O ex-militante Cesare Battisti |
Em 1988 na Itália o ex-militante esquerdista Cesari Battisti foi condenado, à revelia, à prisão perpétua por supostamente ter participado do assassinato de quatro pessoas nos anos 1970. As denúncias foram feitas por Pietro Mutti, líder da organização Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), que se beneficiou do instituto da “delação premiada”. A decisão do governo brasileiro de não extraditar Battisti criou uma santa aliança entre ex-comunistas, neofascistas e direitistas italianos. Silvio Berlusconi é o regente dessa estranha sinfônica. Já na França, o “novo filósofo”, Bernard Henri-Levy, conhecido por suas posições liberais, escreveu uma carta ao então presidente Lula pedindo a libertação de Battisti. Trechos:
Bernard Henri-Levy |
"Senhor presidente, gostaria de lhe dizer que ninguém mais do que eu tem horror ao terrorismo. E desejo deixar claro que a luta contra esse terrorismo, a luta contra o direito que alguns se atribuem, nas democracias, de fazerem a lei eles próprios e de recorrerem às armas para fazer com que suas vozes sejam ouvidas é uma das constantes, senão a constante, de toda a minha vida de homem e de intelectual.
No entanto, se me dirijo a Vossa Excelência, é exatamente porque não está provado que Cesare Battisti seja esse terrorista que uma parte da imprensa italiana descreve e que, se tivesse cometido tais crimes, não mereceria nenhuma indulgência.
Ele foi condenado como tal, eu bem o sei, por um tribunal legalmente instituído, num país cujo caráter democrático não imagino, em nenhum momento, colocar em dúvida. Mas até as melhores democracias (a França sabe disso, pois, durante a guerra da Argélia, tomou liberdades com a liberdade, e os EUA de Bush, após o 11 de Setembro…) podem incorrer em erros e cometer injustiças [...].” Bernard Henri-Levy
A condenação de Battisti é juridicamente frágil diante dos fatos, conforme relatou seu defensor, o advogado Luís Roberto Barroso:
Os "anos de chumbro" (década de 1970) |
“1. Militância comunista e no PAC. Cesare Battisti ingressou na organização Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) em 1976, com pouco mais de 20 anos. Nascido em uma família comunista histórica, militou desde os dez anos na causa, tendo participado dos movimentos Lotta Continua e Autonomia Operaia. O PAC praticou inúmeras ações subversivas no período entre 1976 e 1979, com o propósito de enfraquecer e, eventualmente, derrubar o regime político italiano. Tais ações incluíram furtos de carros, furtos em estabelecimentos de crédito, furtos de armas, propaganda subversiva e quatro mortes. Os mortos foram um agente penitenciário, um agente policial e dois ‘civis’: um joalheiro e um açougueiro. Os dois civis eram ligados à extrema direita, andavam armados e haviam matado militantes de esquerda, em reação a ‘operações subversivas de auto-financiamento’.
2. Fim do PAC, prisão e julgamento de seus membros. Em 1979, a organização Proletários Armados pelo Comunismo foi desbaratada e a maioria de seus membros foi presa. Levados a julgamento por todas as operações do grupo naquele período, houve diversas condenações. Quatro dos integrantes do PAC – mas não Cesare Battisti – foram condenados por um dos homicídios: o do joalheiro Torregiani. Cesare Battisti não era considerado sequer suspeito de qualquer dos homicídios e não foi acusado de nenhum deles. Foi condenado, no entanto, a uma pena de 12 anos por delitos tipicamente políticos: participação em organização subversiva e participação em ações subversivas. Esteve preso de 1979 a 1981, em uma prisão para presos políticos que não haviam cometido ações violentas. De lá evadiu-se em 1981, em operação conduzida por um dos líderes do grupo – Pietro Mutti –, que não havia sido preso ainda. Battisti refugiou-se inicialmente no México e depois na França, onde recebeu abrigo político.
3. A delação premiada. Em 1982, Pietro Mutti, que era acusado pelos homicídios e por participação na maioria das ações do grupo, foi preso. Abstraindo das muitas denúncias da Anistia Internacional sobre torturas no período, o fato é que Mutti torna-se ‘arrependido’ e ‘delator premiado’. Nessa condição, acusa Cesare Battisti de ter sido o autor dos quatro homicídios atribuídos ao grupo. Como dois dos homicídios ocorreram no mesmo dia, em localidades diversas e distantes – o do joalheiro Torregiani e o do açougueiro Sabadin –, Mutti afirmou que Battisti seria responsável pelo primeiro como autor intelectual – teria participado de uma reunião em que se discutiu a ação – e do segundo como cúmplice, dando cobertura ao autor do disparo. Nos outros dois homicídios – dos agentes Santoro e Campagna –, Mutti acusou Battisti de ter desferido os tiros.
4. ‘Provas’ totalmente frágeis. As únicas provas contra Battisti foram a delação premiada de Mutti e a ‘confirmação’ feita por outros acusados dos homicídios e das ações do PAC. Mutti mudou diversas vezes de versão e de pessoas às quais acusava, protegendo e incriminando deliberadamente determinados militantes, conforme reconhecimento textual da sentença. As outras ‘provas’ referidas na sentença italiana fariam corar um aluno de primeiro ano de direito penal. Coisas do tipo: o autor do disparo contra Santoro, segundo testemunhas, era louro e de barba. Battisti é moreno e sem barba. No entanto, segundo Mutti, ele estaria disfarçado. Outra ‘prova’: a pessoa que ligou para a agência de notícias reivindicando a autoria do fato tinha sotaque do sul da Itália. Battisti é do sul da Itália. Logo, Battisti é o autor do homicídio!? Mais ou menos como incriminar alguém no Brasil por ter sotaque nordestino.
5. Réu revel e indefeso. Procurações falsas. A trama era extremamente simples: a culpa de todos os homicídios foi transferida para Cesare Battisti, o militante que estava fora do alcance da Justiça italiana, abrigado na França. Sem surpresa, o processo de Battisti foi ‘reaberto’, tendo sido ele julgado à revelia e condenado à prisão perpétua. Sem ter indicado advogado e sem ter sido defendido eficazmente. Detalhe importante: as procurações pelas quais os advogados de defesa teriam sido constituídos foram consideradas falsas em perícia realizada na França. De fato, ao fugir, Battisti deixou folhas em branco assinadas. Tais folhas foram preenchidas anos depois – este o fato comprovado pela perícia –, com nomes de advogados que defendiam diversos dos acusados, indicados pela liderança do PAC (isto é, pelos delatores premiados). Não apenas o conflito de interesses era evidente, como o advogado que ‘defendeu’ Battisti afirmou que jamais falou com ele, razão pela qual sequer poderia contestar as acusações sobre novos fatos imputados pelos delatores premiados.
Qualquer semelhança não é mera coincidência... |
6. Abrigo político na França. Battisti permaneceu na França, como abrigado político, por 14 anos. Trabalhou como zelador até tornar-se um escritor reconhecido, publicado pelas principais editoras francesas. Dentre outras coisas, denuncia as arbitrariedades da repressão italiana. Em 1991, a Itália requereu sua extradição, que foi negada pela Justiça francesa. Cesare Battisti casou-se e teve duas filhas, uma nascida no México, hoje com 25 anos, e outra na França, hoje com 14 anos. Jamais esteve envolvido ou foi acusado de qualquer ação anti-social desde 1979. Em 2003, mais de 12 anos depois do primeiro pedido de extradição, Silvio Berlusconi chega ao poder na Itália e passa a perseguir os antigos militantes que haviam participado dos anos de chumbo. Diante da recusa da Inglaterra e do Japão de extraditarem antigos acusados, Cesare Battisti se transforma no último troféu político daquele período. A Itália requer uma vez mais à França, já agora sob o governo de Jacques Chirac, a extradição de Cesare Battisti. A França defere. Antes da execução da decisão, Cesare Battisti foge para o Brasil.
Battista preso no Brasil em 2007 |
7. Prisão e refúgio no Brasil. Em 2007, já próximo das eleições francesas, Battisti é preso no Brasil com a ajuda da polícia francesa, à época comandada por Sarkozy, ministro do Interior e candidato à presidência. Sua prisão é utilizada como tema de campanha eleitoral, fato amplamente noticiado pela mídia européia. A Itália requer sua extradição. Como a Constituição brasileira veda a extradição por crime político, o pedido italiano destaca do conjunto das condenações apenas os quatro homicídios e sustenta a tese de que foram crimes comuns. Cesare Battisti requer a concessão de refúgio político ao CONARE – Comitê Nacional de Refugiados. O pedido é indeferido por três votos a dois. Em janeiro de 2009, o Ministro de Estado da Justiça, Tarso Genro, apreciando recurso contra aquela decisão, concede-lhe refúgio político.
8. Fundamentos do refúgio. A decisão do Ministro da Justiça se baseou em um conjunto de fatos que são notórios e foram adequadamente narrados na sua fundamentação. A Itália de fato viveu um período de convulsão política conhecido como ‘anos de chumbo’. Esse período foi marcado por violência, radicalização e pela aprovação de legislação de exceção. Inúmeros relatórios dos organismos internacionais de direitos humanos registraram fatos graves no período, associados à conduta do Estado italiano. Cesare Battisti foi condenado em julgamento coletivo por tribunal do júri, à revelia. Sua extradição só foi concedida pela França, depois de 14 anos, quando o ambiente político havia se modificado na Itália e na França. Era plausível o temor de perseguição política. Alguém pode até discordar da avaliação política do Ministro. Mas a decisão foi bem fundamentada, tendo sido manifestada em linguagem polida e diplomática.”
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