Entram em cena massas que não se reconhecem na sociedade libera1, sem os quadros naturais nem os valores comuns, que a burguesia capitalista oferece, e ainda menos no funcionamento descolorido e complexo do regime parlamentar. O tédio não é apenas a chave stendhaliana de uma psicologia individual; é decisivo fator da psicologia coletiva moderna. As massas aborrecem-se. Isso é evidente na França do século XIX, depois da queda de Napoleão. O segundo Napoleão aposta e ganha nesta carta. Ao sonho de glória, contudo, soma-se o sonho de felicidade das massas sofredoras, e o sonho de comunidade das massas alienadas. O socialismo apresenta-se como “ideal”, como “mística”, antes de ser filosofia e, com Marx, doutrina de ação; assim permanecerá, em uma proporção considerável. Gustave Le Bon sublinhou “a que ponto a imprecisão das doutrinas socialistas é um dos elementos de seu êxito”. Dessa esperança de libertação, dessa ânsia de fraternidade sempre vítima de decepções e, por vezes, afogada em sangue, os fascismos vão-se apoderar, desviando-as em proveito próprio. Um mundo privado de alegria é entregue ao império dos mitos A função desses é de aproximar o desejo obscuro, informulado, de sua satisfação: entre aquele e essa não subsiste mais que diminuto intervalo que a luta e o sacrifício preencherão; essa distância já fora abolida pelas imagens, pelos cantos, pelos discursos, pelas bandeiras desfraldadas e desfiles ameaçadores: o alvo está quase ao alcance de nossas mãos e nos regozijamos de antemão pela felicidade que nos proporciona; milhões de homens “vivem” a terra prometida graças a essa exaltação poética da multidão, que decuplica a fé, antecipando sem dores o futuro. O mito é uma participação antecipada, que preenche um momento e reaviva o desejo de felicidade e o instinto de potência; o mito é indissoluvelmente promessa e comunhão.”

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

MONTE CASTELLO: A HORA E A VEZ DOS PRACINHAS


Hoje se completam 68 anos da batalha de Monte Castello, primeira grande vitória dos pracinhas sobre os soldados da Wehrmacht no Norte da Itália. A FEB embarcou sob críticas, aqui e no exterior, pois ninguém acreditava que uma tropa formada por “capiaus” de um país tropical pudesse fazer frente aos exércitos do III Reich. Era mais fácil uma cobra fumar, diziam. Pois a cobra fumou! E o incrível é que, mesmo depois da consagração militar nos campos de batalha, nosso “complexo de vira-latas” continuou tentando desmoralizar as façanhas dos pracinhas na Itália, como o execrável livro que o William Waack escreveu sobre a FEB. Já o establishment militar praticamente ignora a epopéia da FEB contra o nazi-fascismo, mas faz questão de associar a tropa de facínoras da ditadura à herança das Forças Armadas. Adaptando Brecht, infeliz o povo que esquece seus heróis e acoberta criminosos de Estado. Aqui, um texto sobre Monte Castello.      
     

A Força Expedicionária Brasileira conquistou Monte Castello enfrentando os alemães em cinco confrontos

Luis Felipe da Silva Neves
Em julho de 1944, desembarcaram em Nápoles os primeiros soldados da Força Expedicionária Brasileira, a única tropa latino-americana que lutou na Europa. Se a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial em 1942 deveu-se ao clamor popular causado pelo afundamento de dezenas de navios mercantes, a presença dos pracinhas na Itália atendia a três interesses do governo ditatorial da época: elevar o país no cenário internacional do pós-guerra, dar treino e armas aos militares e distrair a opinião pública, desgastada com uma década de regime de exceção.
Poucos locais têm um significado tão especial na história das Forças Armadas brasileiras quanto o Monte Castello. Situado no Apenino Tosco-Emiliano, cerca de 50 quilômetros ao norte de Florença e a 1.000 metros acima do mar, não se trata de uma montanha destacada na paisagem, como muitos tendem a imaginar, e sim um morro com contornos difusos, rodeado por outros maiores. A FEB atacou o lugar sem sucesso por quatro vezes, três em novembro e uma em dezembro de 1944, até que a vitória sorriu após o quinto assalto, em 21 de fevereiro de 1945.
Nenhum dos cinco ataques isolados pode ser considerado uma batalha; aliás, não houve batalhas na frente italiana após Cassino, em maio de 1944. A tomada de Monte Castello isoladamente pouco valia; era necessário que outros montes em volta, como Belvedere, Mazzancana e Torracia, também fossem conquistados. A importância do lugar residia no fato de que, com os alemães e seus canhões instalados nas cristas desses montes, era impossível para os aliados prosseguir o avanço para o norte.
Se normalmente já há vantagens da defesa sobre o ataque na guerra moderna, isso se torna ainda mais verdade em um terreno montanhoso. Foi possível aos alemães defender eficazmente suas posições sem empregar grandes contingentes. Calcula-se que havia em Monte Castello cerca de 350 “tedescos” – os alemães na Itália, de acordo com os brasileiros – espalhados por pequenos abrigos camuflados e resistentes, cuidadosamente dispostos para maximizar o efeito do fogo. Uma só metralhadora MG 42, a melhor da guerra, podia varrer uma larga faixa de terreno a várias centenas de metros com uma quantidade de tiros assustadora – e havia dezenas delas –, além de morteiros e da artilharia situada mais atrás.
Quanto aos soldados alemães que os pracinhas enfrentaram, há entre os brasileiros quem goste desqualificá-los, pintando-os como “velhos” cansados. É certo que a frente italiana era de quarta importância para a Alemanha, – e é natural que lá não fossem usadas suas tropas de melhor qualidade, mas é um equívoco achar que o alemão lutou mal na Itália – ou em qualquer outro lugar.  Na verdade, o exército da Wehrmacht – Forças Armadas do III Reich – era o melhor do mundo. O soldado alemão comum recebia melhor treinamento do que os oficiais anglo-americanos, o sistema de seleção e preparo dos oficiais não comissionados era inigualável e o sistema operacional tático era mais flexível e eficaz – no fim das contas, o alemão era praticamente imbatível quando lutava em condições parelhas. O fato de muitos serem veteranos exauridos da frente leste, a pior frente de batalha da história, só podia prejudicar as coisas para os adversários, pois o valor da experiência é fundamental, e nada como o clima italiano, considerado ameno pelos alemães, para uma pronta recuperação, sobretudo para quem veio das estepes geladas russas.
Nos ataques iniciais de 24 e 25 de novembro, a FEB fez parte de uma força maior sob comando americano, a Task Force 45. Foram operações mal planejadas e executadas de modo ainda pior. No dia 25, por exemplo, um batalhão americano recuou sem avisar, expondo assim o flanco esquerdo do III Batalhão do 6º Regimento (Sampaio) ao fogo cruzado alemão, causando várias baixas. Uma vez que os soldados brasileiros nem deveriam ter sido usados, pois estavam em ação havia quase dois meses sem descanso, pode-se imaginar como foi difícil suportar essa situação sem deixar o moral despencar.
A partir do terceiro ataque, no dia 29 de novembro, a FEB estava por si, mas continuou a empregar táticas erradas, não contando com apoio aéreo e, acima de tudo, atacando frontalmente. As baixas foram tais que um capitão, comandante de uma companhia, teve de ser substituído por um tenente no calor da luta. O moral, já claudicante, sofreu novo revés. O mito da inexpugnabilidade de Monte Castello começava a nascer entre os pracinhas.
O ataque em dezembro foi o mais desastroso. A fim de garantir surpresa, algo difícil com os alemães situados em posições mais altas e vendo tudo, a artilharia foi dispensada e o mau tempo impediu o uso de aviões. Teimosamente, o comando da FEB insistiu em repetir um ataque frontal. Mesmo contra todas as adversidades, os brasileiros avançaram sem se importar com as baixas, chegando mesmo ao centro das defesas alemãs, mas tanta coragem não bastou, e quem não morreu ou não foi capturado recuou.
Graças a intenso treinamento durante as longas semanas de inverno e a uma preparação mais bem engendrada, a FEB partiu para o derradeiro ataque a Castello em 21 de fevereiro, com suporte da artilharia, de aviões, e com a 10ª Divisão de Montanha do U.S.Army avançando ao lado sobre Belvedere. Sob pesado fogo dos canhões inimigos, o monte foi enfim tomado no fim do dia, enquanto os alemães se retiravam ordenadamente. A força brasileira tinha alcançado a maturidade.
Com a vitória, a FEB respondeu com sangue e bravura à provocativa pergunta feita após o fracassado ataque de dezembro pelo general americano W. Crittenberger, comandante do IV Corpo de Exército, do qual a FEB fazia parte, sobre se a tropa brasileira tinha ou não capacidade ofensiva.
Luis Felipe da Silva Neves é professor da Universidade Federal Fluminense e autor da dissertação “A Força Expedicionária Brasileira – uma perspectiva histórica” (UFRJ, 1992).



quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

BOTA NA LAMA


Pier Luigi Bersani, do Partido Democrático, ex-comunista
Vejam vocês: nas eleições de domingo próximo, o Partido Democrático (PD, ex-Partido Comunista Italiano) de Pier Luigi Bersani deve sair vitorioso, numa clara rejeição do eleitorado às políticas de austeridade do governo tecnocrata Mario Monti, imposto ao país pela troika (Banco Mundial, Banco Central Europeu e FMI). Mas será que essa rejeição será ouvida? Se o PD ganhar, ele provavelmente não terá, sozinho, a maioria necessária para formar um governo. E, aí, adivinhem quem deverá apoiá-lo? Mario Monti, o queridinho dos mercados, o cão de guarda da política de austeridade que garante o lucro do setor financeiro à custa dos empregos de milhões de cidadãos, como acontece na maioria dos países da Europa. É que o PD, embora coligado a forças de esquerda, é hoje mais centrista do que a antiga Democracia Cristã, ou seja, defende o mesmo receituário neoliberal para sair da crise. Mas, se se coligar com Monti, os ex-comunistas terão problemas com os sindicatos. De qualquer forma, é irônico que, num país cujo Partido Comunista foi o maior do Ocidente, a esquerda tenha chegado a ponto de não ter representação no Parlamento.

Silvio Berlusconi, o fanfarrão que encanta a Itália
O segundo colocado é o fanfarrão Silvio Berlusconi, o corrupto e autoritário megaempresário que criou leis para evitar ir para a cadeia, tem relações com a Máfia e controla quase toda a mídia do país. Que um sujeito como esse tenha ainda tanta intenção de voto – podendo até ganhar – revela o grau de deterioração da democracia italiana.

Beppe Grillo, o palhaço qualunquista
E o terceiro colocado é um palhaço – comediante, se quiserem –, Beppe Grillo, que, como Marina Silva e Gilberto Kassab, diz que não é de esquerda nem de direita. É uma mistura de Silvio Santos com Fernando Collor de Melo, ou seja, um populista autoritário; na linguagem política italiana, um “qualunquista”, movimento que surgiu depois da II Guerra e que desdenhava dos partidos e das instituições da democracia. O partido desse sujeito – chamado “Cinco Estrelas” – terá mais votos que Mario Monti, prevêem as pesquisas. A ascensão de Berlusconi e de Grillo e a possibilidade de um novo governo pró-austeridade, apesar de a maioria querer outra coisa – tudo isso mostra que a crise da representação não é um apanágio dos chamados países em desenvolvimento, o antigo Terceiro Mundo.   

MANIQUEÍSMO DE PICADEIRO


A visita da blogueira dissidente cubana Yoani Sánchez ao Brasil nos mergulhou outra vez nas trevas da Guerra Fria. Ou, seria melhor dizer, num maniqueísmo de picadeiro. De um lado, a direita hidrófoba, tromboteando na grande mídia a perseguição que Yoani estaria sofrendo sob o regime dos irmãos Castro e o suposto apoio de amplos setores da esquerda tupiniquim a essa perseguição. A Veja denunciou inclusive que um esquema de difamação contra ela teria sido promovido pela embaixada de Cuba no Brasil, com o apoio de setores do PT. Bem, os conservadores denunciam a censura da ditadura cubana, mas querem interditar protestos contra Yaoni aqui no Brasil. Muito democrático, não é? De outro lado, como numa imagem invertida, uma esquerda sectária e stalinista vê em toda e qualquer crítica a Cuba o dedo do imperialismo norte-americano e de seus lacaios e joga todo dissidente cubano na vala comum dos gusanos contrarrevolucionários de Miami. Essa “esquerda” tentou impedir a blogueira de fazer críticas ao castrismo aqui no Brasil. O mesmo vezo autoritário e messiânico, só que com sinal trocado, por supuesto.
  
Rosa de Luxemburgo: o direito à dissidência
Trata-se de uma lógica perversa, que ganha força graças à peculiar fase de “espetacularização da política” – apud Guy Debord – que estamos vivendo. Não sejamos panglossianos. Nem Yaoni é uma defensora desinteressada das liberdades democráticas e nem Cuba representa o paraíso socialista sobre a Terra. A única coisa certa, numa democracia – e aprendemos isso a duras penas – é a garantia da liberdade de expressão para todos os setores, e não apenas a liberdade da grande mídia. Yoani pode falar o que quiser, mas quem se opõe a ela tem o direito de protestar, sem constrangê-la, é claro. Como dizia a insuspeita Rosa Luxemburgo, a liberdade, afinal, é sempre a liberdade de quem pensa diferente de nós.

Ademais, ninguém é inocente nessa história. Se a vetusta ditadura castrista e seus epígonos brasileiros querem calar a blogueira, por outro lado Yoani Sánchez é incensada e bem paga por propagar uma visão de mundo que interessa aos EUA e aos conservadores de todos os matizes. Essa visão de mundo condena o stalinismo dos irmãos Castro, mas se cala sobre o bloqueio norte-americano a Cuba. O texto abaixo, do La Jornada, mostra quem está por trás de tanta badalação. E, convenhamos: o melhor argumento contra a propaganda não é a censura, mas o esclarecimento.
        
Quem está por trás de Yoani Sánchez?

Salim Lamrani (*), no La Jornada, publicado no 

blog Pragmatismo político

Yoani Sánchez, famosa blogueira cubana, é uma personagem peculiar no universo da dissidência cubana. Nenhum opositor foi beneficiado a exposição midiática tão massiva, nem de um reconhecimento internacional semelhante em tão pouco tempo. Após emigrar para a Suíça em 2002, ela decidiu retornar a Cuba dois anos depois, em 2004. Em 2007, integrou o universo de opositores a Cuba ao criar seu blog “Generación Y”, e se torna uma crítica feroz ao governo de Havana.

Nunca um dissidente cubano – muito menos no mundo – conseguiu tantos prêmios internacionais em tão pouco tempo e com uma característica particular: deram a Yoani Sánchez dinheiro suficiente para viver tranquilamente em Cuba até o resto de sua vida. Na realidade, a blogueira tem retribuído à altura os 250 mil euros que recebeu, o que equivale a mais de 20 anos do salário mínimo em um país como a França, a quinta potência mundial. O salário mínimo em Cuba é de 420 pesos, o equivalente a 18 dólares ou 14 euros. Isto é, Yoani Sánchez recebeu 1.488 anos de salários mínimos cubanos por sua atividade opositora.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

MARIN, O DEDO DURO


Trechos da matéria do repórter investigativo britânico Andrew Jennings, que relembra os pecados do atual presidente da CBF, José Maria Marin, durante a ditadura militar. 

Por Andrew Jennings

São Paulo, Setembro de 1975: Claudio Marques era um provocador barato, um porta-voz dos torturadores que entrava nos lares da cidade pela TV.
“Conheci o Claudio pessoalmente, como jornalista, e ele me parecia um canalha. Acho que ele não era mais do que um oportunista que viu na ditadura uma forma de obter favores, patrocínio para sua coluna, seu programa de TV, um emprego, qualquer coisa”, lembra o jornalista Nemércio Nogueira, amigo e colega de Vlado na BBC.
Claudio fazia tudo que podia para conseguir a gratidão dos generais. Fleury queria vermelhos? Claudio proveria. Ele começou a escrever sua “Coluna Um”.
“Viram o noticiário de ontem na TV Cultura? Falando do esquerdista vietnamita Ho Chi Min?”
Não interessava que a materia tivesse vindo da BBC Visnews, ali estava a prova de que o canal estatal tinha sido tomado pelos vermelhos! E o governo vai ficar parado assistindo a isso?
Isso foi na primeira semana de setembro. Dois dias depois, a coluna de Claudio espalharia o veneno pela segunda vez.
As prisões dos comunistas suspeitos começou na última semana de setembro. Amarrados na Cadeira de Dragão, com eletrodos no nariz e no pênis, e afogados em baldes de água, eles estavam gritando nomes.
A campanha se mudou para o Congresso.
* * * * * * *
José Maria Marin e o seu padrinho, Paulo Maluf
São Paulo, 9 de outubro, 1975: O fantoche escolhido para fazer o aquecimento era o deputado Wadih Helu, outra criatura da ditadura. Ele tomou assento nas fileiras da Arena enquanto providenciava lugares discretos para os interrogatórios dos torturadores de Fleury.
Helu trazia “denúncias graves” a seus colegas na Assembléia.
Veja só: o governo tinha acabado de inaugurar um novo sistema de esgoto e quem assiste à TV Cultura não ficou sabendo disso. Eles não mandaram equipe! (controle sua vontade de rir, o fim da história é funesto).
Fingindo tremer de raiva, o deputado Helu prosseguiu: “A ausência da equipe da TV Cultura nas inaugurações do governo não é novidade para quem tem acompanhado a coluna de Cláudio Marques, denunciando a infiltração de elementos comunistas na TV do estado”.
Helu subiu o tom: “Eles só mostram notícias negativas, nada de positivo. Estão fazendo proselitismo do comunismo subserviente, tornando-se, como diz Claudio Marques, ‘a TV Cultura vietnamita de São Paulo’, usando  dinheiro do povo para prestar um desserviço ao governo e à Pátria”.
Helu sentou. Era a vez do deputado arenista José Maria Marin.
“Acho estranho que apesar da imprensa estar levantando o problema há tempos, pedindo providências aos órgãos competentes em relação ao que está acontecendo no canal 2, não tenha acontecido nada até agora”.
“Não é só uma questão daquilo que eles publicam mas o desconforto que provocam não apenas aqui, nem apenas nos círculos políticos, mas que se comenta em quase todos os lares paulistas”.
Alguma coisa tinha que ser feita.
“Gostaria de chamar a atenção da Secretaria de Cultura de São Paulo, do governador do Estado que devem definitivamente apurar as denúncias publicadas na imprensa de São Paulo, em especial, pelo corajoso jornalista Claudio Marques”.
“Faço um apelo ao governador do Estado: ou jornalista está errado ou está certo. Essa omissão por parte da Secretaria do Estado e do governador não pode persistir. Mais do que nunca  é necessário agir para que a tranquilidade reine novamente nesta Casa e, principalmente, nos lares de São Paulo”.
Sérgio Fleury e seus gorilas agora tinham carta branca para trabalhar. Essa era a mensagem do discurso de Marin. O relógio estava correndo depressa no sentido de abreviar a vida de Herzog.
“Naquele tempo a gente vivia no olho do furacão”, lembra o amigo e colega de Vlado, Paulo Markun. Oito dias depois, Markun foi preso. “Fui torturado e confessei que era membro do Partido Comunista”, disse.
Na noite de 24 de outubro, 15 dias depois dos discursos raivosos de Helu e Marin na Assembléia, os policiais chegaram na TV Cultura querendo levar Vlado. Os colegas de redação argumentaram que ele estava fechando o jornal da noite e que, se o levassem naquele momento, o programa não iria ao ar. Vlado se ofereceu para ir voluntariamente à polícia no dia seguinte.
Vlado foi incauto? Era ingênuo? Um colega e amigo dele me disse: “Minha interpretação é que, morando em endereço bem conhecido, sendo um jornalista renomado, com um cargo alto na TV estatal, e sem envolvimento na luta armada, ele não tinha muito o que temer”.

São Paulo, 7 de outubro de 1976: Um ano e dois dias depois de “salvar” a TV Cultura – e incitado a prisão que terminou com o assassinato de Herzog – Marin mais uma vez discursava na Assembléia Legislativa de São Paulo.
E novamente, o deputado reclamava. Não sobre os vermelhos. Dessa vez, estava aborrecido com a falta de reconhecimento público a Sérgio Fleury, o delegado. Um homem que recentemente tinha emboscado e matado os guerrilheiros corajosos o bastante para enfrentar a ditadura.
Isso foi tirado da gravação oficial do discurso de Marin: “Aqueles que o conhecem de perto, sabem que ele é um chefe de família exemplar, mas, mais do que tudo, ele cumpre seus deveres como policial da maneira mais louvável possível”.
“Não conseguimos entender como um policial desse calibre, um homem que dedicou sua vida inteiramente ao combate do crime, um homem que muitas vezes pôs em risco não apenas a sua vida mas a de seus familiares não está recebendo o reconhecimento que merece”.
“Conhecendo seu caráter como eu conheço, não há dúvida de que Sérgio Fleury ama sua profissão; de que Sergio Fleury se dedica ao máximo, sem medir esforços nem sacrifícios para honrar não apenas a polícia de São Paulo, mas acima de tudo seu título de delegado de polícia. Ele deveria ser uma fonte de orgulho para a população de nossa cidade”.
“Por isso, senhor relator, na certeza de refletir o pensamento dos moradores de São Paulo, queremos expressar o orgulho que sentimos por ter em nossa polícia o delegado Sérgio Fleury”.