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quarta-feira, 31 de março de 2010

O CÂNONE OCIDENTAL

"Ler os melhores escritores - digamos Homero, Dante, Shakespeare, Tolstoi - não vai nos tornar melhores cidadãos. A arte é inteiramente inútil, segundo o sublime Oscar Wilde, que tinha razão em tudo [...] A maneira mais boba de defender o Cânone Ocidental é dizer que ele encarna as virtudes morais que compõem nossa suposta gama de valores normativos e principios democráticos. A Ilíada ensina a glória suprema da vitória armada, enquanto Dante se rejubila com os eternos tormentos que impõe a seus inimigos bastante pessoais [...] O estudo da literatura, como quer que se o faça, não vai salvar nenhum indivíduo, não mais do que melhorar qualquer sociedade. Shakespeare não nos tornará melhores, nem piores, mas pode ensinar-nos a entreouvir-nos quando falamos a nós mesmos. Posteriormente, pode ensinar-nos a aceitar a mudança, em nós mesmos e nos outros, e talvez até a forma final de mudança. Hamlet é o embaixador da morte para nós, talvez um dos poucos embaixadores já enviados pela morte que não nos mente sobre nossa inevitável relação com esse país não descoberto. A relação é inteiramente solitária, apesar de todas as obscenas tentativas da tradição de socializá-la. [...] Shakespeare, que dificilmente se apoia na filosofia, é mais fundamental para a cultura ocidental que Platão e Aristótoles, Kant e Hegel, Heidegger e Wittgenstein"
(Harold Bloom, O Cânone Ocidental)

terça-feira, 30 de março de 2010

MEA CULPA

A velocidade com que as informações são transmitidas na era da internet frequentemente tem levado jornalistas a fazer juízos apressados, muitas vezes peremptórios, sem a devida apuração - o primeiro dever de qualquer repórter sério. A foto de um suposto professor carregando um PM ferido durante as manifestações da Apeoesp em São Paulo revelava, à primeira vista, uma situação comovente: a solidariedade de um professor com um de seus "algozes". Foi por causa dessa impressão que a imagem foi veiculada em sites e blogs (inclusive neste) e vetada em outros veículos. Eu inclusive, do alto da minha onipotência, coloquei o título: "Uma foto vale mais do que mil palavras". Às vezes, não vale. O blog Viomundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha, revelou que o suposto professor é na verdade um integrante da P2, o serviço secreto - dito reservado - da PM de São Paulo. Caímos na armadilha como patinhos.
O "desconfiômetro" é essencial à atividade do jornalista e deve se sobrepor à primeira impressão. Talvez alguns clássicos como o siliciano Luigi Pirandello (1867-1936) nos ajudem a apurar o senso crítico: sua peça Assim é, se lhe parece mostra como as coisas adquirem sentido a partir do olhar de cada um.

Confira o blog do azenha:
http://www.viomundo.com.br/denuncias/policial-militar-infiltrado-embarcou-em-osasco-no-onibus-dos-professores.html

domingo, 28 de março de 2010

UMA FOTO VALE MAIS DO QUE MIL PALAVRAS...


Professor carrega PM ferido durante repressão à manifestação da Apeoesp em São Paulo

sábado, 27 de março de 2010

O LOBBY POR TRÁS DO TRATADO DE REDUÇÃO DO ARSENAL NUCLEAR

O tratado acertado entre Estados Unidos e Rússia para redução do arsenal nuclear é mais uma vitória política do presidente Barack Obama. É o mais audacioso acordo desse tipo desde o Start-1 (redução de armas nucleares estratégicas) que venceu em dezembro sem ter sido implementado. Através desse novo tratado, as duas potências nucleares do planeta se comprometem a reduzir suas ogivas nucleares a um máximo de 1.550 cada - hoje o limite é de 2.600 para a Rússia e 2.100 para os Estados Unidos. Já os vetores (mísseis lançados de silos, submarinos e bombardeiros) caíram de 1.600 para 800. Mesmo com os novos limites, EUA e Rússia continuam com o poder de destruir o mundo várias vezes. Ainda assim, o acordo - cuja ratificação pelo Congresso americano é incerta - fortalece o discurso de Obama contra a proliferação nuclear e aumentará a pressão sobre o Irã, acusado de usar ilegalmente o programa nuclear para fins militares, já que o país é signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). Aumentarão, também, as pressões para que o Brasil assine os Protocolos Adicionais do TNP, que preveem maior acesso da Associação Internacional de Energia Nuclear (AIEA) às instalações nucleares. O Itamaraty teme que, assinando esses protocolos, os inspetores queiram limitar a tecnologia de enriquecimento de urânio desenvolvida pelo Brasil.
O acordo também está longe de representar um "esforço pela paz", como foi vendido. Ele responde principalmente ao lobby da indústria energética dos Estados Unidos. Os núcleos de material radioativo das bombas desativadas são utilizados para alimentar usinas nucleares. Conforme notou Igor Gielow na Folha de S. Paulo, 90% da energia extraída de centrais nucleares americanas vem das bombas desativadas do arsenal soviético e 10% do arsenal americano. Cerca de 10% da energia produzida pelos americanos provém de usinas nucleares.
O tratado também não mexe no sistema antimísseis que Washington pretende instalar na Europa, que no passado provocou irritação das autoridades de Moscou.
Seja por esse último motivo, seja pelas dificuldades que Obama terá para aprovar o tratado no Congresso americano, o impasse sobre proliferação nuclear ainda está longe de ser resolvido.

quinta-feira, 25 de março de 2010

VEJA BEM...NÃO É O QUE PARECE

A foto que simboliza a Guerra Civil espanhola, Falling Soldier, de Robert Capa (acima, à esq.), não teria sido tirada em Cerro Muriano, nos arredores de Córdoba, como dizia o fotógrafo, mas a 40 quilômetros dali, em Espejo, local onde não se registraram combates naquele setembro de 1936. Segundo uma matéria de 2009 do jornal El Periódico de Catalunia, baseado em dados levantados pelo historiador Francisco Moreno, a foto em que o miliciano republicano Federico Borrell aparece baleado por franquistas foi uma montagem. A suspeita já tinha sido levantada em 1975 no brilhante The First Causualty, de Phillip Knightley. Se a armação for confirmada, Falling Soldier ficará ao lado de outras maravilhosas farsas do fotojornalismo, como o içamento da bandeira americana em Iwo Jima, em março de 1945 (acima, ao centro) -, tema de um dos filmes de Clint Eastwood - e o da bandeira soviética sobre o Reichstag (acima, à dir.), em Berlim, em abril do mesmo ano.
A prática de fraudar fotografias, aliás, foi uma criação do stalinismo. São famosas as maquiagens nas fotos para fazer desaparecer os desafetos do ditador soviético, como Leon Trotsky. A técnica foi copiada por chineses, coreanos e cubanos. Mas hoje, frente à sofisticação do Photoshop, a manipulação stalinista das imagens parece brincadeira de criança...

quarta-feira, 24 de março de 2010

VIDAS PARALELAS; VIDAS CONVERGENTES

"De fato, somos uma liberdade que escolhe, mas não escolhemos ser livres: estamos condenados à liberdade"

"O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós"


"Um amor, uma carreira, uma revolução: outras tantas coisas que se começam sem saber como acabarão
"

Jean-Paul Sartre (1905-1980)

"O homem sério é perigoso, pode transformar-se em tirano"

"Não se nasce mulher: torna-se mulher"

"Era-me mais fácil imaginar um mundo sem criador do que um criador carregado com todas as contradições do mundo"

Simone de Beauvoir (1908-1986)


Edith Piaf - Je Ne Regrette Rien
http://www.youtube.com/watch?v=Q3Kvu6Kgp88

terça-feira, 23 de março de 2010

A PRIMEIRA VITÓRIA DE OBAMA

A direita americana não conhece a História. Sua virulenta oposição à reforma do sistema de saúde proposta pelo presidente Barack Obama atingiu as raias do absurdo, com extremistas como o Tea Party acusando o mandatário democrata de querer "socializar" os Estados Unidos. Se fossem menos ignaros, esses trogloditas saberiam que o pioneiro na introdução de um sistema público de saúde e previdência social no mundo não foi nenhum esquerdista incendiário, mas um arquiconservador, o chanceler (primeiro-ministro) prussiano Otto von Bismarck. O "chanceler de ferro" acreditava que a diplomacia sem as armas era como a música sem os instrumentos e que há ocasiões em que se deve governar com liberdade e outras com mão de ditador. Bismarck introduziu os primeiros seguros obrigatórios cobrindo a doença em 1863, os acidentes de trabalho no ano seguinte e a invalidez e a velhice em 1889. Ele não fez isso por benevolência, mas para barrar o avanço do movimento operário e sindical capitaneado pelo Partido Social Democrata (SPD). Da mesma forma, o Welfare State (Estado do bem-estar social), adotado posteriormente pela maioria dos países europeus, foi uma resposta ao crescimento do movimento operário, radicalizado depois da Revolução Bolchevique na Rússia, em 1917. Com um movimento trabalhista menos combativo, os Estados Unidos ficaram na condição de ser o único país avançado que não garante assistência médica a todos os seus cidadãos. Desde os anos 1930, presidentes democratas tinham fracassado na tentativa de implantar o acesso universal à saúde. O último a sentir o amargo sabor da derrota foi Bill Clinton. Hillary Clinton, que conduziu o projeto de reforma, ganhou o ódio eterno dos conservadores. A cobertura universal foi também uma das últimas grandes batalhas do senador Teddy Kennedy.

Obama fez uma aposta política arriscada e ganhou. Enfrentou o ataque histérico da direita hidrófoba e de boa parte da opinião pública. Com isso, já garantiu um lugar na História por ter acabado com um sistema que deixava 32 milhões de americanos à margem, permitindo que grandes seguradoras privadas excluíssem cada vez mais doentes dos planos de cobertura. "Nós pagamos para ter assistência enquanto não tivermos qualquer doença que possa exigir pagamento caro. Aí, a seguradora cortará nossas pernas", escreveu Nicholas D. Kristof no New York Times.

"Por mais caro que pareça o seguro social, ele sairá mais barato do que uma revolução", advertia o conservador Bismarck. Sofisticado demais para fãs de Mel Gibson, da Sarah Palin e da KKK.

domingo, 21 de março de 2010

ESBOÇO DA SERPENTE



"O problema do nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser"
[...]
"O nosso espírito é feito de desordem, acrescido de um desejo de ordenar as coisas"
[...]
"O homem é absurdo por aquilo que busca, grande por aquilo que encontra"
[...]
"É cômodo cortar ou coroar uma cabeça, mas, pensando bem, torna-se ridículo. Isso é acreditarmos que essa cabeça encerra em si uma causa primeira"
Paul Valéry (1871-1945)

FORRÓ FOR ALL


Bebel Gilberto canta em Nova York o baião Juazeiro, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira
http://www.youtube.com/watch?v=nhVGF8FrcRk




David Byrne canta Asa Branca, dos mesmos autores
http://www.youtube.com/watch?v=YI617dTYwFk&feature=PlayList&p=CDB0228C68150FF4&playnext=1&playnext_from=PL&index=2

sexta-feira, 19 de março de 2010

O VIRTUAL É REAL OU O REAL É VIRTUAL?

"A moça fantasiava sobre um sapo que na verdade era príncipe; o rapaz, sobre uma moça que na verdade era uma garrafa de cerveja. Para a mulher, seu amor e afeto (sinalizado pelo beijo) poderiam fazer de um sapo um príncipe, enquanto para o homem, tudo não passa de um esforço para reduzir a mulher ao que os psicanalistas designam como "objeto parcial" - aquilo que, em você, me faz desejar você. (...) O casal real de homem e mulher, portanto, vive assombrado por essa bizarra figura de um sapo abraçando uma garrafa de cerveja (...) É essa a ameaça do ciberespaço e de seus jogos, no plano mais elementar: quando um homem e uma mulher interagem nele, podem se ver assombrados pelo espectro do sapo que abraça a cerveja. Já que nenhum dos dois está consciente disso, as discrepâncias entre o que 'você' realmente é e o que 'você' aparenta ser no espaço digital podem resultar em violência homicida" (Slavoj Zizek)


quarta-feira, 17 de março de 2010

NÃO FAREMOS TUDO O QUE O MESTRE MANDAR



"O princípio maior da política externa brasileira é o interesse nacional, baseado no caráter democrático da sociedade e no desejo de colocar o Brasil junto das principais potências do mundo (Francisco Clementino de San Thiago Dantas, político reformista brasileiro e ex-chanceler, 1911-1964)
______________________________________________________
Alguns amigos tucanos acham que o Brasil dá as costas para os americanos por pura birra ideológica do governo Lula. Ganharíamos mais, dizem eles, se aparássemos as arestas com o Grande Irmão do Norte. Mas veja-se agora o caso dos subsídios ao algodão americano. Os Estados Unidos se consideram tão acima do bem e do mal que desprezam as normas internacionais que eles próprios ajudaram a criar. A Organização Mundial do Comércio (OMC) decidiu que o Brasil poderá impor uma retaliação comercial a produtos americanos em resposta à manutenção de subsídios ilegais a produtores e exportadores americanos de algodão. A medida poderá atingir 102 produtos americanos, de automóveis a têxteis, além de 21 itens para uma possível suspensão de direitos na área de propriedade intelectual. O porta-voz do representante dos EUA para o Comércio Exterior, Nefeterius Akeli McPherson, se limitou a dizer que os americanos estavam “decepcionados” com a decisão do Brasil. E o que fez boa parte da grande mídia tupiniquim? Tomou as dores de Washington: o Globo e o JN, por exemplo, evocaram o temor de um aumento dos preços do pãozinho; o UOL, da Folha, falou em alta de juros. A honrosa exceção foi o “Estadão”, que hoje publicou um editorial defendendo a posição do governo brasileiro.
Na cabeça desses colonizados, deveríamos ter a deferência aos desígnios de Washington demonstrada por FHC quando presidente. Coerente com sua “Teoria da Dependência”, ele achava que não havia saída para o Brasil a não ser a Alca – Área de Livre Comércio das Américas. Se fôssemos por esse caminho, teríamos quebrado o que restou da indústria nacional e estaríamos hoje numa situação similar à do México, que tem 80% de seu comércio exterior (importações e exportações) voltado para os EUA. Definitivamente, o imperialismo não é um "tigre de papel".

terça-feira, 16 de março de 2010

segunda-feira, 15 de março de 2010

REMINISCÊNCIA DAS ARENAS ROMANAS

"De todas as espécies, a humana é a mais detestável, pois o homem é o único ser que inflige dor por esporte, sabendo que está causando dor" [ Mark Twain ]

Ernest Hemingway e Pablo Picasso que me perdoem, mas as touradas não passam de uma reminiscência bárbara e sangrenta das arenas do Império Romano. Não podendo mais assistir a sacrifícios de gladiadores, a plebe ignara se contenta em satisfazer suas perversões sádicas com o espetáculo macabro de tortura e morte de animais. Criticar essa prática não é corretismo político; é, ao contrário, dar pouca importância às "tradições populares". Como dizia Jeremy Bentham, pai do utilitarismo, "não importa se os animais são incapazes ou não de pensar; o que importa é que são capazes de sofrer". Não é à toa que crescem na Europa as manifestações pela abolição desse esporte cretino, como o que ocorreu nesta segunda-feira em Bruxelas (acima, à esq.)


Uma das melhores antipropagandas de touradas eu vi há muitos anos numa cena do filme O Assassinato de Trotsky (1972), de Joseph Losey. A bela Romy Schneider, namorada de Ramón Mercader (futuro assassino do revolucionário, vivido por Alain Delon), vai com ele assistir a uma corrida de touros na Cidade do México. A agonia do animal, ferido e se esvaindo em sangue, é mostrada em câmera lenta, contrapondo-se ao furor extático da multidão. Chocada e indignada, Romy abandona o espetáculo no meio. A associação com o que Mercader faria depois - o assassinato de Leon Trotsky com um quebra-gelo - é inevitável.

Para mim, já era suficiente; mesmo assim, anos mais tarde, por insistência de um amigo de origem espanhola, acabei assistindo a uma tourada em Bogotá. Foi uma experiência dantesca; entendi perfeitamente o sentimento da personagem de Romy Schneider.




Para quem tem estômago e é contrário a essas práticas bárbaras, é didático ver o vídeo
http://www.youtube.com/watch?v=MRugqxQD_rQw.youtube.com/watch?v=MRugqxQD_rQ

País cordial, o Brasil não tem touradas, mas espetáculos igualmente deprimentes, como os rodeios, que torturam animais. Então, todo apoio à campanha Eu odeio rodeio! da Rita Lee

domingo, 14 de março de 2010

TANCREDO NEVES: MESTRE DA RETÓRICA E DA LIBERDADE

O Brasil contemporâneo teve dois herois trágicos, no sentido grego da palavra: Getúlio Vargas, que se suicidou em 1954 para não ser deposto e deixou uma carta-testamento na qual denunciava os interesses antinacionais de seus adversários políticos, e Tancredo Neves, cuja eleição indireta pelo Colégio Eleitoral, há 25 anos, pôs fim à ditadura civil-militar estabelecida em 1964. Tancredo adoeceu na véspera da posse, em 14 de março de 1985, e morreria em 21 de abril, depois de dramática agonia, vítima de inépcia médica. Sua doença, um tumor benigno, se agravou porque ele se recusou a receber tratamento antes de assumir por temer um veto militar à posse do vice, José Sarney, dissidente do PDS, então partido da ditadura. Sacrificou a vida pelo restabelecimento da democracia no Brasil.

Ele ficou conhecido como político hábil, moderado e conciliador, uma das "raposas" do velho PSD mineiro. Essa ideia é uma meia-verdade: sua firmeza política algumas vezes beirava à temeridade, como em 1954, quando a Aeronáutica estabeleceu a "República do Galeão", um poder parelelo para investigar o assassinato do major Rubens Vaz no atentado contra Carlos Lacerda. Tancredo, então ministro da Justiça de Vargas, defendeu o afastamento e a prisão dos militares insubordinados. Em 1964, foi um dos únicos políticos a ir ao aeroporto se despedir do presidente deposto, Jango Goulart. Em abril daquele ano, quando um Congresso manietado por cassações se reuniu para referendar o marechal Castello Branco como presidente da República, Tancredo foi um dos poucos parlamentares a votar contra. Juscelino Kubitschek e Ulysses Guimarães, por exemplo, acreditando na conciliação mais do que ele, votaram a favor do marechal. Na articulação para a eleição no Colégio Eleitoral, Tancredo realizou uma das maiores obras de engenharia política do país ao se articular com a dissidência do regime militar para derrotar o candidato da linha-dura, o nefasto Paulo Salim Maluf. Ele foi, acima de tudo, um político coerentemente democrata.

Mestre da oratória, era uma espécie de Cícero tupiniquim:
"Ainda que o movimento de 1964 tivesse transformado nossa pátria num paraíso, eu não me arrependo de ter feito oposição. Para meu ideário político, o valor supremo da vida é a liberdade. O paraíso, se estiver cercado, será sempre o infermo";
" O processo ditatorial, o processo autoritário traz consigo o germe da corrupção. O que existe de ruim no processo autoritário é que ele começa a desfiguar as instituições e acaba desfigurando o caráter do cidadão";
"Não se tira o sapato antes de chegar ao rio. Mas também ninguém chega ao Rubicão para pescar".
Seu discurso depois da vitória é uma peça tão poderosa quanto a carta-testamento de Vargas: "Com o êxtase e o terror de ter haver sido o escolhido, como diria Verlaine, entrego-me hoje ao serviço da Nação [...] Se todos quisermos, dizia-nos há quase 200 anos, Tiradentes, aquele heroi enlouquecido de esperança, poderemos fazer desse país uma grande nação. Vamos fazê-la".

sexta-feira, 12 de março de 2010

VIOLÊNCIA INDIVIDUAL E VIOLÊNCIA DO ESTADO


"O poder está em toda parte, não porque engloba tudo e sim porque provém de todos os lugares (...) O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada." (Michel Foucault, Microfísica do Poder)

Laranja Mecânica (Clockwork Orange, 1971), de Stanley Kubrick

http://www.youtube.com/watch?v=40Xc-9YeWE4&feature=related

quinta-feira, 11 de março de 2010

THE MAN WITH THE BLUE GUITAR

The man bent over his guitar,
A shearsman of sorts. The day was green.

They said, "You have a blue guitar,
You do not play things as they are."


The man replied, "Things as they are
Are changed upon the blue guitar."

And they said then, "But play, you must,
A tune beyond us, yet ourselves,

A tune upon the blue guitar
Of things exactly as they are."

(Wallace Stevens)

Jimi Hendrix (1942-1970), Hey Joe
http://www.youtube.com/watch?v=909EYSlwYKM&feature=related

quarta-feira, 10 de março de 2010

OS NOVOS SENHORES DE ENGENHO

Os opositores da ação afirmativa estão enfiando os pés pelas mãos. Em vez de discutir politicamente um tema que é polêmico, vêm apelando para argumentos ideológicos dignos de senhores de engenho. No afã de criticar a adoção do sistema de cotas por 68 universidades públicas no país e caracterizá-lo como "racista", o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), em audiência pública do STF, responsabilizou os africanos pela escravidão no Brasil - em função do sistema de tráfico de escravos que existia em alguns países da África. Qualquer livro de História sério ensina que o sistema colonial mercantilista das metrópoles europeias foi quem introduziu o trabalho compulsório nas plantations de colônias como o Brasil. Criou-se o que os sociólogos chamam de "sociedade estratificadas racialmente". Mais absurdo ainda foi a afimação de Demóstenes que as relações sexuais entre os fazendeiros brancos e as escravas negras ocorreram por "consenso", valendo-se de Gilberto Freyre. Ora, o autor de Casa Grande e Senzala pode ter romantizado a escravidão diluindo-lhes os conflitos, mas jamais negou a violência das relações entre senhores e escravos: "Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime"; "Não eram as negras que iam esfregar-se pelas pernas dos adolescentes louros: estes é que no sul dos Estados Unidos, como nos engenhos de cana do Brasil, os filhos dos senhores, criavam-se desde pequenos para garanhões".

Independentemente de qualquer coisa, os opositores das ações afirmativas deveriam refletir sobre esses dados, vergonhosos para uma nação que aboliu a escravidão há 120 anos:
Dos pobres no Brasil, 33% são negros e 14% são brancos;
Dos 10% mais pobres, 70% são negros e mestiços;
Negros e mestiços recebem metade do salário dos brancos;
Entre as idades de 15 e 18 anos, dois terços dos assassinados são negros;
Na USP, a maior universidade do Brasil, apenas 2% dos alunos são negros.

Como afirmou Joaquim Nabuco, "é preciso não apenas acabar com a escravidão, mas também com a obra da escravidão"

segunda-feira, 8 de março de 2010

INOCENTES ÚTEIS

Recebo de alguns amigos um e-mail meio antigo que mostra cenas terríveis do Holocausto, lembrando que quando os americanos libertaram campos de extermínio nazistas, o general Eisenhower pediu a seus soldados que fotografassem os mortos e sobreviventes para evitar que, no futuro, alguém viesse a negar aquelas barbaridades. Ato contínuo, a mensagem informa que o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, nega o Holocausto, quer destruir Israel e preside um regime ditatorial. Por ser meio velho, o e-mail não menciona, mas poderia ter acrescentado que, ainda por cima, o maluco de Teerã quer ter a bomba atômica. Na sequência, pede-se enviar a mensagem para outras pessoas - a maldita corrente -, para que repudiem a visita de Ahmadinejad - ocorrida no ano passado - ao Brasil. Pretexto para criticar a política externa do governo Lula, exercício caro à direita tupiniquim. Mas meus amigos não percebem que, sob a máscara da defesa dos direitos humanos, da denúncia do negacionismo e do antissemitismo, a mensagem reflete os interesses dos Estados Unidos e de Israel no Oriente Médio. É verdade que Ahmadinejad é um déspota pouco esclarecido, para dizer o mínimo; mas não sejamos ingênuos: o que está em jogo não é uma reedição do nazismo em versão xiita: é a ameaça geopolítica que Teerã representa a esses interesses no tabuleiro da região. Senão, porque denunciar violações de direitos humanos e o antissemitismo no Irã e fazer ouvidos de mercador a essas práticas em países como a Arábia Saudita ou o Paquistão? Será porque eles são aliados estratégicos de Washington? E o que nós brasileiros temos a ganhar embarcando nessa política?

A Arábia Saudita é uma das mais opressivas ditaduras da face da terra. Naquela teocracia islâmica não existe liberdade política nem religiosa. A "sh'aria" (lei islâmica") é aplicada com extremo rigor: condenados recebem chibatadas em praça pública; ladrões têm as mãos decepadas e mulheres são executadas por lapidação (apedrejamento). "Delitos" como blasfêmia, adultério, homossexualismo, apostasia e prostituição são considerados crimes tão graves quanto assassinato, sequestro, tráfico de drogas e sedição e são igualmente punidos com a pena de morte por decapitação com espada. As mulheres são cidadãs de segunda classe. E, em nome do combate a Israel, a imprensa oficial saudita estimula o antissemitismo e a negação do Holocausto. Até pouco tempo atrás, a realeza saudita financiava grupos terroristas palestinos e islâmicos, entre eles a Al Qaeda. O regime saudita é muito mais opressivo do que o do Irã; no entanto, nossos democratas não ficam ultrajados com o fato de países democráticos manterem boas relações com os príncipes de Riad. O fato de a Arábia Saudita ser o maior exportador de petróleo do mundo explica em parte essa condescendência, mas só em parte, já que o Irã também é um grande produtor, mas - aí é que está o problema - não se alinha aos interesses de Washington.

Embora tenha armas nucleares, o Paquistão não sofre restrições dos países ocidentais por isso. É porque Islamabad sempre representou um contraponto geopolítico à Índia e à Rússia. Mas isso também fez do Paquistão o berço e o foco de expansão do radicalismo islâmico no Oriente. Suas madrassas - escolas religiosas muçulmanas - formam todos os anos milhares de jihadistas dispostos a matar civis "judeus e cristãos" para a maior glória de Alá. E o serviço secreto paquistanês, o ISI, com a ajuda da CIA, foi o principal responsável pela formação de grupos fundamentalistas para combater os soviéticos no Afeganistão nos anos 80. Um deles, o Talibã, foi a milícia que levou o Afeganistão de volta ao século IX até ser derrubada por tropas da Otan em 2001. Seria o Paquistão, com bombas atômicas e veículos para lançá-las e difusor do extremismo islâmico, melhor do que o regime dos aiatolás? Parece que sim, porque o Paquistão é fiel aliado de Washington. E nós com isso?

Por fim, gostaria que esses amantes da paz me explicassem por que o fato de o Irã tentar fabricar artefatos nucleares representa uma ameaça à estabilidade mundial maior do que o arsenal atômico israelense ou paquistanês.