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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

CONTRA O JÚBILO COLETIVO OBRIGATÓRIO

Um belo texto do jovem Antonio Gramsci, fundador, teórico e dirigente do Partido Comunista Italiano, sobre a hipocrisia desta época do ano. Peguei a ideia do blog do Marco Aurélio Nogueira:

Odeio o Ano Novo



Antonio Gramsci


Avanti! , 1º de Janeiro de 1916.


Toda manhã, ao acordar mais uma vez sob o manto do céu, sinto que para mim é o primeiro dia do ano.


Por isso odeio estes anos novos a prazo fixo, que transformam a vida e o espírito humano em uma empresa comercial, com sua prestação de contas, seu balanço e suas previsões para a nova gestão. Eles fazem com que se perca o sentido de continuidade da vida e do espírito. Termina-se por acreditar a sério que entre um ano e outro exista uma solução de continuidade e comece uma nova história; fazem-se promessas e projetos, as pessoas se arrependem dos erros cometidos etc. É um equívoco geral que afeta a todas as datas.

Dizem que a cronologia é a ossatura da história. Pode-se admitir que sim. Mas também é preciso admitir que há quatro ou cinco datas fundamentais, que toda pessoa conserva gravadas no cérebro, datas que tiveram efeito devastador na história. Também elas são primeiros dias de ano. O Ano Novo da história romana, ou da Idade Média, ou da era moderna. Elas se tornaram tão invasivas e tão fossilizantes que nos surpreendemos a pensar algumas vezes que a vida na Itália começou em 752, e que 1490 ou 1492 são como montanhas que a humanidade ultrapassou de um só golpe para entrar em um novo mundo e em uma nova vida. Com isso, a data converte-se em um fardo, um parapeito que impede que se veja que a história continua a se desenvolver de acordo com uma mesma linha fundamental, sem interrupções bruscas, como quando o filme se rompe no cinematógrafo e se abre um intervalo de luz ofuscante.


Por isso odeio a passagem do ano. Quero que cada manhã seja um ano novo para mim. A cada dia quero ajustar as contas comigo mesmo e renovar-me. Nenhum dia previamente estabelecido para o descanso. As pausas eu escolho sozinho, quando me sinto embriagado de vida intensa e desejo mergulhar na animalidade para extrair um novo vigor. Nenhum travestismo espiritual. Cada hora da minha vida eu gostaria que fosse nova, ainda que vinculada às horas já transcorridas. Nenhum dia de júbilo coletivo obrigatório, a ser compartilhado com estranhos que não me interessam. Só porque festejaram os avós dos nossos avós etc., teremos também nós de sentir a necessidade de festejar. Tudo isso dá náuseas.


[...]

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A HISTÓRIA NÃO ESTÁ ESCRITA

De Karl Popper, filósofo hoje quase esquecido, uma poderosa crítica ao historicismo, a ideia de que a História é regida por leis de ferro e, por isso, podemos prever e planejar seu curso:

Karl Popper (1902-1994)
 "Não se pode duvidar de que as filosofias historicistas de Hegel de de Marx sejam produtos característicos de sua época - uma época de mudança social. Como as filosofias de Heráclito e Platão, e como as de Comte e Mill, Lamarck e Darwin, são filosofias de mudanças, e dão testemunho da tremenda e sem dúvida um tanto terrífica impressão causada por um ambiente social em mutação nas mentes dos que vivem nesse ambientes. Platão reagiu a essa situação procurando paralisar qualquer mudança. Os filósofos sociais mais modernos parecem reagir muito diferentemente, pois aceitam a mudança e mesmo lhe dão boas vindas; contudo, esse amor pela mudança me parece um pouco ambivalente. De fato, ainda que hajam desistido de qualquer esperança de deter a mudança, tendem a predizê-la como historicistas e assim colocá-la sob controle racional; e isto, certamente, parece uma tentativa de domá-la. Assim, para o historicista, é como se a mudança não tivesse perdido inteiramente seus terrores."

"Se pensarmos que a história progride, ou que estamos fadados a progredir, então cometemos o mesmo engano daqueles que crêem ter a história um significado que pode ser descoberto nela e não necessita ser-lhe dado. Progredir, com efeito, é mover-se para uma certa espécie de fim, para um fim que existe para nós como seres humanos. A "história" não pode fazer tal coisa; apenas nós, os indivíduos humanos, podemos fazê-lo. E podemos fazer defendendo e fortalecendo aquelas instituições democráticas que a liberdade e, com ela, o progresso, dependem. E muito melhor o faremos à medida que nos tornamos mais plenamente conscientes do fato de que o progresso repousa em nós, em nossa vigilância, e nossos esforços, na clareza da concepção que tenhamos de nossos fins e no realismo de sua escolha."

"Em vez de nos estadearmos como profetas, devemos tornar-nos os autores de nosso destino. Devemos aprender a fazer as coisas o melhor que pudermos e a encarar nossos enganos. E quando tivermos abandonado a ideia de que a história do poder será a nossa julgadora, quando tivermos desistido de nos afligir por indagar se a história nos justificará ou não, então talvez um dia possamos ter êxito em colocar o poder sob nosso domínio. Desse modo, poderemos mesmo, por nossa vez, justificar a história. Ela necessita desesperadamente dessa justificação."

Karl Popper, A Sociedade Aberta e seus Inimigos         

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

PELO DIREITO DE SER DO CONTRA


Moisés e as tábuas da Lei: um Deus implacável
Um amigo reagiu furioso a uma postagem que fiz no Facebook – era uma charge ironizando uma citação particularmente belicosa do Velho Testamento da Bíblia (Números 31: 17-18). Bem, todos que se deram ao trabalho de ler o livro sagrado dos cristãos, particularmente o Velho Testamento, sabe que é possível encontrar aos montes citações semelhantes, em que um Deus vingativo e ciumento exige dos homens provas de seu amor incondicional por Ele, pedindo sangue e até matança de inocentes. Meu amigo argumenta que a citação está descontextualizada, que o Novo Testamento é diferente e que ateus e agnósticos, quando atacam as religiões, se igualam aos fanáticos religiosos que discriminam homossexuais e não-crentes.

Mas o Estado brasileiro não é laico?
Respondo que, num país como o Brasil, em que ateus e agnósticos são estigmatizados como pessoas sem ética nem moral, em que candidatos a cargos eletivos já tiveram que esconder sua condição de não-crentes para serem aceitos pelo eleitorado, em que crucifixos são pendurados em repartições públicas violando a laicidade do Estado, e em que posições contrárias aos dogmas cristãos – principalmente católicos –, como por exemplo pesquisas com células-tronco, casamento de pessoas do mesmo sexo, aborto e AIDS, são vistas como heresia, é preciso partir para o confronto. Os não-crentes precisam “sair do armário”, como disse Richard Dawkins, e defender suas posições.

Ao fazer isso, eles estarão também defendendo a liberdade de expressão. Sim, porque, como bem sabiam os Pais Fundadores dos Estados Unidos, para garantir a liberdade religiosa e de expressão, o Estado deve ser impedido de promover qualquer confissão religiosa. Aqui, os ateus e agnósticos precisam demarcar terreno, conquistar espaço na sociedade, expor suas idéias – e isso certamente ferirá suscetibilidades religiosas. Talvez depois dessa etapa seja possível encontrar denominadores comuns entre crentes e não-crentes, como fizeram Umberto Eco e D. Carlo Maria Martini, arcebispo de Milão, no memorável diálogo epistolar reproduzido no livro “Em que crêem os que não crêem”.

Rushdie: condenado à morte por blasfêmia
À parte isso, ofender ou ironizar religiões pode não ser de bom tom, mas é um direito democrático líquido e certo. Mas ainda é perigoso e não está totalmente assegurado. Quando Salman Rushdie escreveu Os Versículos Satânicos, no final dos anos 1980, o aiatolá Khomeini se arvorou o direito de emitir uma fatwa (decreto religioso) pedindo a morte dele. O escritor teve que ficar escondido em Londres por quase uma década. Quando o jornal dinamarquês Jyllands-Posten publicou uma série de 12 caricaturas do profeta Maomé como terrorista, em 2005, manifestantes e governos islâmicos de todos os cantos do planeta promoveram ruidosas manifestações e fizeram pressões pedindo a proibição de publicações semelhantes e a punição do jornal. Temendo ferir “suscetibilidades islâmicas” – afinal, a Arábia Saudita, maior produtora de petróleo do mundo, é um Estado teocrático islâmico –, vários governos ocidentais, laicos e democráticos, condenaram publicamente as charges. O próprio governo da Dinamarca criticou o jornal, que acabou pedindo desculpas públicas aos muçulmanos. Duas décadas atrás, grupos católicos fizeram pressão para a proibição do filme Je Vous Salue Marie, de Jean-Luc Godard (conseguiram aqui no Brasil, durante o governo de José Sarney). Há poucos anos, a organização católica ultraconservadora Opus Dei tentou proibir o filme Código da Vinci. Se para evitar ferir suscetibilidades religiosas tivermos que censura obras de arte ou simplesmente espetáculos, o que restará da liberdade de expressão e de pensamento tão duramente conquistada, principalmente abaixo do Equador? Não podemos esquecer Voltaire ("Não concordo com nada do que dizes, mas lutarei até a morte pelo teu direito de dizê-lo"), Rosa Luxemburgo ("a liberdade é a liberdade de quem pensa de modo diferente de nós") e George Orwell ("se a liberdade significa alguma coisa, é o direito de dizer o que as pessoas não querem ouvir").

Ayaan Hirsi Ali: contra a intolerância religiosa
Por isso, creio que o multiculturalismo, por mais bem intencionado que possa ser, é um equívoco. Veja-se o caso da escritora e política somali nacionalizada holandesa Ayaan Hirsi Ali. No seu país de origem, ela foi submetida a uma infibulação do clitóris, numa cerimônia religiosa presidida por sua avó. A família deixou a Somália em 1975, quando ela tinha seis anos. Em 1992, Ayaan conseguiu entrar na Holanda, onde recebeu o status de refugiada, começou a estudar e a se envolver na política. Ela fugira de um casamento arranjado por seu pai, prática comum na tradição clânica da Somália e de outros países. Mas na Holanda, Ayaan começou a enfrentar a pressão de somalis ali residentes, que queriam que ela se submetesse aos costumes culturais e religiosos - no caso, islâmicos - da comunidade. Mas ela não aceitava isso e começou a denunciar a pressão. E o pior é que o Estado holandês protegia a opressão familiar sob a bandeira do multiculturalismo, o que na prática significava fazer vista grossa a práticas medievais como excisão de clitóris, casamentos arranjados e submissão da mulher ao homem.

Isso é tolerância? Ou uma forma sutil de discriminação travestida de comportamento politicamente correto? Ao isolar imigrantes em verdadeiros "bantustões culturais" nos países desenvolvidos, o multiculturalismo europeu compactua com a opressão familiar e religiosa e renega o valor universal dos direitos humanos. Enquanto isso, os europeus brancos e cristãos podem desfrutar das liberdades civis e individuais.
  

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

TREMOR, TEMOR E O FASCÍNIO DO TERROR


Umberto Eco

Num texto escrito em 1979 (O Sagrado não é uma moda), Umberto Eco analisava a volta da religiosidade no mundo moderno, advinda com a percepção do fracasso do projeto iluminista de emancipação humana, do qual o marxismo tinha sido o último capítulo - e olha que ele escreveu dez anos antes da queda do Muro. Mas, fiel ao legado do Iluminismo, não à sua letra, Eco insiste nas velhas técnicas da razão e da lógica, mas desprovidas da tentação milenarista, para combater o fascínio irracionalista das religiões:

"Ao lado dessas manifestações de religiosidade 'positiva'(crescimento dos fundamentalismos islâmico, cristão e judaico, NR), eis a nova religiosidade dos ex-ateus, revolucionários desiludidos que se atiram à leitura dos clássicos da tradição, os astrólogos, os macrobióticos, os poetas visionários, o neofantástico [...] e, finalmente, não mais textos de Marx ou Lênin, mas obras obscuras de grande inatuais [...] que tinham grande raiva do fazer humano e do mundo moderno em geral.

"Sobre esses elementos, sobre essas inegáveis tendências, parece porém porém que os meios de massa estejam construindo um roteiro que repete o esquema sugerido por Feuerbach, para explicar o nascimento da religião. O homem, de algum modo, sente que é infinito, isto é, capaz de querer de modo ilimitado, de querer tudo, digamos. Mas não percebe não ser capaz de realizar o que deseja, e então precisa imaginar-se um Outro (que possua em medida optimal o que ele deseja de melhor) e a quem se delegue a tarefa de preencher a fratura entre o que se quer e o que se pode. [...]  

Goya, O sonho da razão produz monstros
"A questão é que as ideias de Deus que povoaram a história da humanidade são de dois tipos. De um lado está um Deus pessoal que é a plenitude do ser ("eu sou como aquele que é") e que, portanto, resume em si todas as virtudes que o homem não tem, sendo o Deus da onipotência e da vitória, o Deus dos Exércitos. Mas esse mesmo Deus se manifesta frequemente de maneira oposta: como aquele que não é. Não porque não possa ser nomeado, nem porque não possa ser descrito por nenhuma das categorias que usamos para designar as coisas que são. Esse Deus que não é atravessa a história mesma do cristianismo: esconde-se, é indizível, pode-se chegar a ele apenas por força de teologia negativa, é a suma daquilo que dele não pode ser dito, falamos dele celebrando nossa ignorância e o nomeamos, no máximo, como vórtice, abismo, deserto, solidão, silêncio, ausência.

"Desse Deus alimenta-se o sentido do sagrado, que ignora as igrejas institucionalizadas [...] O sagrado [...] é a intuição de que haja algo não produzido pelo homem e em relação ao qual a criatura sente atração e repulsa ao mesmo tempo. Ele produz um senso de terror, uam irresistível fascinação, um sentimento de inferioridade e um desejo de expiação e sofrimento. Nas religiões históricas esse sentimento confuso tomou a forma, a cada vez, de divindades mais ou menos terríveis. Mas no universo leigo há pelo menos cem anos que ele assume outras formas. O tremendo e o charmoso renunciaram a revestir-se das aparências antropomorfas do ser perfeitíssimo para assumir as de um Vazio, em relação ao qual nossos propósitos são fadados ao fracasso. 

"Uma religiosidade do Inconsciente, do Vórtice, da Falta do Centro, da Diferença, da Alteridade absoluta, da Ruptura atravessou o pensamento moderno como contraconto subterrâneo à insegurança da ideologia oitocentista do progresso e ao jogo cíclico das crises econômicas. Esse Deus tornado leigo e infinitamente ausente acompanhou o pensamento contemporâneo sob vários nomes e explodiu no renascimento da psicanálise, na redescoberta de Nietzsche e de Heidegger, nas novas antimetafísicas da Ausência e da Diferença. Durante o período de otimismo político tinha-se criado uma nítida ruptura entre esses modos de pensar o sagrado, ou seja, o incognoscível e as ideologias da onipotência política; com a crise seja do otimismo marxista seja daquele liberal, essa religiosidade do vazio de que somos entretecidos invadiu o próprio pensamento da assim chamada esquerda.

Angelus Novus, Paul. Klee

"Sobre essas novas telogias negativas, sobre as liturgias que delas derivam, sobre sua incidência no pensamento revolucionário, valerá a pena interrogar-se ao longo dos próximos anos e ver quanto, elas também, permanecem sensíveis à crítica de Feuerbach, por exemplo. Ou seja, ver se através desses fenômenos culturais não está se perfilando uma nova idade média de místicos leigos, mais propensos ao retiro monástico do que à participação citatina. Deveríamos ver de que valia ainda pode ser, como antídoto [...] as velhas técnicas da razão, as artes do Trívio, a lógica, a dialética e a retórica. Pairando a dúvida de que, ao praticá-las ainda com obstinação, se possa vir a ser acusado de impiedade."           

A TRAGÉDIA DO OCIDENTE EM TRÊS ATOS


As duas guerras mundiais e o totalitarismo do século XX, com seu cortejo de genocídios e atrocidades, nascem das entranhas civilizadas da Belle Époque, quando se acreditava que se vivia no melhor dos mundos, onde os conflitos sangrentos e a penúria econômica eram coisas do passado. No século XVIII, o grande Voltaire já ironizara essa ilusão em Cândido ou o otimista, com o personagem do dr. Pangloss. Nestes trechos de O Castelo do Barba Azul, que editei arbitrariamente, o crítico literário George Steiner tenta dar conta das origens do trágico e curto século XX.

Não ter nem Céu nem Inferno
é ficar intoleravelmente carente e solitário
em um mundo que se tornou plano.
Dos dois, o Inferno demonstrou ser o mais fácil de recriar

Queda da Bastilha, 1789: grandes expectativas

"Nenhuma enxurrada de citações, nenhuma estatística pode recapturar para nós o que deve ter sido a excitação interior, a apaixonada aventura do espírito e da emoção desencadeada pelos eventos de 1789 e mantida, com ritmo fantástico, até 1815. Muito mais coisas que revolução e guerra estão envolvidas, em uma escala e alcance social e geográfico sem precedentes. A Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas - la grande épopée - literalmente aceleraram a marcha do tempo tal qual como as pessoas o sentiam [...]

"Até a Revolução Francesa e as marchas e contramarchas dos exércitos napoleônicos de Corunha a Moscou, do Cairo a Riga, a história havia sido, por larga margem, privilégio e terror de poucos [...] Foram os acontecimentos de 1789 a 1815 que permearam a existência comum, participar, da percepção dos processos históricos. A levée en masse dos exércitos revolucionários era muito mais do que um instrumento de guerra e doutrinação social que, havia muito tempo, persistiam. Fez mais que liquidar com as convenções da guerra profissiional, limitada. Como Goethe notou com precisão no campo de batalha em Valmy, os exércitos populares, o conceito de uma nação em armas, significavam que a história havia se tornado o ambiente do homem comum. Desse momento em diante, na cultura ocidental, todo dia traria novidades [...].

II
Bonaparte: as guerras trouxeram o homem comum à História

"O que se seguiu foi, é claro, uma longa fase de reação. Dependendo da linguagem política de cada um, pode-se ver esse período como um século de repressão por uma burguesia que se aproveitara da Revolução Francesa e das extravagâncias napoleônicas para sua própria vantagem econômica, ou como cem anos de gradualismo liberal e ordem civilizada. Rompida somente por espasmos revolucionários em 1830, 1848 e 1871 e por curtas guerras de caráter extremamente profissional e socialmente conservador, como a da Criméia e as prussianas, essa paz de cem anos moldou a sociedade ociental e estabeleceu os critérios de cultura que, até bem pouco tempo, foram os nossos. 

"Para muitos que em pessoa experimentaram essa mudança, essa queda na tensão, o abrupto fechar das cortinas sobre a manhã foi muitíssimo enervante. É nos anos após Waterloo que devemos procurar as raízes do "grande ennui (tédio)", que, já em 1819, Schopenhauer definiu como a enfermidade corrosiva da nova era. Que iria um homem de talento fazer depois de Napoleão? Como poderiam os organismos criados para o ar elétrico da revolução e da época imperial respirar sob o céu de chumbo do reinado da classe média? Como seria possível a um jovem ouvir de seu pai os relatos do Terror e de Austerlitz e depois caminhar placidamente pelo bulevar em direção ao escritório de contabilidade? Os dentes de rato roíam a polpa acinzentada do presente; isso exasperava, nutria sonhos selvagens [...]"

A Belle Époque escondia o próprio veneno

III

"O colapso das esperanças revolucionárias após 1815, a brutal desaceleração do tempo e das expectativas radicais deixaram um reservatório de energias turbulentas, não realizadas. A geração romântica tinha inveja de seus pais. Os "anti-herois", os dândis assolados pelo spleen (melancolia)no mundo de Sthendal, Musset, Byron e Púshkin movimentam-se pela cidade burguesa como condottieri desempregados. Ou, pior, como condottieri aposentados antes da primeira batalha, com uma pensão miserável. Mais ainda, a própria cidade, outrora festiva com os sinos da revolução, tinha-se tornado uma prisão. 

"A conjunção do extermo dinamismo técnico-econômico com larga medida de imobilismo social imposto, conjunção sobre a qual foi construído um século de civilização liberal burguesa, preparou uma mistura explosiva. Provocou na vida da arte e da inteligência certas respostas específicas e, no fim das contas, destrutivas. Estas, segundo me parece, constituem o significado do romantismo. É a partir delas que crescerá a nostalgia pelo desastre.     
          
" [...] a descrição que Freud faz (em O mal-estar da civilização)das tensões que as maneiras civilizadas impõem aos instintos humanos centrais e não realizados continua válida. Assim como as insinuações, abundantes na literatura psicanalítica (que é, por si mesma, pós-darwiniana), de que há nas interrelações humanas uma inelutável pulsão à guerra, a uma afirmação suprema da identidade à custa da destruição mútua [...]. 

O Grito (Münch): tédio desesperador 

"[...] por volta de 1900, havia uma propensão terrível, uma sede mesmo, por aquilo que Yeats viria a chamar 'maré turva de sangue'. Exteriormente serena e brilhante, la belle époque estava demasiado madura, de um modo ameaçador. Sob a superfície do jardim, compulsões anárquicas estavam chegando a um ponto crítico. Notem-se as imagens proféticas de perigo subterrâneo, de influências destrutitvas prontas a levantar-se dos esgotos e dos porões que atormentavam a imaginação literária desde o tempo de Poe e do Les misérables até o Princess Casamassima de Henry James. A corrida armamentista e a crescente febre do nacionalismo europeu eram, acho, apenas sintomas desse mal-estar intrínseco. O intelecto e o sentimento foram, literalmente, fascinados pela perspectiva de um fogo purificador."

George Steiner, No Castelo do Barba Azul

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O COMPLEXO É DA OLIGARQUIA, NÃO DO POVO

Se dependesse dos nossos conservadores, o Brasil não teria se industrializado e estaria na rabeira das nações. E eles ainda estão firmes e fortes, pontificando na grande mídia. Essa análise mergulha no pathos da nossa elite dirigente, desde sempre voltada de costas para o Brasil.     


O complexo de vira-latas, ontem e hoje


Roberto Amaral (*)


“A ponte Rio-Niterói é, portanto, uma linda obra turística, cuja prioridade não se justifica em um país de escassos recursos que se defronta com necessidades berrantes que aí estão nesta mesma região do País, clamando pela ação do Governo”.


Eugênio Gudin, O Globo, 2/3/1974


Nelson Rodrigues
Foi Nelson Rodrigues, em crônica às vésperas da Copa do Mundo de 1958 (Manchete esportiva, 31/5/1958), quando a seleção brasileira partia desacreditada para a disputa na Suécia, quem grafou o conceito de “complexo de vira-latas”, resumo de um colonizado e colonizador sentimento de inferioridade em face do estrangeiro e do que vem de fora, seres e coisas, ideias e fatos.


Impecável a definição, cujas raízes nos levam à empresa colonial e ao escravismo, à dependência cultural às diversas Cortes que sobre nós reinaram e ainda reinam.


Peca, porém, o teatrólogo genial e reacionário militante ao atribuir tal “complexo” a um fenômeno nacional, como se fosse ele um sentimento de nosso povo, de nossa gente, pois nada é mais povo brasileiro do que o torcedor de futebol.


Esse sentimento existe, mas regado pela classe dominante brasileira, desde a Colônia, que sempre viveu de costas para o país e com os sonhos, as vistas e as aspirações voltadas para a Europa. Terra de “índios desafeitos ao trabalho”, de “negros manimolentes e banzos” e “europeus de segunda classe”, nosso destino, traçado pelos deuses, era a de eternos coadjuvantes. História própria, industrialização, destino de potência… ah, isso jamais!


Nem no futebol, pois havíamos perdido as copas de 1950 e 1954 justamente porque éramos (eram nossos jogadores) um povo mestiço.


Pensar grande, pensar na frente, projetar-se no mundo e na História, isso é coisa de visionários ou políticos “populistas”.


Tal cantochão reacionário foi construído pelos pensadores dos interesses dominantes (desde os que no Império advogavam o “embranquecimento da raça” e por isso, só por isso, chegaram a admitir a abolição da escravatura), e ainda hoje é o refrão da direita impressa.

Para essa gente, o destino de nosso país era o de exportador de café e importador de manufaturas (“porque produzir aqui se podemos importar o produto estrangeiro, melhor e mais barato?”), e agora é o de exportador de soja e minério in natura. Amanhã, que os fados nos protejam, o destino que nos devotam é de exportadores de óleo bruto, como o Iraque, o Irã, a Venezuela, a Arábia Saudita…

Eles têm saudades da política do "café com leite"

O único engenho concedido ao nosso povo é o carnaval, comercializado pela tevê monopolizada. Mas dizem ao nosso povo os jornalões que não temos capacidade de construir meia dúzia de estádios.


Mesmo o futebol entrou em questionamento, depois que o Santos caiu de quatro nos gramados japoneses. A grande imprensa agora prescreve que o futebol brasileiro precisa reaprender com o catalão, repleto de atletas estrangeiros, inclusive, brasileiros…

Um bom representante desse pensamento conservador – que no Império ceifou pioneiros como Mauá – é Eugênio Gudin, criador (ao lado de Octavio Gouvêa de Bulhões) do ensino da economia em nosso país, e fundador do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas. Monetarista e anti-desenvolvimentista, anti-varguista e anti-juscelinista, iluminador do moderno neoliberalismo brasileiro, combatia a intervenção do Estado na economia, o apoio (com incentivos ou o que fosse) à industrialização, e defendia com unhas e dentes, desconsiderando a realidade objetiva, o equilíbrio financeiro e a austeridade fiscal.

Eugênio Gudin

Gudin, como a maioria dos economistas, gostava de falar em “custo de oportunidade”, que procura medir o que poderia ter sido feito em saúde, educação e mais isso e mais aquilo, com os gastos de determinada obra ou melhoramento. Por exemplo, quanto poderíamos ter investido em saúde se não investíssemos na transposição do São Francisco, em que pese ao preço de deixar à míngua milhões de brasileiros do semi-árido nordestino…

Por isso, Gudin, como a classe dominante e a direita impressa, foram contra Brasília e mesmo contra a ponte Rio-Niterói, e são, agora, contra o trem-bala que ligará Campinas-São Paulo ao Rio de Janeiro.

Ainda na ditadura, um falecido jornalão carioca insurgiu-se contra as obras do metrô em nossa cidade, sob o tacanho argumento de “que ainda não haviam sido esgotadas as possibilidades do trânsito de superfície”.


Chateaubriand, nosso Cidadão Kane, mobilizou sua cadeia de jornais e rádios para combater os investimentos da União na triticultura gaúcha “porque era muito mais barato importar trigo dos EUA’”, que então renovavam seus estoques de guerra.

Agora mesmo há os que julgam desperdício os investimentos em hidroelétricas e em Angra III.


Ora, em país que de tudo carece, tudo é urgente e igualmente tudo é adiável. Mais importante do que o “custo de oportunidade” é a oportunidade do investimento, ainda que signifique o atraso de obras e serviços “inadiáveis”.


Getúlio Vargas criou a Petrobras

Assim foram os investimentos dos anos 50 na Petrobras (que Gudin e outros consideravam um desperdício, até por que “o Brasil não possuía petróleo”) e a seguir os investimentos da estatal em pesquisa, de que a prospecção em águas profundas é apenas um dos frutos. Aos míopes daquele então, pergunto: que seria o Brasil de hoje dependente da importação de petróleo? Que será o Brasil de amanhã sem energia elétrica?

Aí então é que não podemos pensar em saúde e educação universais. Mas, para os áulicos do conservadorismo, tudo o que significa investimento com vistas ao futuro deve ser adiado, como supérfluo. Daí o desmantelamento tecnológico de nossas forças armadas, daí o atraso da indústria nuclear, daí o atraso na indústria espacial, daí o atraso na produção de fármacos, na recuperação das ferrovias.

Paremos aqui, pois o rol é interminável.

[...]

(*) Roberto Amaral é ex-ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A DEMOCRACIA PRECISA CHEGAR AO JUDICIÁRIO

"O poder é opaco, e sua opacidade é a negação da democracia”


Norberto Bobbio, A Era dos Direitos

O ministro Ricardo Lewandowski
Finalmente o Judiciário brasileiro está sob escrutínio. Tudo por causa do conflito do STF com os movimentos recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o órgão que, supostamente, deveria controlar os atos do Poder Judiciário. Na terça-feira 20, o ministro Ricardo Lewandowski, do STF, concedeu liminar suspendendo as investigações da corregedoria do CNJ – investigações que envolviam mais de 216 mil magistrados e servidores do Judiciário sob suspeita de terem recebido provimentos indevidos. Entres os investigados estaria o próprio Lewandowski, quando estava no Tribunal de Justiça de São Paulo. No mesmo dia, uma outra liminar, esta do ministro Marco Aurélio Mello, também do STF, já esvaziara os poderes de investigação e de correição do CNJ. A liminar proibiu a entidade de instaurar, por conta própria, investigação contra magistrados suspeitos, devendo esperar o pronunciamento das corregedorias estaduais. Isso sem contar que a Associação dos Magistrados Brasileiros já havia obtido liminar limitando os poderes da ANJ.

A corregedora Eliana Calmon: "bandidos de toga"
A crise, na verdade, eclodiu em setembro, quando a corregedora do CNJ, Eliana Calmon, criticou numa entrevista a impunidade da magistratura, que estaria “com gravíssimos problemas de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga". A declaração provocou uma dura reação do presidente da entidade e do STF, ministro Cézar Peluso, que exigiu a publicação de uma nota oficial de repúdio contra as declarações.

Dos Três Poderes da República, o Judiciário é o mais fechado e o mais refratário à transparência. Os magistrados alegam que sua independência e autonomia é a garantia do Estado Democrático de Direito. Enquanto o Legislativo e o Executivo estão o tempo todo sob a luz de holofotes, questionados e fiscalizados, Judiciário se arvora em poder intocável, resistindo com todas as suas forças à ideia de controle externo.

O advogado Heráclito Sobral Pinto
O fato de o Poder Judiciário ter sofrido sob duas ditaduras e, em muitos casos, se transformado em baluarte contra as arbitrariedades desses regimes de exceção – o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura militar (1964-1985) – não deveria ser argumento para justificar privilégios e defender um status quase medieval de instituição imune ao escrutínio público. Imagino que Sobral Pinto e Raymundo Faoro não compactuariam com esse esprit de corps dos nossos atuais magistrados.   

Os argumentos esgrimidos pelo Judiciário brasileiro para rejeitar a ideia de controle externo não se sustentam. Eles dizem estar escorados nas teorias dos clássicos do liberalismo sobre a separação dos poderes, como John Locke, Montesquieu e os Federalistas norte-americanos.

Eles não devem ter lido esses autores – ou se os leram, não os entenderam. John Locke, por exemplo, não considera o Judiciário um poder autônomo; para ele, ao contrário, o Legislativo é o principal poder, mas tanto este quanto o Executivo são subordinados ao consentimento popular. (Aqui no Brasil, vale lembrar, os magistrados não são eleitos).

O barão de Montesquieu
A noção de separação de poderes elaborada pelo francês barão de Montesquieu em L’Esprit des Lois (O Espírito das Leis) serve, antes de mais nada, ao propósito de garantir a liberdade dos indivíduos contra os abusos do poder (“é preciso que, pela disposição das coisas, o poder contenha o poder”). “Dos três poderes, o de julgar é, de certo modo, nulo. Restam apenas dois (Legislativo e Executivo)”, diz Montesquieu. Para o pensador iluminista, o poder de julgar não deveria ser permanente, nem exercido por profissionais, mas sim por pessoas do povo. E o Legislativo deveria ser dividido em dois, uma parte confiada aos nobres (o Senado) e outra ao povo (a Câmara). Essas duas partes do Legislativo, junto com o Executivo, são a constituição ideal de governo, pois cada parte do Legislativo deve controlar a outra por meio da capacidade de veto. O Executivo limita a ambas e, por sua vez, é limitado pelo Legislativo. A separação de poderes, então, que não inclui o Judiciário, é um mecanismo de controle mútuo, não de fortalecimento da autonomia de um deles.

Os Federalistas, Madison particularmente, repetem Montesquieu ao afirmar que a concentração de poderes nas mãos de uma pessoa ou grupo – ou de um partido, poderíamos acrescentar – constitui uma tirania. E também apontam a necessidade de separação de poderes como requisito para a preservação da liberdade dos cidadãos.

Assim, de acordo com os clássicos, o Legislativo pode e deve exercer o controle sobre o Judiciário, a exemplo do que já acontece em relação ao Executivo. E o filósofo do Direito Norberto Bobbio, discípulo de Hans Kelsen, lembra que “a democracia nasceu com a perspectiva de eliminar para sempre das sociedades humanas o poder invisível e de dar vida a um governo cujas ações deveriam ser desenvolvidas publicamente”.

SEM COMENTÁRIOS


Kim Jong Il, ex-ditador da Coreia do Norte
“Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular semelhante a um espelho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez. Winston foi até a janela: uma figura miúda, frágil, a magreza do corpo apenas realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo era muito louro, a face naturalmente sanguínea, e a pele arranhada pelo sabão ordinário, as giletes sem corte e o inverno que mal terminara. Lá fora, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua, pequenos rodamoinhos de vento levantavam em pequenas aspirais poeira e papéis rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não haver cor em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em toda parte. [...]

Havia um cartaz na casa defronte, O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuravam os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz, rasgado num canto, trapejava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC. Na distância um helicóptero desceu beirando os telhados, pairou uns momentos como uma varejeira e depois se afastou num vôo em curva. Era a Patrulha da Polícia, espiando pelas janelas do povo. Mas as patrulhas não tinham importância. Só importava a Polícia do Pensamento.

O "Grande Irmão" de 1984

Por trás de Winston a voz da teletela ainda tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa deste ou daquele individuo. Era concebível, mesmo, que observasse todo mundo ao mesmo tempo. A realidade é que podia ligar determinada linha, no momento que desejasse. Tinha-se que viver – e vivia-se, por hábito transformado em instinto, na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro. Winston continuou de costas para a teletela. Era mais seguro, conquanto até as costas pudessem falar.”

(George Orwell, 1984)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

BORDÉIS E DONOS DE BORDÉIS

Juan Luis Cebrián
Trechos do livro O pianista no bordel - jornalismo, democracia e as novas tecnologias, de Juan Luis Cebrián, fundador do El Pais. O livro faz uma referência sardônica à profissão de jornalista a partir de um antigo dito popular: "Não digam à minha mãe que sou jornalista; prefiro que continue acreditando que toco piano num bordel". A julgar pela situação atual, nossa reputação só vem piorando desde o século XIX, quando o bordão foi criado.   

“A sociedade digital é paradoxal, convive com as contradições, não as anula: ela as amplia e delas se aproveita. Mesmo sendo convergente, a nova cultura favorece a fragmentação; apesar de planetária, tem múltiplas versões locais; embora interativa, estimula o isolamento; apesar de caótica, conduz à homogeneização.”

"A convergência de tecnologias propicia a convergência de quem possui os conteúdos da comunicação. Desde que o movimento liberalizador das telecomunicações se pôs em marcha, as fusões, alianças, compras e todo o tipo de operações financeiras têm abalado o mercado. Empresas de informação produtoras de cinema, provedores de software informático, empresas de telecomunicações ou de comunicação via cabo se aliam, se ujnem, se confundem, se atraiçoam na perseguição de um mercado global. Estamos diante de um processo formidável de concentração. A sociedade digital favorece a criação de imensos conglomerados que, por natureza, atendem ou pretendem atender esse mercado planetário."

"Não existe - Negroponto dixit - fronteiras para os bites, nem os funcionários alfandegários podem investigá-los ou detê-los. As empresas, junto com sua enorme capacidade tecnológica, acumulam fabulosos recursos financeiros e operam, quase sem distinção, em países de culturas, legislações e níveis de desenvolvimento muito diferentes. Cresce a integração das empresas de meios de comunicação, ao mesmo tempo em que aumentam sua presença mundial e sua tendência a incorporar e administrar, sob uma mesma empresa, tanto os conteúdos quanto os sistemas de distribuição."

"A concentração da propriedade é correlativa à globalização e tudo nos leva a prever que nos próximos anos ela deverá aumentar. Esta é uma notícia inquietante, mas precisamos nos esforçar para resolver os desafios que ela apresenta, ou poderemos mergulhar na recusa a reconhecer sua existência e até a inevitabilidade do processo [...]"   



(Juan Luis Cebrián, fundador do El País)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

REFLEXÕES DE UM CONTESTADOR ESQUECIDO

O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975) sempre foi um provocador, no bom sentido da palavra. Marxista de formação católica, ele era iconoclasta por natureza. Em pleno 1968, por exemplo, ele disse que se identificava mais com os policiais, os "verdadeiros proletários", do com os estudantes "pequeno-burgueses”, jovens infelizes, condenados pelos crimes dos pais, que foram responsáveis "primeiro pelo fascismo, depois por um regime clerical-fascista, falsamente democrático, e que, por último, aceitou a nova forma de poder, o poder do consumo, última das ruínas, ruína das ruínas". À parte boutades como esta, Pasolini tinha reflexões radicais e profundas, hoje quase esquecidas. Como esse texto, publicado pouco antes de ele ser assassinado. Pode-se discordar, mas não negar-lhe brilhantismo.


O novo fascismo

“Estou profundamente convencido que o verdadeiro fascismo é o que os sociólogos muito gentilmente chamaram sociedade de consumo, definição que parece inofensiva e puramente indicativa. Isso não é nada. Se se observar bem a realidade, e sobretudo se se souber ler os objetos, a paisagem, o urbanismo e acima de tudo os homens, vê-se que os resultados desta inconsciente sociedade de consumo são eles mesmos os resultados de uma ditadura, de um fascismo puro e simples. No filme de Naldini (Fascista, de Nico Naldini, 1974), vê-se que os jovens estavam enquadrados e em uniforme... Mas há uma diferença: naquele tempo, os jovens, mal despiam o uniforme e tomavam a estrada para casa, voltavam a ser os italianos de 50 ou 100 anos atrás. O fascismo fez deles realmente, fantoches, servidores, talvez em parte convictos, mas nunca lhes chegou ao fundo da alma, à sua maneira de ser. Pelo contrário o novo fascismo, a sociedade de consumo, transformou profundamente os jovens: ela tocou-os no que eles tinham de mais íntimo, deu-lhes outros sentimentos, outras maneiras de pensar, de viver, outros modos culturais. Já não se trata como na época mussoliniana, de uma arregimentação artificial, cenográfica, mas de uma arregimentação real, que roubou e modificou a sua alma. O que significa, em definitivo, que esta civilização de consumo é uma civilização ditatorial. Em suma, se a palavra ‘fascismo’ significa violência do poder, a ‘sociedade de consumo’ conseguiu realizar o fascismo”.

Pier Paolo Pasolini, L’Europeo, 26 de dezembro de 1974

domingo, 18 de dezembro de 2011

O ÚLTIMO ESTADISTA TCHECOSLOVACO

Dramaturgo, dissidente e dirigente político, Václav Havel (1936-2011), morto neste domingo, fazia parte de uma estirpe de políticos tchecoslovacos - Thomas Masaryk, Edvard Benes e Alexander Dubcek - que não deixou herdeiros.  

O diretor de uma peça que mudou a história 

Timothy Garton Ash, The Guardian

Mãos zunindo como duas hélices, Václav Havel movia-se com seu característico andar, apressado e de passos curtos, pelo salão espelhado do teatro Lanterna Mágica, quartel general da revolução de veludo. A figura robusta, ligeiramente inclinada, vestida em jeans e suéter, parou por um momento, começou a falar acerca de algumas “negociações importantes”; mal estava na terceira sentença, foi interrompido. Ele deu um sorriso apologético por sobre o ombro, como que dizendo “O que um homem pode fazer?”.

Muitas vezes, Havel falava como se fosse um crítico irônico assistindo ao teatro da vida, mas lá no Lanterna Mágica, em 1989, ele se tornou o ator principal e diretor de uma peça que mudou a história.

Havel foi uma figura definidora da Europa do final do século 20. Ele não foi apenas um dissidente; ele foi a epítome do dissidente, como viemos a entender aquele termo novo. Ele não foi apenas o líder de uma revolução de veludo; ele foi o líder da revolução de veludo original, aquela que nos deu uma marca aplicada a muitos outros protestos de massa não-violentos desde 1989. (Ele sempre insistiu que foi um jornalista ocidental que cunhou o termo.)

Havel não foi apenas um presidente; ele foi o presidente fundador do que hoje é a República Tcheca. Ele não foi apenas um europeu; foi um europeu que, com a eloquência de um dramaturgo profissional e a autoridade de um ex-prisioneiro político, nos lembrou das dimensões históricas e morais do projeto europeu.

Olhando para a bagunça em que aquele projeto está hoje em dia, pode-se apenas chorar: “Havel! A Europa precisava de ti.”

Ele foi também um dos seres humanos mais engajados que eu jamais conheci. A primeira vez que o encontrei foi no começo dos anos 1980, quando acabara de emergir de vários anos na prisão. Conversamos em seu apartamento na beira do rio, com suas largas mesas e largas vistas de Praga. Embora à época a polícia secreta comunista avaliava, provavelmente de forma correta, que o centro ativo do movimento Carta 77 era de apenas umas poucas centenas de pessoas, ele insistiu que o silencioso apoio popular estava crescendo. Um dia, os círios cintilantes romperiam o gelo. É importante lembrar que ninguém sabia quando aquele dia chegaria.

Vaclav Havel e o ex-líder da Primavera de Praga, Alexander Dubeck  (à esq.)
No final das contas, o dia chegou apenas seis anos depois, mas bem poderia ter levado 22 anos, como foi o caso para Aung San Suu Kyi – que Havel generosamente indicou para o prêmio Nobel de Paz, numa época em que ele próprio poderia tê-lo ganho. A honra do dissidente não vem da coroa do político vencedor. Havel foi a epítome do dissidente porque ele persistiu em sua luta pacientemente, sem fazer uso da violência, com dignidade e humor, sem saber quando ou mesmo se a vitória viria. O sucesso já estava naquela persistência mesma, na prática da “antipolítica” – ou política como a arte do impossível. No meio-tempo, ele analisava o sistema comunista em ensaios profundos mas pé-no-chão e em cartas da prisão para sua esposa Olga.

Em sua famosa parábola do vendedor de hortaliças que coloca um cartaz na janela de sua loja, entre maças e cebolas, dizendo “Trabalhadores de todo o mundo, Uni-vos!” – embora, claro, o homem não acreditasse em uma palavra do cartaz – Havel captou o critério essencial de que toda resistência civil se alimenta: mesmo o mais opressivo dos regimes depende de alguma complacência mínima das pessoas que governa. Em um ensaio seminal, ele falou do “poder dos sem-poder”.

Quando a oportunidade de praticar resistência civil se apresentou, Havel transformou tudo isso em teatro político de um tipo eletrizante. A praça Venceslau em Praga foi o palco. Um elenco de 300 mil pessoas falou com uma voz. Pode chorar, Cecil B. DeMille. Ninguém que esteve lá jamais vai esquecer a visão de Havel e Alexander Dubcek, o heroi de 89 e o heroi de 68, lado a lado na sacada: “Dubcek-Havel! Dubcek-Havel!”. Ou o som de 300 mil chaveiros chacoalhados como sinos chineses. Raramente, se é que já, uma minoria tão ínfima se transformou tão rapidamente em uma imensa maioria. Que o mesmo possa ocorrer brevemente em Myanmar.

Mas a Tchecoslováquia – como ainda era chamada – teve o benefício de ter chegado tarde à festa de 1989. Poloneses, alemães orientais e húngaros já haviam feito a maior parte do trabalho duro, aproveitando a brecha aberta por Gorbachev. Quando cheguei em Praga e fui atrás de Havel em seu pub subterrâneo favorito, brinquei que na Polônia o processo durara 10 anos, na Hungria 10 meses, na Alemanha Oriental 10 semanas; talvez aqui ela durasse apenas 10 dias. Ele imediatamente me fez repetir o chiste para uma equipe de vídeo amadora. No final, ele se tornou presidente dentro de sete semanas. Lembro-me vividamente do momento em que apareceram alguns adesivos caseiros dizendo “Havel para presidente”. “Posso pegar um?”, ele polidamente perguntou ao estudante que distribuía os adesivos.

“Povo, seu governo retornou a vocês!”, ele declarou no discurso de Ano Novo em 1990, que o inaugurou como chefe de estado, ecoando o primeiro presidente da Tchecoslováquia, Tomas Garrigue Masaryk. Aquelas primeiras semanas no Castelo de Praga foram loucas, hilárias, encorajadoras e caóticas. Ele exibiu a câmara de tortura original: “Acho que a usaremos para negociações.”

Mas aí veio a dura labuta de desfazer o comunismo. Todo o veneno acumulado em 40 anos começou a vazar. Operadores políticos arrogantes, como Václav Klaus, pularam à proa. A mesma coisa com o nacionalismo, eslovaco e por fim tcheco. Havel batalhou com toda sua eloquência para manter junto o sonho de Masaryk de uma república civil, multinacional – em vão.

Ele voltou à cena como presidente do que hoje é a República Tcheca, que emergiu do assim chamado divórcio de veludo com a Eslováquia. Sentia, com boas razões, que tinha que estar presente na criação. Penso que ele permaneceu por tempo demais nesse papel. Menos teria sido mais. Com a saúde debilitada, se exauriu com os infinitos deveres cerimoniais e baixas brigas políticas internas, e, em tempo, seu povo se cansou dele.


Nós dois tivemos uma longa discussão durante os anos 1990 sobre se alguém podia ser um político em atividade e um intelectual independente ao mesmo tempo. Ele insistia que sim. Mas também prometia, sempre que nos encontrávamos, que, assim que acabasse o mandato, escreveria uma peça sobre a comédia dos altos círculos políticos, que ele pôde observar em primeira mão. Seria algo sobre a falta de poder dos poderosos.

Com o passar dos anos, comecei a duvidar de que ele fosse cumprir essa promessa. Sua palavra, no entanto, era tão boa quanto ele. Leaving – uma peça caracteristicamente irônica sobre a perda de poder e a ânsia para tê-lo de volta – foi filmada recentemente sob sua própria direção, com sua segunda esposa, Dagmar, em um papel de ponta.

Agora, cedo demais, Havel nos deixou pela última vez. Mas poucos deixaram tanta coisa de valor para trás.