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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O ERRO QUE AFAGA

"Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos.

Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma entre o que chamamos de vida e o que chamamos de morte. Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro.

Tudo aquilo que em nossas atividades consideramos superior, tudo isso participa da morte, tudo isso é morte. Que é o ideal senão a confissão de que a vida não serve? Que é a arte senão a negação da vida? Uma estátua é um corpo morto, talhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida, é antes uma imersão em nós mesmos, uma destruição das relações entre nós e a vida, uma sombra agitada da morte.

O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.

Povoamos sonhos, somos sombras errando através de florestas impossíveis, em que as árvores são casas, costumes, ideias, ideais e filosofias.

Nunca encontrar Deus, nunca saber, sequer, se Deus existe! Passar de mundo para mundo, de encarnação para encarnação, sempre na ilusão que acarinha, sempre no erro que afaga.

A verdade nunca, a paragem [?] nunca! A união com Deus nunca! Nunca inteiramente em paz mas sempre um pouco dela, sempre o desejo dela!"

Bernardo Soares (Fernando Pessoa), O livro do Desassossego

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

PROTECIONISMO (MAL) DISFARÇADO


O Super Tucano A-29, da Embraer
A USAF (Força Aérea dos Estados Unidos) cancelou o contrato de US$ 355 milhões para fornecimento de 20 aviões Super Tucano A-29, da Embraer, citando problemas com a documentação. O negócio havia sido anunciado no final de 2011 e incluía, além do fornecimento das aeronaves, um pacote de serviços, como treinamento de mecânicos e pilotos responsáveis pela operação do avião. A companhia mantinha expectativas de vender mais 35 aviões, o que poderia elevar o contrato a US$ 950 milhões.

A Força Aérea americana disse que vai investigar e refazer a licitação, que também está sendo contestada na Justiça dos EUA pela norte-americana Hawker Beechcraft, o que levou o negócio a ser suspenso no começo de janeiro. O contrato havia sido concedido pela Força Aérea dos EUA para a Embraer e a parceira Sierra Nevada Corp.

Como lembrou o deputado Brizola Neto em seu blog, é o bom e velho protecionismo em ação. “A Embraer cumpriu todas as regras: associou-se a uma empresa americana, ia produzir lá 80% da aeronave – aqui, nossas exigências de conteúdo nacional raramente superam os 65% - e não havia questões de tecnologia a transferir”, diz Brizola.

“Ao contrário, aliás, o fato de o avião da Embraer contar com sistema inercial de voo, computador de bordo, motor, hélice, e outros sistemas de origem norte-americana foi a razão para aquele país impedir-nos de vendê-lo à Venezuela. Mas na hora de ceder à pressão do lobby da Beechcraft e da Lockheed, aí os aviões não são ‘suficientemente americanos’”.

O F-18 Super Hornet: os gringos vão transfeir tecnologia?

Será interessante acompanhar agora que atitude tomará o governo brasileiro em relação ao programa FX-2, de compra de 36 caças multiuso para a FAB, cuja decisão deve sair ainda neste semestre, depois de 15 anos de proteções e adiamentos. Estão na disputa o francês Rafale, o americano F-18 Super Hornet e o sueco-britânico Gripen. Inicialmente, os EUA estavam fora, mas pressionaram – dizem que até ameaçando canabalizar a Embraer, vendendo as ações que eles têm – e acabaram entrando, com a exclusão dos russos e de seu Sukhoi. O “x” da questão é a transferência de tecnologia. Até o reino mineral sabe que os americanos nunca transferiram tecnologia militar a ninguém – chegaram a vender caças F-16 para o Chile sem os mísseis ar-ar. Mas agora, de olho no mercado brasileiro, juram que o farão.


É ver para crer...

A COMANDANTE É ELA


Trechos do editorial do site Vermelho, sobre a decisão da presidenta de enquadrar os oficiais do Clube Militar ousaram desafiar a comandante-em-chefe das Forças Armadas :

Essa é a única postura que se espera dos militares em relação à presidenta 

“O artigo 84 da Constituição Federal é claro. Ele arrolada entre os atributos que competem privativamente ao chefe da Nação a função de “exercer o comando supremo das Forças Armadas”.

Não há dúvidas a respeito. Nem pode haver. E foi o que a presidente Dilma Rousseff deixou claro, novamente, ao enquadrar oficiais generais da reserva, presidentes dos clubes Naval, da Aeronáutica e Militar, que quebraram a disciplina regimental ao criticar, em nota conjunta, a presidente Dilma Rousseff, duas ministras do governo e o Partido dos Trabalhadores que, na comemoração dos 32 anos de sua fundação, voltou à carga contra o regime dos generais.

O motivo é o de sempre; o apego dogmático à lei de Anistia de 1979, adotada pela própria ditadura de 1964 e que protege agentes da repressão que cometeram perseguição, sequestro, tortura e assassinato políticos durante aquele regime discricionário.

O pretexto, desta vez, foram declarações da ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, apoiando processos judiciais contra agentes da repressão da ditadura. E da nova ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, que, em seu discurso de posse, fez críticas veementes contra a ditadura e foi aplaudida pela presidente Dilma Rousseff.

A hierarquia e a disciplina devem prevalecer

São duas mulheres que têm a autoridade de quem sofreu na pele os abusos da repressão da ditatura. Não tem sentido, para os chefes militares da reserva saudosos da ditadura, argumentar perante elas para atenuar aquelas violências – estavam em lados opostos; elas – como os milhares de perseguidos políticos – na situação de vítimas; eles, ao lado dos algozes.


Soou mal quando, na nota conjunta que divulgaram em 16 de fevereiro, aqueles chefes militares manifestaram a pretensão de neutralidade da presidente Dilma Rousseff, ou de ministros de seu governo, contra aqueles crimes. É inadmissível a crítica que fizeram à presidente da República por ter aplaudido as manifestações da ministra Menicucci, e a cobrança clara, feita por eles, de que Dilma a condenasse ou desautorizasse.

A questão de fundo é a proximidade da entrada em funcionamento da Comissão da Verdade, cujos membros serão nomeados até março para examinar aquele passado tenebroso com olhar crítico. Aqueles chefes militares reivindicam o direito de ter presença e voz nessa Comissão e temem o que entendem como uma “unilateralidade” das apurações.

Dilma manifestou sua contrariedade com a atitude dos generais da reserva. E, de novo, fez valer sua voz de comandante-em-chefe das Forças Armadas, como já havia feito em agosto do ano passado, quando sua autoridade de comandante em chefe das Forças Armadas foi desafiada pelo então ministro da Defesa, Nelson Jobim, que acabou demitido.

O caminho seguido pela resposta da presidente foi o da hierarquia, cujo topo é ocupado por ela. Dilma convocou o ministro da Defesa, Celso Amorim, que chamou os comandantes de cada uma das Forças, cabendo a eles executarem o enquadramento dos generais indisciplinados, que foram constrangidos a divulgar outra nota, no dia 23, desautorizando a anterior. O comportamento da presidente não podia ser outro, até porque ela deve cumprir a Constituição em todos os seus quesitos.

O almirante Veiga Cabral, presidente do Clube Naval, ainda esperneou, dizendo que os militares não podem ficar calados ao serem ‘desafiados de um lado e engolirmos sapo de outro’.

Eles bem que gostariam de esquecer...
Ele está errado. As críticas à ditadura militar e a exigência pública de esclarecimento dos crimes cometidos pela repressão não são desafios às Forças Armadas, mas expressam o clamor pela apuração da ação de agentes do Estado que cometeram aqueles crimes hediondos e imprescritíveis. Que precisam ser apurados e punidos, em nome da democracia e da civilização. Eles sim são ‘sapos’ enfiados goela abaixo da Nação e que não podem ser aceitos e nem se pode calar sobre eles.

A comandante-em-chefe sou eu: este foi o recado de Dilma para as viúvas da ditadura. A ‘neutralidade’ reivindicada por eles é uma prerrogativa de casta inaceitável na democracia, regime no qual todos (chefes militares ou não) devem estar subordinados à Constituição. A apuração dos crimes cometidos durante a ditadura militar tem este sentido: o do respeito à Constituição. Respeito que não foi partilhado pelos golpistas de 1964, pelos generais e seus paus mandados que exerceram o poder e cometeram barbaridades condenadas, e que deixam saudades em setores conservadores cuja visão hierárquica da sociedade fundamenta a pretensão de terem direitos especiais e estarem a salvo da lei. Não estão.”

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

AINDA FALTA MUITO


Hoje o Brasil comemora 80 anos do reconhecimento do direito do voto feminino, ocorrido em 1932 sob Getúlio Vargas. É verdade que aqui não houve nada semelhante ao movimento das suffragettes (sufragistas), que mobilizou as mulheres na luta pelos seus direitos políticos no Reino Unido (final do século XIX/início do século XX). Em compensação, tivemos o pioneirismo do Rio Grande do Norte que, em 1928, autorizou o voto da mulher, que ainda não era permitido no Brasil. A primeira mulher escolhida para ocupar um cargo eletivo foi Alzira Soriano, eleita prefeita de Lajes (RN)naquele ano pelo Partido Republicano. Mas ela não terminou o seu mandato porque o Senado anulou os votos de todas as mulheres eleitas.


Depois, houve o empenho da figura combativa de Bertha Lutz, que organizou uma campanha pelo voto feminino no Brasil. Em 1919, quando as mulheres americanas conquistavam o direito ao voto, ela ajudou a fundar a Liga para a Emancipação da Mulher, embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, criada em 1922. Bertha representou o Brasil na Assembleia Geral da Liga das Mulheres Eleitoras, realizada nos Estados Unidos, tendo sido eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana.

A bandeira dos direitos políticos das mulheres foi levantada pela primeira vez ainda no século XVIII, em plena Revolução Francesa. Em 1790 o marquês de Condorcet defendeu, na Assembleia Nacional, o direito das mulheres de votar em igualdade de condições com os homens: “Ou nenhum indivíduo da espécie humana tem verdadeiros direitos, ou todos têm os mesmos; e aquele que vota contra o direito do outro, seja qual for sua religião, cor ou sexo, desde logo abjurou os seus”. Quase oitenta anos depois, em 1869, quando o Parlamento britânico rejeitou uma petição pelo voto das mulheres, o filósofo John Stuart Mill publicou o livro A Sujeição das Mulheres, uma das mais elegantes e claras defesas da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres feitas até hoje, mostrando o quanto é indefensável a subordinação do sexo feminino ao masculino.

O direito ao voto feminino foi aprovado pela primeira vez em 1893, na Nova Zelândia, onde o movimento era liderado por Kate Sheppard. Quatro anos depois, Millicent Fawcett fundava na Inglaterra a União Nacional pelo Sufrágio Feminino. O movimento feminino ganhou as ruas, com destaque para as ativistas da União Social e Política das Mulheres (Women's Social and Political Union, WSPU), movimento fundado por Emmeline Pankhurst (1858-1928) e que denunciava o sexismo da sociedade vitoriana. Depois de ser detida várias vezes, ela começou a incentivar a prática da greve de fome, o que chamou a atenção da opinião pública para a brutalidade do sistema legal da época. No Derby de 1913, a ativista Emily Wilding Davison se jogou à frente do cavalo do rei da Inglaterra, tornando-se a primeira mártir do movimento. Graças às atividades das sufragistas, o direito de voto feminino foi reconhecido em 1918 no Reino Unido.

Carlota Pereira de Queirós
No Brasil, a primeira mulher eleita deputada federal foi Carlota Pereira de Queirós (1892-1982), que tomou posse em 1934 e participou dos trabalhos da Assembleia Constituinte. Com a implantação do Estado Novo, em novembro de 1937, houve o fechamento do Legislativo e supressão das liberdades civis. A redemocratização de 1946 não trouxe nenhuma mulher para a Câmara dos Deputados. E até 1982, o número de mulheres eleitas para o Legislativo brasileiro poderia ser contado nos dedos da mão.

De acordo com o professor José Eustáquio Diniz Alves, somente com o fim da ditadura militar o número de mulheres começou a aumentar. “Foram eleitas 26 deputadas federais em 1986, 32 em 1994, 42 em 2002 e 45 deputadas em 2006 e 2010. Este número representa apenas 9% dos 513 deputados da Câmara Federal. No ranking internacional da Inter-Parliamentary Union (IPU), o Brasil se encontra atualmente no 142º lugar. Em todo o continente americano, o Brasil perde na participação feminina no Parlamento para quase todos os países, empata com o Panamá e está à frente apenas do Haiti e Belize. No mundo, o Brasil perde até para países como Iraque e Afeganistão, além de estar a uma grande distância de outros países de língua portuguesa como Angola, Moçambique e Timor Leste”.

Péssimo ranking para quem, diferentemente de países mais importantes como os Estados Unidos e a França, já elegeu a primeira mulher presidente da República.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O DIA EM QUE ADIARAM O CARNAVAL

Há exatos 100 anos morria o Barão do Rio Branco, nosso diplomata maior e patrono do Itamaraty. Ele era uma figura tão popular que, como morreu no Carnaval, o governo adiou o "tríduo momesco" para abril. Esse texto do meu amigo Marcos Guterman, escrito no ano passado, sintetiza um livro recente que trata da importância do Barão como "formador" da ideia de Brasil.    

Como Rio Branco inventou o Brasil


Por Marcos Guterman


O Estado de S.Paulo - 19/02/2011


Em tempos de ufanismo revisitado, que a propaganda estatal reduz ao "orgulho de ser brasileiro" em relação ao resto do mundo, o livro recém-lançado O Dia em Que Adiaram o Carnaval (Unesp), do diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, revela-se um ensaio precioso, ao reconstituir a invenção da nacionalidade brasileira.

O título da obra diz respeito à curiosa ordem do governo republicano de adiar o carnaval em respeito à morte de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, em 10 de fevereiro de 1912. Rio Branco tinha status de astro, porque lhe era atribuído o feito de ter desenhado as fronteiras do País - isto é, de ter dado um "corpo" à pátria que estava sendo criada.

Villafañe faz uma reflexão sobre o mito do Barão como construtor da nacionalidade e sua identificação com uma "certa ideia de Brasil" quase um século depois da independência. Trata-se de uma "paralisadora herança", como comentou o embaixador Rubens Ricupero a propósito da persistente imagem de um país que atua no exterior tendo como lastro o genoma da "tolerância natural do brasileiro", descrito por Stefan Zweig em Brasil, País do Futuro (1941).

O modo como o Brasil se enxerga no mundo, traduzido em sua política externa, é portanto o eixo em torno do qual Villafañe trabalha. A construção política dessa entidade, mostra o autor, começa como afirmação antilusitana e, ao mesmo tempo, como contraponto monárquico "ordeiro" ao "caos" republicano dos vizinhos latino-americanos. A "nação brasileira" que surge daí é formada por brancos europeus ricos. A escravidão criará o desconforto de uma imensa massa de pessoas que estão em toda parte, mas não integram a nação.

O sentido nacional só se completará no período republicano, mas a desigualdade social dificultou drasticamente a legitimidade do Estado. A "invenção" do Brasil, naquela oportunidade, dividia-se entre o passado português e a afirmação do mundo americano, sem lugar, contudo, para os brasileiros comuns.

Mesmo a república, porém, não ofereceu à massa, de imediato, um lugar na construção da identidade nacional brasileira. Foi preciso que houvesse a difusão das culturas ditas "subalternas", contaminando a atmosfera da elite com o carnaval e o futebol como elos da nacionalidade. Foi necessário ainda criar "heróis" para representar o evangelho republicano - e Tiradentes foi o primeiro deles, embora tenha sido representante de um movimento que nem de longe era nacionalista; mas o alferes (ou a imagem que foi criada para ele) era alguém construído para simbolizar a união dos cidadãos, a participação popular e a luta autêntica pela independência.

A identidade internacional do Brasil, diz o autor, tem como referência fundamental, desde seu início como país independente, a América - entendida primeiramente como os EUA e depois como as repúblicas latino-americanas. O Brasil foi o único país americano que, em sua independência, não desenvolveu proximidade com a ideia de ruptura com o modo de vida europeu. Com a república, o antiamericanismo monárquico foi substituído pela defesa do "espírito americano". É justamente com Rio Branco que a aliança com os EUA se consolida, sob a perspectiva de domínio geral estadunidense nas Américas e na hegemonia brasileira no nível sul-americano.

A partir de Getúlio Vargas, e desde então com esporádicos intervalos, a política externa brasileira se fundaria na dimensão do desenvolvimento econômico nacional em contraponto ao Hemisfério Norte, num apenas aparente afastamento do evangelho de Rio Branco. No início da Guerra Fria, o Brasil viu-se em condições de invocar o americanismo do Barão para cobrar tratamento preferencial dos EUA. A frustração com a resposta vaga de Washington a esse pleito - e também à promessa de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, feita pelo presidente Franklin Roosevelt a Vargas - empurrou o Brasil para uma aproximação maior com os demais países latino-americanos e para a ideia de que havia um bloco regional de subdesenvolvidos, entre os quais os brasileiros passaram a se incluir, que precisavam ser ouvidos.

Esse bloco se considerava moralmente superior às potências globais, porque seria vítima da corrida armamentista e das guerras imperialistas. Tal movimento rompeu a bipolaridade Leste-Oeste da Guerra Fria e estabeleceu a complexidade do debate Norte-Sul, com a defesa de um modelo de desenvolvimento fortemente estatal, em contraponto à doutrina democrático-liberal que se consideraria vitoriosa na queda do Muro de Berlim e que se fazia representar pelos EUA, justamente o "outro" na relação com a América Latina ao longo do século 20.

A identificação latino-americana, de tão importante para a nova etapa da ideia de nação brasileira, foi inscrita na Constituição de 1988. O discurso do Brasil hoje, sobre seu lugar no mundo, é fincado essencialmente na afirmação da liderança continental, ainda tendo como referência os EUA, numa inequívoca demonstração da resistência, mesmo controversa, da herança do Barão do Rio Branco - o nosso "Founding Father".

ENVELHECEI!

Trechos de um belíssimo texto da repórter Eliane Brum sobre a velhice e contra a estupidez da linguagem politicamente correta. Em determinado momento, me lembrei de Nelson Rodrigues quando perguntado que conselho daria aos jovens: "Envelhecei!" 

Me chamem de velha

A velhice sofreu uma cirurgia plástica na linguagem


ELIANE BRUM


Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”.

[...]

Os "Elders": Sen, Robinson, Annan, Mandela, Carter e Tutu
A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital.

[...]

Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos, mas ordinários da língua. O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma.

Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está. Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.

Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.

Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um livro chamado “O idoso e o mar”? Não. Como idoso o pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam...”.

Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.

[...]

Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar. É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.

Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.

[...]

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A QUEM SERVE A AUSTERIDADE?

Enquanto a Europa afunda como Titanic na crise fiscal e financeira, os mercados continuam exigindo austeridade, austeridade e austeridade - à custa de empregos, salários e da soberania cada vez maior dos países da zona do euro. O artigo de Paul Krugman discute esse obsessão e as alternativas a ela. 

Dor sem ganho (*)

Paul Krugman, no New York Times

Paul Krugman
Na semana passada, a Comissão Europeia confirmou o que todo mundo já suspeitava: as economias que ela monitora estão encolhendo, não estão crescendo. Ainda não é oficialmente uma recessão, mas a única pergunta verdadeira é: qual será a profundidade do declínio?

E este declínio está atingindo nações que nunca se recuperaram da última recessão. Apesar de todos os problemas dos Estados Unidos, o seu produto interno bruto finalmente ultrapassou o pico pré-crise; o da Europa, não. E algumas nações estão sofrendo em níveis da Grande Depressão: Grécia e Irlanda têm quedas de dois dígitos na produção, a Espanha tem desemprego de 23%, o colapso da Grã-Bretanha agora já dura mais do que o declínio dos anos 30.


Ainda pior, os líderes europeus – e um bocado de jogadores influentes aqui – ainda defendem a doutrina econômica responsável por este desastre.

As coisas não precisavam ir tão mal. A Grécia estaria afundada em problemas, não importa qual fosse a decisão de política adotada, e o mesmo é verdade, em menor extensão, a respeito de outras nações da periferia da Europa. Mas os problemas foram agravados mais do que o necessário pela forma com que os líderes europeus — e mais amplamente a política da elite — substituiram análises por moralização, lições da história por fantasias.


Especificamente, no começo de 2010 a austeridade econômica – a insistência de que os governos devem cortar gastos mesmo diante de altas taxas de desemprego – se tornou um mantra nas capitais europeias. A doutrina garantia que os efeitos negativos diretos do corte de gastos sobre o desemprego seriam cancelados pelas mudanças na “confiança”, que a economia com o corte de gastos levaria ao aumento do consumo e dos gastos das empresas, enquanto as nações que não fizessem esses cortes veriam uma evasão de capitais e alta das taxas de juros. Se isso soa, para você, como algo que Herbert Hoover teria dito, você está certo: soa e ele disse.


Agora, os resultados apareceram – e eles mostram exatamente o que três gerações de análises econômicas e todas as lições da história já deveriam ter lhes dito que aconteceria. A confiança praticamente não apareceu: nenhum dos países que cortou os gastos vivenciou a recuperação do setor privado que era prevista. Ao contrário, os efeitos depressivos da austeridade fiscal foram reforçados pela queda dos gastos do setor privado.


Ainda por cima, os mercados de bonds [títulos da dívida] continuam se recusando a cooperar. Até mesmo as grandes estrelas pupilas da austeridade, países que, como Portugal e Irlanda, fizeram tudo que foi exigido deles, ainda estão diante de altíssimos custos para tomar empréstimos. Por quê? Porque o corte de gastos deprimiu suas economias profundamente, reduzindo a base de arrecadação de impostos a ponto da relação dívida-PIB, o indicador padrão do progresso fiscal, estar piorando e não melhorando.


Enquanto isso, países que não embarcaram no trem da austeridade – mais notavelmente Japão e Estados Unidos – continuam a ter baixo custo de empréstimo, desafiando as previsões calamitosas dos falcões fiscais.

Mas nem tudo deu errado. No ano passado, os custos de empréstimo na Espanha e na Itália dispararam, ameaçando um desastre financeiro geral. Esses custos agora caíram, entre suspiros de alívio generalizados. Mas essa boa notícia foi, na verdade, um triunfo da antiausteridade: Mario Draghi, o novo presidente do Banco Central Europeu, deixou de lado as preocupações com a inflação e comandou uma grande expansão de crédito que era exatamente a “receita do médico”.


Então, o que vai ser preciso para convencer a Convenção da Dor, as pessoas dos dois lados do Atlântico que insistem que podemos cortar nosso caminho rumo à prosperidade, de que elas estão erradas?


Afinal, os suspeitos de sempre foram ligeiros em decretar como morta para sempre a ideia de estímulo fiscal depois que os esforços do Presidente Obama para produzir uma rápida queda no desemprego falharam – apesar de muitos economistas terem alertado antecipadamente que o estímulo era muito pequeno. Ainda assim, até onde posso ver, a austeridade ainda é considerada responsável e necessária, apesar de seu fracasso catastrófico na prática.

O fato é que poderíamos fazer muito para ajudar nossas economias simplesmente revertendo a austeridade destrutiva dos últimos dois anos. Isso também é verdade nos Estados Unidos, que evitaram austeridade total na escala federal, mas registraram grandes cortes de gastos e de empregados nos governos estaduais e municipais.

Apesar de tudo, Obama não embarcou na política de austeridade
Você se lembra de toda a barulheira sobre a existência de projetos prontos, em número suficiente, para tornar viável um grande programa de estímulo? Bem, não importa: tudo o que o governo federal precisa fazer para injetar ânimo na economia é dar ajuda aos governos locais, permitindo que esses recontratem centenas de milhares de professores que eles demitiram e retomem projetos de construção e manutenção que cancelaram.

Veja, eu compreendo porque as pessoas influentes relutam em admitir que ideias de políticas que achavam refletir profundo conhecimento na verdade resultaram em completa insensatez destrutiva. Mas já é hora de deixar para trás crenças ilusórias sobre as virtudes da austeridade em economias deprimidas.


(*) Do dito popular norte-americano: no pain, no gain (Se não há dor, não há cura).

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

VIRTUDES CÍVICAS E REALPOLITIK


Niccolò Macchiavelli

"A virtude pagã de Maquiavel é uma virtude pública, ao passo que a virtude judaico-cristã é, em geral, uma virtude mais privada. Um exemplo famoso de boa virtude pública e de virtude privada inadequada pode ser o do presidente Franklin Delano Roosevelt e suas nocivas fugas da verdade para fazer com que um Congresso isolacionista aprovasse a Lend-Lease Act (Lei de Empréstimos e Arrendamentos) de 1941, que permitia o empréstimo e arrendamento de materiais bélicos para os países aliados durante a Segunda Guerra Mundial. 'Na verdade', escreve o dramaturgo norte-americano Arthur Miller sobre Roosevelt, 'a humanidade está em dívida com suas mentiras'. Em seu Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, Maquiavel aprova a fraude quando ela é necessária ao bem-estar da pólis. Essa não é uma ideia nova ou cínica: Sun-Tzu escreque a política e guerra constituem 'a arte de enganar', a qual, se praticada com sabedoria, pode levar à vitória e à redução de baixas. O fato de esse preceito ser perigoso e facilmente manipulável não o despoja de suas aplicações positivas.

O cardeal Richelieu, pai da raison d'etat

"A característica que define o realismo é que as relações internacionais são governandas por princípios morais diferentes dos princípios de política interna - uma noção justificada pelas obras de Tucídides, Maquiavel, Hobbes, Churchill e outros. A necessidade de tal distinção foi enfatizada pelo nascimento do capitalismo moderno; o ímpeto pelo raison d'etat de Richelieu. O que é, afinal, o capitalismo moderno senão a raison d'économie? O racionalismo exigido para gerenciar as complexas operações econômicas do Estado francês burocratizado, que surgiu no início do século XVII, foi suplantando gradualmente a arbitrariedade individual dos barões feudais, propiciando o contexto ao pragmatismo de Richelieu em questões externas. George Kennan observa que a moralidade privada não é um critério para julgar o comportamento de Estados ou para comparar um Estado ao outro. 'Aqui, precisamos permitir que outros critérios, mais amargos, mais limitados, mais práticos, prevaleçam'. O historiador Arthur Schlesinger Jr. avisa que quando se trata de questões externas, a moralidade não está em 'alardear valores morais absolutos', mas na 'premissa de que outros países possuem suas próprias tradições,interesses, valores e direitos legítimos'.

O historiador grego Tucídides

"Reconhecendo que o bem e o mal em geral são dicotomias falsas quando se trata de Estados, Raymond Aron escreveu (mais uma vez ecoando Tucídides e Sun-Tzu) que a crítica ao idealismo 'não é apenas pragmática, mas também moral', porque 'a diplomacia idealista quase sempre escorrega para o fanatismo... Na verdade, a aceitação de um mundo governado pela noção pagã do interesse próprio, exemplificada por Tucídides, garante mais chances de sucesso à arte de governar: ele abrevia ilusões e reduz o espaço para erros de cálculo. O liberalismo fundamentado na história reconhece que a liberdade não surgiu de uma reflexão ou moral abstrata, ou de qualquer outra forma, mas das difíceis opções políticas feitas por governantes que agiam em seu próprio interesse. Conforme observa o clássico historiador dinamarquês David Gress, a liberdade surgiu no Ocidente principalmente porque servia ao interesse do poder." 

Robert D. Kaplan, Warrior politics: why leadership demands a pagan ethos  

domingo, 19 de fevereiro de 2012

PRÓ-MEMÓRIA: 50 ANOS DA NACIONALIZAÇÃO DA IT&T

Uma efeméride quase esquecida: os 50 anos da nacionalização da II&T no Rio Grande do Sul, pelo então governador Leonel Brizola. Trecho do blog Tijolaço, do deputado federal Brizola Neto: 

[...] Como se diz no recorte, a Companhia Telefônica Nacional, controlada pela americana IT&T – International Telephon and Telegraph – tinha o contrato de concessão vencido e exigia um novo prazo e subsídios para investir na rede de comunicações gaúchas.



Ao contrário do que muitos pensam, a encampação não foi um ato de força de Leonel Brizola. Ele tentou um acordo, com a criação de uma empresa de economia mista, dividida em 25% para o Estado do Rio Grande do Sul, 25% por cento para a IT&T e 50% para os usuários – a linha telefonica dava ações da empresa, para quem se recorda. A ITT não aceitou.

Foi nomeada, então, uma comissão arbitral, para apurar o valor da empresa. A ITT indicou um e Brizola indicou outro avaliador, o professor Luis Leuseigneur de Faria, diretor da Faculdade de Engenharia da UFRGS e seu adversário político. A IT&T recusou-se a aceitar o laudo arbitral e exigiu nova avaliação.


Só então Brizola ajuizou uma ação judicial, desapropriando a empresa pelo valor arbitrado, do qual se descontou o valor dos investimentos do Estado na rede telefônica e as remessas de lucro obtidas fora do período da concessão. E foi naquele fevereiro de 1962 que, imitido na posse da empresa, o Governo gaúcho assumiu o controle do que seria a CRT, hoje.


Apesar de negociada e judicialmente amparada, a atitude de Brizola soou, para a direita, como um ato “revolucionário”. Já marcado pela desapropriação da elétrica Bond and Share, dois anos antes, Brizola foi transformado por isso, num perigoso “Fidel Castro” brasileiro, como se vê nos trechos do The Washington Post publicados no Jornal do Brasil de 27 de fevereiro daquele 1962, que recolho da dissertação do professor César Rolim.

"Os norte-americanos estão finalmente se dando conta de quem é o brasileiro considerado o candidato mais provável a fazer o papel de Fidel Castro, num país muito mais importante para a segurança do Hemisfério do que a pequena ilha de Cuba. Seu nome é Leonel de Moura Brizola e é atualmente governador do Rio Grande do Sul, um demagogo perigoso, hábil e infinitamente ambicioso. Este governador sabe que os países estrangeiros são alvos fáceis no Brasil. Pouco se importa pelo efeito que as expropriações possam ter sobre a opinião pública norte-americana, e conta com a confusa situação no Brasil para dar-se oportunidade de exercer um papel destacado no mais populoso país da América Latina. A prosseguirem esses acontecimentos no Brasil, será bom recordar que o ditador de Cuba pode dirigir o destino de uma pequena ilha, mas o líder do Brasil poderá influenciar o curso da história em toda a América Latina."       

O então governador gaúcho Leonel Brizola

E a IT&T, que não era “subversiva” ajudou a financiar os golpes que deporiam os governos eleitos do Brasil, em 64, e do Chile, em 19743, claro.

O processo de modernização da telefonia brasileira, iniciado por JK com a nacionalização parcial da Companhia Telefônica Brasileira, recebia ali um imenso impulso e seria um brizolista, o Coronel Dagoberto Rodrigues, que criaria as bases para a criação da Embratel.


Hoje, sem ela, e com a Telebras neste “será-que-vai-será-que-não vai”, o Brasil está desprovido de qualquer controle público sobre a atividade de telecomunicações, uma das mais importantes numa economia cada vez mais dependente dela.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

AS METAMORFOSES DO DEMO


Lilith
 DEMÔNIO: do latim daemoniu, tendo vindo do grego daimónion, ente sobrenatural, tido por gênio do bem ou do mal, mas que depois que se fixou apenas no segundo sentido. Apesar de o demônio ser masculino, há uma exceção, a demônia Lilith, a primeira esposa de Adão. Depois de dar-lhes muitos filhos, Lilith, talvez por falta de opção - havia um único homem na face da terra - juntou-se ao demônio Samael. Esta tradição judaica é comentada no famoso livro de Giovani Papini, O diabo: "os antigos hebreus, talvez na esperaça de fazer perdoar mais facilmente a Eva o seu pecado,
contaram que antes dela Adão tivera uma outra esposa, Lilith". O demônio costuma estar em muitos lugares, mas às vezes resolve morar numa pessoa. É quando precisa ser exorcizado, pois é muito mandão e leva seus hospedeiros a praticar todo tipo de safadezas. 
Deonísio da Silva, A vida íntima das palavras.

AS LITANIAS DE SATÃ

Ó tu, anjo mais belo e sábio entre teus pares,
Deus que a sorte traiu e expulsou dos altares,

Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria!

Ó Príncipe do exílio, a quem fizeram mal
E que, vencido, sempre te ergues mais triunfal,

Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria!

Tu que vês tudo, ó rei das trevas soberanas,
Charlatão familiar das angústias humanas,

Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria!

Charles Baudelaire

Tu que, mesmo ao leproso e ao pária, se preciso,
Ensinas por amor o amor do Paraíso,

Tem piedade, ó Satã, da minha atroz miséria!

Tu que da Morte, tua antiga e fiel amante,
Engendraste a Esperança - a louca fascinante!

Tem piedade de mim, ó Satã, de minha atroz miséria!

Tu que dás ao proscrito esse alto e calmo olhar
Que leva o povo ao pé da forca a desvairar,

Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria!
(Charles Baudelaire)
  

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

SAUDADES DA REPÚBLICA VELHA


Redatores do Estadão ao tempo de Olavo Bilac (mão no queixo)

Reproduzo abaixo a excelente análise sobre a preferência dos paulistanos pelo Estadão postada no blog Náufrago da Utopia, do Celso Lungaretti. É a adesão ao ideário liberal-conservador dos Mesquita, capaz de lutar contra a Abolição, o nacional-desenvolvimentismo de Getúlo e JK e de apoiar o golpe de 1964, mas combater o AI-5. E esconjurar tudo o que cheire às esquerdas, a Lula e ao PT.        

O ESTADÃO É O GRANDE FOCO DIREITISTA DO PAÍS

do blog Náufrago da Utopia

Segundo o Instituto Verificador de Circulação, O Estado de S. Paulo é o jornal mais vendido na capital paulista, na Grande São Paulo e no Estado como um todo, enquanto a Folha de S. Paulo só o supera no interior paulista, mas mantém a liderança nacional por circular mais nos outros estados.


Tais dados são perfeitamente coerentes com a realidade política paulista e paulistana.

O Estadão é o veículo de uma direita ideológica que remonta à aristocracia cafeeira. Conservador por excelência, foi peça importante na conspiração para a derrubada do presidente constitucional João Goulart.

Isto conflitava um pouco com o papel que o jornal desempenhou na ditadura getulista, quando esteve até sob intervenção. Então, depois de, segundo alegou, ter ajudado a salvar o País da ameaça comunista, passou a pregar insistentemente a devolução do poder aos civis, uma vez que a intervenção cirúrgica já teria saneado as instituições.

Ou seja, as cassações de mandatos, a extinção arbitrária de partidos e entidades, os expurgos e mudanças impostas pela força, as prisões e torturas, tudo isso já teria limpado o terreno para a burguesia poder voltar a exibir sua face civilizada...

O Estado, dezembro de 1968, depois do AI-5 

Ressalvas feitas, a resistência dos jornais do Grupo Estado à censura e ao terrorismo de estado merece respeito. Afora o trivial que todos destacam (as poesias de Camões que o Estadão colocava no espaço de trechos ou de notícias inteiras censuradas, bem como as receitas culinárias que tinham a mesma serventia no Jornal da Tarde), houve dois episódios em que seus diretores mostraram, inclusive, coragem pessoal:


• quando mandaram os seguranças impedirem o DOI-Codi de invadir a redação para prender um jornalista, tendo o Mesquita de plantão dito a frase célebre de que "ele pode ser comunista lá fora, mas aqui dentro é meu funcionário" (depois, abrigou-o no próprio sítio);


• quando, depois da morte de Vladimir Herzog, decidiram acompanhar os jornalistas da casa arrolados no mesmo inquérito sempre que chamados a depor no DOI-Codi, a fim de garantirem pessoalmente sua integridade física.


Mas, embora repudie os excessos no exercício do poder burguês, o Estadão é o jornal brasileiro mais afinado com a sua essência - ao contrário dos comerciantes da Folha de S. Paulo, cuja postura oscila oportunisticamente ao sabor dos ventos políticos, ora cedendo viaturas para o serviço sujo da repressão, ora ajudando os Golberys da vida a recambiarem o País para a civilização...

A supremacia do Estadão em São Paulo é consistente com o fato de ser um Estado sob governos tucanos desde 1995; e na cidade de São Paulo, com o de ela, desde a redemocratização, haver tido várias gestões direitistas e somente duas, digamos, desalinhadas (as de Luíza Erundina e Marta Suplicy).

Também faz todo sentido que São Paulo esteja sendo o laboratório de testes das novas fórmulas golpistas, com a franca adoção de respostas policiais para os problemas sociais servindo para aferir a resistência que a fascistização provocará.

Ainda bem que a operação desastrada na cracolândia e a barbárie no Pinheirinho despertaram uma opinião pública que parecia anestesiada quando da invasão da USP por brucutus e da fixação de uma tropa de ocupação em pleno campus universitário (suprema heresia!).

Mas, a cena paulista deve continuar sendo observada com muita atenção pelos verdadeiros democratas. Pois, qualquer atentado às instituições, para quebrar a continuidade de administrações petistas (bem toleradas pelos EUA e pelo grande capital, já que mantiveram seus privilégios, mas não pelas viúvas da ditadura e por alguns setores setores extremados da burguesia), começará, necessariamente, por São Paulo.

Vale lembrar: foi em São Paulo que o Cansei! tentou organizar uma nova (mas frustrada...) Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade.

E é em São Paulo que a truculência policial volta a ser exercida exatamente como nos tempos da ditadura militar, por efetivos que até hoje cultivam descaradamente a nostalgia do arbítrio.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

CQD – COMO QUERÍAMOS DEMONSTRAR

Segundo a Forbes, o abuso de drogas caiu pela metade em Portugal dez anos depois da descriminalização. Abaixo, reproduzo o texto citado da revista e outro, este cometido por este escriba há uma década na IstoÉ online, quando as medidas de liberalização foram adotadas na terrinha.


Dez anos após a descriminalização, abuso de drogas cai pela metade

Da Forbes

Defensores da guerra contra as drogas frequentemente dizem que o uso de drogas explodiria se nós legalizássemos ou descriminalizássemos seu consumo.


Felizmente, nós temos um exemplo real dos resultados de se por fim na guerra contra as drogas e substituí-la por um sistema de tratamento para usuários e dependentes.


Dez anos atrás, Portugal descriminalizou todas as drogas. Uma década após este experimento sem precedentes, o abuso de drogas caiu pela metade:


"Especialistas em saúde de Portugal disseram na sexta que a decisão de descriminalizar o uso de drogas e tratar viciados, ao invés de puni-los, é um experimento que deu certo.


'Não há dúvidas de que o vício está em declínio em Portugal', afirmou João Goulão, presidente do Instituto de Drogas e Adicção em Drogas, em uma conferência que marca o décimo aniversário da lei.

Outros fatores também foram importantes, diz Goulão. 'Este resultado não pode ser atribuido apenas à descriminalização, mas também à confluência de tratamento e políticas de redução de danos'".

Muitas dessas políticas de tratamento não teriam surgido se os dependentes continuassem a ser presos e encarcerados ao invés de tratados por médicos especialistas e psicólogos.

E ista é uma maneira bem mais econômica e humana de resolver o problema. Ao invés de prender 10 mil indivíduos, os portugueses estão trabalhando para curar 40 mil pacientes, e fazendo pequenos ajustes no tratamento contra a dependência, ao mesmo tempo em que adquirem mais conhecimento sobre o assunto.


Drogas: um problema de repressão, cidadania ou saúde pública?

Por Cláudio Camargo, editor de Internacional


A Assembléia Nacional (Parlamento) de Portugal acaba de aprovar uma ousada legislação que descriminaliza o uso de drogas no país. Buscando substituir a punição pelo tratamento, a lei prevê que os usuários flagrados com drogas não serão mais presos pela polícia, mas encaminhados para tratamento médico. Já os consumidores que não forem dependentes terão de pagar multas entre US$ 30 e US$ 140. O autor do projeto, o deputado socialista Vitalino Canas, afirma que a nova lei cumpre uma “função social, ao mesmo tempo que deixa claro que o uso de drogas faz mal e continua proibido”.

Apesar de ser ainda discutível em termos de direitos civis – em última instância, é o cidadão quem deveria decidir o que é ruim ou bom para si próprio –, a iniciativa representa um notável avanço, principalmente num país que há apenas uma geração estava mergulhado no obscurantismo salazarista. Com isso, Portugal une-se à Espanha e à Itália no rol dos países que descriminalizaram oficialmente o uso de drogas. Ironicamente, os três são países latinos com forte tradição católica – o que supostamente os faria mais conservadores. Mas o fato de eles terem legislação mais avançada sobre o consumo de drogas deveria fazer pensar aqueles que crêem que a modernidade é um apanágio da mentalidade capitalista e protestante de Tio Sam. Pelo menos em termos de comportamento, o Grande Irmão do Norte ainda está na Idade das Trevas.

Apreensão de drogas na Colômbia

Veja-se, por exemplo, o pacote de ajuda econômica à Colômbia de US$ 1,3 bilhão aprovado recentemente pelo Congresso dos EUA. Trata-se de assistência basicamente militar para o combate ao narcotráfico naquele país, responsável por cerca de 80% das drogas consumidas pelo rico “mercado” do Norte. A mentalidade de Washington sobre o problema beira à infantilidade: já que não conseguem convencer seus cidadãos a deixar de consumir drogas, as autoridades americanas acreditam que o negócio é eliminar o narcotráfico nos países “produtores”. Quem mais sofre com essa política são os camponeses da Colômbia, da Bolívia e do Peru, que, empobrecidos, não têm outra alternativa a não ser cultivar a folha de coca, muito mais rentável do que qualquer outra cultura.


Forma-se o círculo vicioso: os EUA armam Exércitos, que montam milícias paramilitares de extrema-direita, que passam a servir aos barões da droga. Os camponeses morrem no fogo cruzado ou são obrigados a abandonar suas terras. E os lucros do narcotráfico continuam tão promissores – afinal, a demanda sobe em progressão geométrica – que vale a pena correr todos os riscos. Nos últimos dez anos, por exemplo, Tio Sam entupiu a Colômbia de dólares, assessores e equipamento militar, mas a produção de drogas não parou de crescer, assim como a espiral de violência e da violação de direitos humanos. Os cartéis de Medellín e de Cali foram desmantelados apenas para dar lugar, como cogumelos depois da chuva, a uma miríade de microcartéis cada vez mais poderosos.


Poucos duvidam que o crescente consumo de drogas no mundo seja hoje um problema dramático. Basta lembrar daquele triste espetáculo representado por jovens drogados perambulando por parques de algumas cidades europeias. Isso sem falar das nossas infames "cracolândias" – mas essa já é outra história. Por isso mesmo, querer separar as duas pontas da questão – a produção do consumo – tratando tudo como se fosse um item de “segurança nacional”, como fazem os EUA, atacando os países produtores, só faz aumentar o poder da máfia globalizada. Parece que Tio Sam se esqueceu da catástrofe que foi o período da famigerada Lei Seca (1919-1933).

Lembra-se da Lei Seca? Ela não funcionou

Dizem que nunca se bebeu tanto nos EUA – e mal, já que muitas bebidas eram falsificadas – quanto naqueles tempos sombrios da proibição. Mas o pior é que aquela estúpida legislação puritana só conseguiu fazer com que um problema de saúde pública, o alcoolismo, virasse uma questão de polícia – ou de bandidagem, já que a criminalidade deixou de ser um empreendimento amador para se tornar empresarial. Nascia o crime organizado. Incapazes de aprender com a própria história, as autoridades americanas, feito avestruzes, reproduzem agora o erro em escala ampliada - ou globalizada.


A iniciativa de Portugal de descriminalizar o consumo de drogas representa um pequeno, mas importante passo adiante na discussão do problema. Trata-se de saber se queremos tirar as drogas do âmbito da criminalidade para inscrevê-las na dupla ótica do direito dos cidadãos e da saúde pública. Como hoje são o cigarro e o álcool. Até setores conservadores como a revista britânica The Economist e o pensador ultraliberal Milton Friedman defendem, há anos, a legalização das drogas como um mal menor à hipocrisia representada pela atual situação, que não impede o crescimento do consumo, da criminalidade e da repressão inócua.


É possível que, se um dia a descriminalização se generalizar, enfrentaremos sérios problemas com o aumento do número de dependentes. Mas talvez o custo econômico e social da prevenção e do tratamento seja muito menor do que manter a proibição ao consumo, tendo de militarizar a periferia do mundo desenvolvido para combater, sem sucesso, a única beneficiária da proibição: uma máfia cada vez mais poderosa, perigosa e globalizada.