Trata-se de um blog despretensioso de um jornalista dublê de sociólogo que deixou as grandes redações depois de ter acumulado décadas de experiência e, em função disso, acredita que tenha algo a transmitir a eventuais leitores... além de, claro, cumprir o dever de ofício de ajudar a "desafinar o coro dos contentes", como dizia Torquato Neto, e de "consolar os aflitos e afligir os consolados", como pregava Joseph Pulitzer.
O cidadão anônimo contra os tanques: que fim levou?
Em junho de 1989, correu mundo
a foto de um cidadão que se colocou à frente dos tanques do Exército chinês que
rumavam à Praça da Paz Celestial em Pequim para reprimir as manifestações estudantis
contra o regime comunista. Nunca se soube quem era o rebelde desconhecido, nem
seu destino. Surgiram muitas teorias; alguns disseram que ele teria sido morto
pela polícia, ao lado dos outros milhares de estudantes assassinados durante aquele
episódio que ficaria conhecido como o “Massacre da Paz Celestial”. Outras
versões dizem que o rebelde sem rosto teria sido executado dias após o
incidente; ou fuzilado meses depois do protesto. Há quem diga ainda que ele está
vivo, escondido no interior da China ou em Taiwan. A verdade não veio à tona até hoje, mas
aquela imagem se tornou uma das mais icônicas do sangrento século XX.
Rachel contra o bulldozer: o motorista foi pior que o tanquista chinês
Mas há outra
imagem igualmente dramática e com final trágico que não teve a mesma divulgação
na grande mídia. Trata-se da militante pacifista americana Rachel Corrie, que
em 2003, aos 23 anos, foi para Israel protestar contra a demolição de casas de palestinos
expulsos pelas chamadas Forças de Defesa de Israel – nome das Forças Armadas do
país. Na Faixa de Gaza, ela se colocou na frente de um trator bulldozer que trabalhava
na demolição das casas. Mas, ao contrário do tanquista chinês, o motorista do buldozer
não parou; ele não apenas atropelou deliberadamente a militante, como deu marcha
à ré para passar sobre seu corpo novamente.
Rachel Corrie
No último dia 27,
a Justiça israelense deu seu veredicto: ela decidiu que
o militar que dirigia o bulldozer não teve culpa, nem comportamento negligente.
O tribunal inclusive sugeriu que Rachel foi a culpada por sua morte. Essa situação mostra que, sob a liderança de Netanyahu e Lieberman, Israel jogou na lata do lixo o legado do humanismo judeu. A exceção ficou por conta do grupo Jewish Voice, formado por judeus
democratas que se opõem à política de repressão israelense ao povo palestino. Eles iniciaram uma campanha para que os investidores
americanos vendam ações da Caterpillar, a fabricante dos tratores usados pelo
Exército israelense para demolição casas e edifícios palestinos. Não dará em nada, mas é um gesto digno de inconformismo. É o que resta.
O presidente da Colômbia,
Juan Manuel Santos, anunciou que seu governo iniciará conversações com
representantes das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), o
principal grupo guerrilheiro do país. O processo ocorrerá em Oslo (Noruega) e
terá a mediação dos governos da Venezuela, Cuba e Noruega. Trata-se de mais uma
tentativa de pôr fim a um conflito de décadas e matou mais de 300 mil
colombianos.
O Bogotazo, em 1948
Ao contrário do que alardeia
a grande mídia, mais preocupada em propagar rótulos e visões maniqueístas, a
origem desse conflito é a brutal concentração de propriedade da terra e a conseqüente
desigualdade social. O assassinato do político reformista Jorge Eliécer Gaitán,
em abril de 1948, provocou violentas manifestações populares que ficaram
conhecidas como o Bogotazo, em que
milhares de pessoas morreram. Abriu-se um período de guerra civil no campo –
conhecido como La Violência – entre
os partidários dos partidos Liberal e Conservador. Em uma década, cerca de 200
mil colombianos foram mortos. A disputa por terras era o leitmotiv da violência. Esse período encerrou-se em 1958, quando os
dois partidos fizeram um acordo para acabar com os conflitos, mas deixaram a
questão agrária sem solução. Em 1964, o Partido Comunista da Venezuela fundou
as FARC aglutinando camponeses antes ligados ao Partido Liberal.
Guerrilheiros das Farc
A história das FARC é
tortuosa. No início, eles foram uma guerrilha camponesa clássica, engajada em
combates na selva e na conquista de territórios. Militarmente, eles eram uma
miscelânea heterodoxa das práticas de Che Guevara e de Mao Tsé-tung, embora
jamais admitissem isso. As FARC chegaram a controlar cerca 40% do território
colombiano, a maioria na região amazônica, e a ter um contingente de 17 mil
homens (e mulheres) em
armas. Suas ações fizeram surgir os grupos paramilitares de extrema-direita,
ligados aos proprietários de terras e ao narcotráfico e treinados pelo
Exército. Eram esquadrões da morte que realizavam verdadeiros experimentos de
“limpeza social”, eliminando camponeses e roubando suas terras para realizar projetos
agroindustriais para lavar o dinheiro do narcotráfico. Neste contexto, a
violência só tendia a crescer.
O envolvimento das FARC com o
narcotráfico, portanto, não é constitutivo do movimento, mas decorrência do
domínio dessa atividade ilegal na economia colombiana. No início, os
guerrilheiros davam proteção a camponeses que eram ameaçados pelos
paramilitares. Depois, passaram a proteger os trabalhadores que cultivavam
drogas para vendê-las aos traficantes. A guerrilha então deu o passo fatal e
entrou no negócio para arrecadar fundos pensando que tinha meios de manter o
controle. Acabou sendo engolida por ele. Essa aliança com os narcos e prática
de seqüestros para extorquir dinheiro fez da organização um grupo bandoleiro.
Militantes da Unión Patriótica assassinados
A aposta do governo colombiano
agora em negociar o fim dos conflitos é ousada. Até porque já houve outras, no
passado, que fracassaram rotundamente. A mais dramática foi primeira, nos anos
1980, afogada em fogo e sangue. As FARC tinham concordado em depor as armas se
transformar em partido político, a Unión Patriótica (UP). A UP teve grandes vitórias, encerrando o
domínio dos liberais e conservadores e conquistando mais de 300 prefeituras, dez
cadeiras no Senado e mais de 50 cadeiras na Câmara. Mas o candidato da UP a
presidente, Jaime Pardo Leal, foi morto a tiros em um comício. Menos de um ano
depois, as elites, os barões da droga e o Exército, com apoio dos EUA,
desencadearam uma guerra contra a UP e assassinaram mais da metade dos
deputados e prefeitos eleitos. No total, três mil militantes foram massacrados.
Acuadas, as FARC tiveram que reorientar sua política e voltar às selvas.
O Estado-Maior das Farc, com Mono Johoy e Marulanda (Tirofijo)
Na
tentativa mais recente, em 1999, o governo desmilitarizou uma área de 42 mil
km², interrompeu as operações militares e iniciou conversações. Desta vez a
guerrilha não aproveitou a chance e as negociações fracassaram. Veio então o
Plano Colômbia e depois o governo de Álvaro Uribe, um tipo ligado aos
paramilitares que apostou na repressão sem tréguas à guerrilha. As FARC foram
enfraquecidas – vários líderes foram assassinados – mas não vencidas. Agora o
presidente Santos, antigo pupilo de Uribe – foi seu ministro da Defesa,
responsável pela repressão –, joga a carta da negociação. Uribe já saiu rosnando.
Mas, desta vez, parece que todos - governo e guerrilha - têm interesse em chegar a um acordo. Consta que o governo estaria disposto até a iniciar uma reforma agrária - o que acabaria com a causa maior do conflito. E, por mais que Uribe esperneie, já está demonstrado que a guerrilha, golpeada, não consegue avançar, mas tampouco o Exército consegue
dizimá-la. Alea jact est!
Em 2011, em que pese ainda
sentirem os efeitos da crise econômica mundial, os Estados Unidos bateram o
recorde de venda de armas ao exterior, atingindo US$ 66,3 bilhões, valor três
vezes maior do que o alcançado no ano anterior (US$ 21,4 bilhões). Esta soma
representa nada menos que 2/3 do total mundial de 2011 – US$ 85,3 bilhões. A
Rússia vem num distante segundo lugar, com meros US$ 4,8 bilhões em vendas.
Caças F-15 Eagle sobrevoam o céu da Arábia Saudita
A maior parte das vendas de
armas americanas destinou-se aos países do Golfo Pérsico (Arábia Saudita,
Emirados Árabes Unidos e Omã), que estão preocupados com o aumento de tensão
entre Israel e Irã. Os Estados do
Golfo temem serem atacados pelo Irã em caso de conflito, pois eles são fiéis aliados
dos EUA na região.(Será mera coincidência o alarmismo da grande mídia em
relação ao “perigo iraniano”?). Esses países compraram caríssimos caças e
helicópteros ultramodernos, além de sofisticados sistemas de defesa antimísseis.
Helicóptero Black Hawk
De acordo com o Times, a
Arábia Saudita comprou 84 caças F-15, dezenas de helicópteros Black Hawk e
Apache, sistema de mísseis e logística, além de modernizar 70 caças F-15,
gastando a bagatela de US$ 33,4 bilhões. Os Emirados compraram um escudo antimísseis
e 16 helicópteros Chinook por US$ 939 milhões e Omã comprou 18 caças F-16 por
US$ 1,4 bilhão.
Nenhuma surpresa. A produção
e venda de armas é essencial ao império americano. Um pouco de história:
Em 17 de janeiro de 1961, no
seu discurso de despedida, o presidente americano Dwight Eisenhower alertou
seus compatriotas sobre as graves implicações de um novo fenômeno na história
americana: “a conjunção de um imenso establishment militar e uma grande
indústria de armamentos”, que ele denominou “Complexo Industrial-Militar”. Os
gastos militares daquela época, dizia Eisenhower, consumiam “mais do que o
lucro líquido de todas as corporações dos Estados Unidos”. Com essa dinherama à
disposição do Complexo Militar Industrial, o presidente alertava contra uma
influência negativa sobre a sociedade americana que ia além da esfera econômica
e política e atingia até a dimensão espiritual.
O presidente Eisenhower adverte contra o "Complexo Militar-Industrial"
Eisenhower era militar; ele foi
o grande herói americano da II Guerra Mundial. Seus sucessores, todos civis, a
começar por John Kennedy, só fizeram aumentar os gastos militares dos EUA e a
alimentar o Complexo Militar Industrial. Um filme idiota, JFK, de Oliver Stone,
tenta dizer que Kennedy foi assassinado, entre outras coisas, porque contrariou
os interesses do “complexo”. Trata-se de uma ignorância histórica completa do
período, já que Kennedy fez campanha falando de um inexistente “gap missile”
dos EUA em relação à URSS. No poder, ele investiu pesadamente na modernização e
ampliação do arsenal nuclear americano.
Além do fato de uma advertência daquele tipo ter
partido de um presidente com origem
militar, o alerta de “Ike” chama atenção também porque, na época, mundo vivia o
auge da Guerra Fria e os EUA se sentiam ameaçados pela União Soviética, que
tinha capacidade semelhante à dos americanos de destruir o mundo várias vezes
com seu arsenal nuclear.
Cinqüenta anos depois e 20 anos após o fim da Guerra
Fria e o colapso da União Soviética, os gastos dos EUA com despesas militares
mais do que dobraram em relação ao período que Eisenhower pronunciou seu
discurso.
Há 70 anos, no dia 22 de
agosto de 1942, o Brasil declarava guerra às potências do Eixo (Alemanha,
Itália e Japão). Com isso, o país se tornaria a única nação latino-americana –
ao lado do México – a engajar tropas ao lado dos aliados. A declaração de
guerra veio depois que submarinos alemães e italianos torpedearam vários navios
mercantes na costa brasileira e na costa americana, matando mais de mil pessoas,
a maioria civis.
No início do conflito,
Getúlio Vargas tentou manter a neutralidade do país, tanto em função das
facções que compunham o governo – germanófilos e americanófilos – quanto em razão dos interesses econômicos, pois exportávamos matérias primas (café e
borracha) para os EUA e para a Alemanha. Mas os Estados Unidos, que ajudavam os
britânicos antes mesmo de entrar na guerra, pressionavam o Brasil para abandonar a neutralidade, pois precisavam de materiais estratégicos e da autorização para construir instalações militares no Nordeste brasileiro. Pragmático, Vargas topou o alinhamento, obtendo em troca dos
americanos o financiamento para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e o reequipamento das Forças Armadas.
Em 1940, por iniciativa de
Washington, os países latino-americanos assinaram em Havana um termo de
solidariedade continental em caso de agressão externa a qualquer país do
continente. O presidente Franklin Roosevelt incentivou a assinatura de vários
acordos com o Brasil e iniciou uma campanha ideológica contra a presença alemã
no continente americano. O governo brasileiro chegou a fechar escolas e a confiscar
estabelecimentos alemães e italianos. Depois do ataque do Japão à base
americana de Pearl Harbour, em dezembro de 1941, o alinhamento do Brasil aos
EUA se tornou inevitável. Em janeiro de 1942, na Reunião dos Chanceleres do Rio
de Janeiro, o Brasil rompeu relações diplomáticas com os países do Eixo. Estava
dado o pretexto para que alemães e italianos começassem a torpedear navios
brasileiros.
Manifestação pela entrado do Brasil na guerra
Mas a declaração de guerra
não pode ser entendida apenas do ponto de vista do xadrez geopolítico. Houve pressão
popular para que o Brasil entrasse no conflito contra o nazi-fascismo. A
população enfrentava restrições impostas pela guerra, com racionamento de
vários produtos. Sob a liderança de entidades civis como a UNE (União Nacional
dos Estudantes), foram organizadas grandes manifestações em favor da declaração
de guerra ao Eixo. E é preciso lembrar que vivíamos, então, sob o tacão do Estado
Novo. As manifestações, inclusive, levaram à queda do temido chefe de polícia
do regime, o capitão Filinto Müller – um dos germanófilos no governo e uma
espécie de Sérgio Paranhos Fleury avant
la lettre.
E os pracinhas fizeram
bonito. A Força Expedicionária Brasileira (FEB) enviou um contingente de 25 mil
soldados para lutar na Itália, incluindo os pilotos do 1º Grupo de Aviação de
Caça da FAB (Força Aérea Brasileira). Despreparados, mal equipados e mal
treinados, os pracinhas foram objeto de zombaria das tropas do V Exército
americano, ao qual estavam integrados. Diziam que brasileiros lutando na guerra era como se a cobra fumasse. E a cobra fumou! A despeito de tudo isso, a FEB mostrou-se
valorosa, superando as dificuldades, travando e vencendo batalhas importantes, como Monte Castello e
Montese. Os brasileiros aprisionaram quase 20 mil alemães. Quase 500 pracinhas tombaram nos campos de batalha italianos.
Soldados da FEB lutando na Itália
E tem muita viúva da ditadura
que quer emporcalhar esse legado heróico de luta contra o nazi-fascismo das
Forças Armadas brasileiras defendendo facínoras como o coronel Brilhante Ustra,
o brigadeiro João Paulo Burnier, o major Curió, entre outros, sem falar dos
generais-presidentes. São dois exércitos diferentes.
Este vídeo americano, que
enaltece a aliança entre o Brasil e os EUA contra o Eixo, é pura propaganda, mas tem imagens muito boas.
Nesta entrevista reproduzida abaixo, o veterano
cientista político Kenneth Waltz defende o direito de o Irã ter a bomba atômica - já que Israel tem a sua - e diz que o equilíbrio do terror entre EUA e URSS e Índia e Paquistão conseguiu
reduzir o perigo de grandes conflitos. Numa análise fria e pragmática, ele não
invoca qualquer questão moral para sustentar sua posição, mas ampara-se em
conceitos geopolíticos de equilíbrio do poder, como um bom representante da
escola realista - neorrealista, no caso - de relações internacionais e um legítimo herdeiro de mestres
como Edward H. Carr, Hans Morgenthau e George Kennan.
Kenneth Waltz e “porque o Irã deve ter a bomba”
Do The Diplomat
Kenneth Waltz conversa com Zachary Keck sobre seu
controverso artigo na Foreign Affairs, ”Why Iran
Should Get the Bomb”, sobre a China, os problemas entre Índia-Paquistão,
terrorismo e mais.
Ao longo dos anos você entrou no debate político em
apenas algumas ocasiões de sua escolha, como nas críticas à guerra dos Estados
Unidos no Vietnã. Isso me leva a perguntar: o que o fez escrever sobre a
questão nuclear iraniana?
Pensei que era uma questão importante que não estava
sendo discutida adequadamente. A questão estava sendo definida de forma
estreita, em termos do Irã. Mas há outras lições importantes além do país e da
região que precisam ser consideradas e que podem ser aplicadas ao caso do Irã.
Eu estava interessado no que poderia contribuir neste aspecto do debate. Mas
fiz isso principalmente porque a [revista] Foreign Affairs pediu.
Os formuladores de política trabalham da perspectiva de
seus próprios interesses nacionais. Como você nota no artigo para a Foreign
Affairs, Israel obtém benefícios substanciais com seu monopólio nuclear
regional e um Irã nuclearmente armado reduziria significativamente a liberdade
de ação de Israel e dos Estados Unidos na região. Qual é o incentivo para que
formuladores de política israelenses e norte-americanos evitem que o Irã
obtenha armas nucleares?
O míssil balístico Jerico III: só Israel pode?
Claramente Israel tem um grande interesse em evitar
que o Irã se torne um estado nuclear. Não acho que o mesmo se aplique aos
Estados Unidos. O interesse norte-americano de longo prazo é que a região seja
estável e pacífica. A existência de um único poder nuclear sem equilíbrio é
receita para instabilidade a longo prazo. O dado impressionante é que Israel
tenha conseguido se manter o único poder nuclear por tanto tempo! Neste
sentido, Israel é uma anomalia. A anomalia será removida se o Irã se tornar um
poder nuclear.
Quando o governo Obama assumiu o poder, muitos
ofereceram a visita de Nixon à China como um modelo que o presidente Obama
poderia seguir para acabar com a natureza contraditória das relações Estados
Unidos-Irã. Não se disse, no entanto, que a reaproximação sino-estadunidense
ocorreu depois que a China obteve disuassão nuclear confiável (embora não necessariamente
por causa disso). Poderia a conquista de uma arma nuclear pelo Irã tornar a
reaproximação com os Estados Unidos mais provável no futuro?
Não sei se seria uma reaproximação genuína. Mas penso
que, como aconteceu com outros países nucleares que temíamos originalmente, os
Estados Unidos virão a aceitar o Irã como um estado nuclear, refletindo um
padrão bem estabelecido. Nós nos opomos a qualquer estado do qual não gostamos
e desconfiamos quando ele se torna nuclear. Quando isso acontece, não temos
escolha a não ser viver com isso. Então poderemos ter uma relação muito mais
calma com o Irã do que temos agora.
Você frequentemente aponta para a relação
Índia-Paquistão como exemplo de onde a introdução de armas nucleares
estabilizou uma relação antes inclinada para a guerra. Alguns leitores do
Diplomat na Índia devem se perguntar se tiraram alguma vantagem disso. Embora
nenhuma grande guerra tenha sido iniciada desde os testes nucleares de 1998,
grupos terroristas paquistaneses promoveram uma série de ataques dentro da
Índia, aos quais Nova Delhi teve dificuldade para responder por causa do poder
dissuasório nuclear de Islamabad. Dado que o tamanho da população e da economia
da Índia fazem dela um poder militar convencional muito maior, Islamabad não se
conteria mais se os dois poderes não tivessem armas nucleares?
Com a bomba, paquistaneses e indianos ficam só na ameaça
A Índia naturalmente não queria que o Paquistão se
tornasse um estado nuclear. Um segundo estado nuclear naturalmente prejudica o
primeiro. É difícil imaginar um estado nuclear aceitando facilmente ou
graciosamente que seu adversário se torne nuclear. Mas certamente, a longo
prazo, as armas nucleares significaram paz no subcontinente. Isso em grande
contraste com as expectativas da maioria das pessoas. Abundaram declarações de
especialistas, acadêmicos e jornalistas sugerindo que as armas nucleares
significariam guerra no subcontinente. Todos estes especialistas negaram que o
relacionamento entre a Índia e o Paquistão poderia vir a ser parecido com o que
houve entre Estados Unidos e União Soviética. Quando dois países tem armas
nucleares se torna impossível para qualquer deles atacar os interesses
manifestadamente vitais do outro. Ainda é possível, no entanto, que estados
nucleares se envolvam em escaramuças e elas podem ser mortais. Um exemplo
histórico disso foram as disputas fronteiriças entre União Soviética e China
(1969) e mais recentemente os ataques em Mumbai. Mas nunca estas escaramuças sairam de
controle para provocar uma guerra abertamente declarada.
Na Foreign Affairs e em outros lugares você disse que
muitos estados se tornam menos agressivos depois de obter o poder disuassório
nuclear. Um país que não parece seguir este padrão, no entanto, é a Coreia do
Norte. As ações de Pyongyang em anos recentes incluem o afundamento do [navio]
Cheonan e os ataques a Yeonpyeong [na Coreia do Sul]. O que impediria o Irã,
armado com bombas nucleares, de seguir o mesmo padrão?
É verdade que a Coreia do Norte tem se envolvido em
negócios nefastos. Mas é importante ter em mente que não é um rompimento com a
tradição. O regime de Kim se engajou em terrorismo e provocações por décadas —
você pode se lembrar que a Coreia do Norte foi responsável pelo assassinato de
vários ministros da Coreia do Sul em 1968. Assim, é verdade que a Coreia do
Norte não se tornou completamente pacífica desde que conseguiu armas nucleares.
Mas ao mesmo tempo não penso que se tornou muito mais agressiva. Na verdade,
tem sido notavelmente constante em sua tendência de ameaçar a Coreia do Sul.
O objetivo de abolir armas nucleares recebeu uma
grande atenção em anos recentes, com alguns formuladores de política alinhados
ao realismo dando apoio à ideia. Você se mantém cético. Por que?
A bomba explodiu quando ela era monopólio de um só país
O presidente Obama e vários outros advogam a abolição
das armas nucleares e muitos aceitaram este objetivo como desejável e realista.
Mesmo considerar o objetivo e contemplá-lo me parecem estranhos. De um lado o
mundo conhece as guerras desde tempos imemoriais até agosto de 1945 [quando os
Estados Unidos detonaram a bomba de Hiroshima]. Desde então, não houve guerras
entre os maiores estados do mundo. A guerra foi relegada a estados periféricos
(e, naturalmente, dentro deles). As armas nucleares são as únicas armas
promotoras da paz que o mundo já conheceu. Seria estranho para mim advogar a
abolição delas, já que tornaram as guerras praticamente impossíveis. Minhas
ideias são reforçadas e melhor explicadas no [livro] Spread of
Nuclear Weapons, que escrevi com Scott Seagan.
Em recente entrevista a James Fearon, você predisse
que o período do mundo unipolar em breve acabaria e apontou a China como o país
emergirá como o próximo superpoder. Qual deveria ser a resposta dos Estados
Unidos ao crescente poder da China? Você acha que a nova política do governo
Obama na Ásia é devida ou os Estados Unidos não deveriam se preocupar demais,
dada a estabilidade inerente à bipolaridade e ao fato de que os dois países são
poderes nucleares?
Deveríamos nos preocupar, naturalmente, como qualquer
país se preocupa quando as relações de poder no mundo mudam. Certamente, os
Estados Unidos estão dedicando maior atenção à Ásia. Isso é justificável por
vários motivos, inclusive pela crescente importância econômica da Ásia. Não há
razão para os Estados Unidos ficarem preocupados indevidamente com a crescente
importância da China. A China não pode usar suas armas nucleares para
intimidar, não mais que os Estados Unidos. A situação entre os dois grandes
poderes é inerentemente estável por esta razão. Entre os Estados Unidos, a
China e entre outros grandes poderes, vai haver um extenso período de
ajustamento sobre uma série de questões locais (China e Japão, China e o
Sudeste da Ásia, demandas da China sobre ilhas, etc.). Mas estas devem ser
disputas menores e não devem ser encaradas como perigosas.
Finalmente, qual é sua avaliação geral da política
externa do governo Obama? O que, em sua opinião, ele fez certo e onde há
necessidade de mudanças?
O governo Obama fez bem ao tentar reduzir a
proeminência da dimensão militar na política externa norte-americana. Mas há
muito por fazer. Nossos gastos militares não foram reduzidos tanto quanto
deveriam ter sido. Os Estados Unidos não enfrentam ameaça militar fundamental e
raramente um país esteve nesta posição. Precisamos completar a retirada do
Afeganistão. O motivo que nos leva a seguir o exemplo tolo e secular de ficar
atolado naquele país me escapa. No Iraque, erramos ao invadir. Por isso apoiei
a retirada do Obama. Gostaria de ver o mesmo no Afeganistão o mais rapidamente
possível. O governo Obama também adotou uma política mais sistemática em relação
ao terrorismo. O governo Bush reagiu com força a um ataque terrorista, mas o
terrorismo como ameaça a interesses norte-americanos foi grandemente exagerado
nestes anos — houve um exagero absurdo na reação. A reação do governo Bush ao
terrorismo não foi surpreendente porque tinhamos tido pouca experiência com o
terrorismo internacional. Mas o governo Obama adotou uma política mais
equilibrada — um sinal da crescente sabedoria que advém de anos de experiência
sobre o significado do fenômeno. Em geral, esse equilíbrio tem sido uma
característica da política externa do governo Obama.
Clique aqui para ler a versão original, em inglês:
No
dia 24 de agosto de 1954, o presidente Getúlio Vargas, acossado por uma
violenta campanha da oposição conservadora e dos militares, deu um tiro no
coração e tornou-se o primeiro herói trágico da política brasileira. Com o
gesto, desarticulou o golpe de Estado de direita que estava em marcha e permitiu a
reorganização das forças progressistas.
Em
1930, Getúlio fundou a modernidade brasileira, promovendo, pela “via
prussiana”, a revolução burguesa no país, a despeito da própria burguesia. Em
seu segundo governo, eleito pelo povo, Getúlio criou o Petrobras e promoveu
reformas sociais que garantiram a integração econômica, social e política dos
trabalhadores urbanos. Mas parte das classes dominantes, aliadas a poderosos
interesses externos, alinhou-se à ala reacionária do Exército e aos políticos
da UDN para contrapor-se à ação reformista do Executivo. O próprio PCB, radicalizado
desde a cassação de seu registro em 1947, só veio a perceber que levava água ao
moinho da reação quando as massas revoltadas com o suicídio saíram às ruas
empastelando jornais da oposição e até do partidão. O gesto do presidente adiaria o
golpe que viria, finalmente, dez anos depois,em 1964, quando seu herdeiro, João
Goulart, estava na presidência da República.
Abaixo,
um texto do Mauro Santayana, testemunha dos eventos da época.
Vargas e a presença do Estado na economia
Por Mauro Santayana
O velório do presidente Getúlio Vargas
Em 24 de agosto de 1954, os homens de minha geração chegavam à
maioridade. Naquele dia, pela manhã, cheguei ao Rio, enviado pelo Diário de
Minas, de Belo Horizonte, a fim de cobrir o velório de Vargas e a reação do
povo carioca ao suicídio do Presidente. A Presidente Dilma Rousseff era uma
menina de seis anos. Não poderia saber o que significava aquele gesto de um
homem que mal passara dos 70, e ocupara o centro da vida brasileira naqueles
últimos 24 anos.
Carlos Lacerda depois do atentado
As jornadas anteriores haviam sido enganosas, o que costuma ocorrer na
História, desde o episódio famoso da frustrada queda de Richelieu. Os meios de
comunicação haviam ampliado o suposto atentado contra Carlos Lacerda – obscuro
até hoje – e atribuído a responsabilidade ao Presidente, tentando fazer crer
que o Palácio do Governo se transformara em valhacouto de ladrões e assassinos.
Houve quase unanimidade contra Getúlio. Quando passei pela Praça 7, em Belo Horizonte, a
caminho do aeroporto da Pampulha, entre manifestantes de esquerda, um jovem
sindicalista, meu amigo, pedia aos gritos, pelo megafone, a prisão do
Presidente. Desci do táxi e lhe dei a notícia, com os avisos de meu
pressentimento: dissolvesse o grupo, antes que os trabalhadores, ao saber da
morte do Presidente, reagissem na defesa do líder desaparecido.
Durante a viagem ao Rio, que durava hora e meia, organizei minhas idéias.
Entendi, em um instante, que a ação coordenada contra Vargas nada tinha a ver
com o assassinato de um oficial da Força Aérea, transformado em guarda-costas
do jornalista Carlos Lacerda – isso, sim, ato irregular e punível pelos
regulamentos militares. Lacerda, ferido no peito do pé, não permitiu que
o revólver que portava fosse periciado pela polícia. Açulada e
acuada pela grande imprensa, a polícia nunca investigou o que realmente houve
na Rua Tonelero.
Vargas fora acossado pelos interesses dos banqueiros e grandes
empresários associados ao capital norte-americano. Ao ouvir, pelo rádio, a
leitura de sua carta, não tive qualquer dúvida: Getúlio se matara como ato de
denúncia, não de renúncia. Morrera em defesa do desenvolvimento soberano de
nosso povo.
Sei que não basta a vontade política do governante para administrar
bem o Estado. Mas uma coisa parece óbvia a quem estuda as relações históricas
entre o Estado e a Nação: o Estado existe para buscar a justiça, defender os
mais frágeis, uma vez que a igualdade entre todos. Por isso, algumas
medidas anunciadas pelo governo inquietam grande parcela dos brasileiros bem
informados. É sempre suspeito que os grandes empresários aplaudam, com alegria,
uma decisão do governo. Posso imaginar a euforia dos lobos junto a uma ninhada
de cordeiros. Quando os ricos aplaudem, os pobres devem acautelar-se.
O regime de concessões vem desde o Império. As vantagens oferecidas aos
investidores ingleses, no alvorecer da Independência, levaram à Revolução de
1842, chefiada pelo mineiro Teófilo Ottoni e pelos paulistas Feijó e Rafael
Tobias de Aguiar, e conhecida como a Revolução do Serro, em Minas, e de
Sorocaba, em São Paulo. O Manifesto Revolucionário, divulgado em São João del Rei por
Teófilo Ottoni, e assinado por José Feliciano Pinto Coelho, presidente da
província rebelde, é claro em seu nacionalismo, ao denunciar que os
estrangeiros ditavam o que devíamos fazer “em nossa própria casa”.
A presidente deve conhecer bem, como estudiosa do tema, o que foi a
política econômica de Campos Salles e seu ministro Joaquim Murtinho, em
resposta à especulação financeira alucinante do encilhamento. O excessivo
liberalismo do governo de Prudente de Moraes e de seu ministro Ruy Barbosa,
afundou o Brasil, fazendo crescer absurdamente o serviço da dívida – já
histórica –, obrigando Campos Salles (que morreria anos depois, em relativa
pobreza) a negociar, com notório constrangimento, o funding loan com a
praça de Londres. O resultado foi desastroso para o Brasil. Os bancos
brasileiros quebraram, um banco inglês em sua sucursal brasileira superou o
Banco do Brasil em recursos e operações e, ainda em 1999, a Light iniciava, no
Brasil, o sistema de concessões como o conhecemos. O Brasil perdeu, nos dez
anos que se seguiram, o caminho de desenvolvimento que vinha seguindo desde
1870.
Durante mais de 50 anos, a energia elétrica, a produção e distribuição de
gás e o sistema de comunicações telefônicas no eixo Rio-SP-BH foram controlados
pelos estrangeiros. Ao mesmo tempo, os combustíveis se encontravam sob o
controle da Standard Oil. A iluminação dos pobres se fazia com o Kerosene
Jacaré, vendido em litros, nas pequenas mercearias dos subúrbios, cujos
moradores não podiam pagar pela energia elétrica, escassa e muito cara. O caso
das concessões da Light é exemplar: antes do fim do prazo, a empresa,
sucateada, foi reestatizada, para, em seguida, ser recuperada pelo governo e
“privatizada”. Como se sabe foi adquirida pela EDF, uma estatal francesa,
durante o governo de Fernando Henrique. Novamente sucateada, foi preciso que
uma estatal brasileira, a Cemig, associada a capitais privados nacionais, a
assumisse, para as inversões necessárias à sua recuperação.
Vargas não tinha como se livrar, da noite para a manhã, dessa desgraça,
mas iniciou o processo político necessário, ainda no Estado Novo, para conferir
ao Estado o controle dos setores estratégicos da economia. Só conseguiu, antes
de ser deposto em 1945, criar a CSN e a Vale do Rio Doce. Eleito, retomou o
projeto, em 1951 e o confronto com Washington se tornou aberto. O capital
americano desembarcara com apetite durante o governo Dutra, na primeira onda de
desnacionalização da jovem indústria brasileira. Getúlio, na defesa de nossos
interesses, decidiu limitar a remessa de lucros. Embora os banqueiros e as
corporações estrangeiras soubessem muito bem como esquivar-se da lei, a decisão
foi um pretexto para a articulação do golpe que o levaria à morte.
O Estado pode, e deve, manter sob seu controle estrito os setores
estratégicos da economia, como os dos transportes, da energia, do sistema
financeiro. Concessões, principalmente abertas aos estrangeiros, em quase todas
as situações, são um risco dispensável. O Brasil dispõe hoje de técnicos e de
recursos, tanto é assim que o BNDES vai financiar, a juros de mãe, os
empreendimentos previstos. Se há escassez de engenheiros especializados,
podemos contratá-los no Exterior, assim como podemos comprar os processos
tecnológicos fora do país. Uma solução seria a das empresas de economia mista,
com controle e maioria de capitais do Estado e a minoria dos investidores
nacionais, mediante ações preferenciais.
Por mais caro nos custem, é melhor do que entregar as obras e a operação
dos aeroportos, ferrovias e rodovias ao controle estrangeiro. O que nos tem
faltado é cuidado e zelo na escolha dos administradores de algumas empresas
públicas. Não há diferença entre uma empresa pública e uma empresa privada, a
não ser a competência e a lisura de seus administradores. Entre os quadros de
que dispomos, há engenheiros militares competentes e nacionalistas, como os que
colaboraram com o projeto nacional de Vargas e com as realizações de Juscelino,
na chefia e composição dos grupos de trabalho executivo, como o GEIA e o
Geipot.
Morto há 90 anos, Michael Collins (1890-1922) foi um dos
fundadores do IRA (Exército Republicano Irlandês) e depois o primeiro chefe de
Estado da Irlanda. Ele ficaria famoso por organizar um esquadrão especialmente
encarregado de eliminar policiais e militares britânicos na Irlanda; daí sua
fama de perigoso terrorista. Já o Blacks and Tans, a unidade de elite do Exército
Britânico que aterrorizava os irlandeses – como no Bloody Sunday, em 1920,
quando integrantes dessa tropa mataram 14 civis no Croke Park Stadium – jamais ganhou
este epíteto. Isso me faz lembrar uma frase de Noam Chomsky (estou citando
muito ele ultimamente): “quando alguém pratica o terrorismo contra nós ou
contra nossos aliados, isso é terrorismo; mas quando nós ou nossos aliados o
praticamos contra outros, talvez um terrorismo muito pior, isso não é
terrorismo; é antiterrorismo ou guerra justa”.
Mas o “terrorista” seria o representante dos irlandeses nas
negociações de paz com os britânicos em 1921. Foi então que Collins mostrou que
não era apenas um líder militar da guerrilha, mas tinha a dimensão política da luta. Sabia
que as negociações implicavam ter consciência da correlação de forças e da
necessidade de se fazer concessões. O Tratado Anglo-Irlandês foi oficialmente
assinado em 6 de dezembro de 1921 e criou o Estado Livre Irlandês, que seria o
primeiro passo para uma transição pacífica para a democracia e terminaria com
mais de 700 anos de ocupação britânica da ilha. O tratado permitia a criação de
um Estado que em tese compreendia toda a ilha, mas estava sujeito à aprovação dos seis
condados do Norte, conhecidos como Ustler, de maioria anglicana, que poderiam não
querer fazer parte do novo país, majoritariamente católico.
...e chefe de Estado da Irlanda
O novo Estado seria ainda um domínio que, mesmo independente,
deveria fazer parte temporariamente da Commonwealth (Comunidade Britânica das
Nações), com a chefia de Estado nas mãos do monarca britânico. Mas o controle
de fato estaria nas mãos do governo irlandês eleito pela Dáil Éireann (Câmara
Baixa). Ainda que não fosse a República sonhada pelos irlandeses, era a “liberdade
para conquistar a liberdade”, nas palavras de Collins. Mas ele sabia que o
tratado, em especial a partição do território, não seria bem recebido no novo
país. “Eu assinei a minha própria sentença de morte”, disse ele ao assinar o
documento.
Dublin bombardeada durante a guerra civil de 1922
De
fato, oSinn Féinse dividiu a respeito do tratado e o Tratado
foi aprovado por 64 votos a 57. O grupo
dissidente, liderado por Eamon De Valera, rompeu com Collins e se rebelou contra a nova ordem. Um governo provisório foi constituído por Collins,
que se tornou o primeiro presidente da Irlanda. Em 14 de abril de 1922, um
grupo de 200 homens do IRAque
eram contra o Tratado ocuparam prédios do governo. Collins, que queria evitar a repressão e a luta fratricida entre antigos camaradas, evitou atacar até junho de 1922, quando os britânicos também começaram a
pressioná-lo. Estourou então a guerra civil, com combates irrompendo por toda Dublinentre
rebeldes do IRA anti-Tratado e as tropas do Governo Provisório. Sob o comando
de Collins, as forças do Estado Livre rapidamente reassumiram o controle da capital. Mas Collins seria morto a tiros em Cork numa emboscada preparada por rebeldes, em 22 de agosto de 1922. Sua morte comoveu a Irlanda e consolidou o novo país. Michael Collins inspirou
outros combatentes nacionalistas e revolucionários e é, talvez, um exemplo acabado da máxima de Ortega y
Gasset: “O homem é ele e suas circunstâncias”.
Carlos Lacerda, governador da Guanabara, ao lado dos golpistas de 1964
A
direita brasileira, que nos últimos anos tentou repaginar o discurso moralista
de Carlos Lacerda, ficou desmoralizada com os mais recentes escândalos de
corrupção que envolveram Demóstenes Torres e José Roberto Arruda – dois de seus
quadros mais incensados pela “mídia Casa Grande”. Com isso, agarraram-se com
todas as forças ao julgamento do “mensalão” no STF, tentando transformá-lo no “julgamento do século”, como se não houvesse outros escândalos, como a compra
de votos para aprovar a reeleição de FHC, a privataria na venda das estatais, o
caso Sivam, a pasta Rosa, o mensalão tucano etc. etc. etc.
Ademais,
ao contrário do que supõe o moralismo neo-udenista,
a corrupção não é um fenômeno individual, nem a política é uma atividade
intrinsecamente corrupta. A corrupção é fruto do abuso do poder econômico;
segundo o pensador Norberto Bobbio, ela tende a se acentuar com a existência de
um sistema representativo imperfeito e com o acesso discricionário de uma
oligarquia ao poder decisório. “Quanto mais ameaçada se sentir, tanto mais a
elite recorrerá a meios ilegais e à corrupção para se manter no poder”,
ensinava o mestre italiano.
Moralidade
de um lado só
Paulo
Moreira Leite, em seu blog
Meu
ponto de vista é que o mensalão não foi apenas caixa 2 para campanhas eleitorais
nem apenas um esquema de desvio de recursos públicos. Foi uma combinação de
ambos, como sempre acontece em sistemas eleitorais que permitem ao poder
econômico privatizar o poder político com contribuições eleitorais privadas.
Um
julgamento justo será aquele capaz de distinguir uma coisa da outra, uma
acusação da outra, um réu do outro.
Quem
combate o financiamento público de campanha não quer garantir a liberdade de
expressão financeira dos eleitores, como, acredite, alguns pensadores do Estado
mínimo argumentam por aí e nem sempre ficam ruborizados.
Quer,
sim, garantir a colonização do Estado pelo poder econômico, impedindo que um
governo seja produto da equação 1 homem = 1 voto.
É aqui o
centro da questão.
Tesoureiros
políticos arrecadam para seus candidatos, empresários fazem contribuições
clandestinas enquanto executivos que têm posições de mando em empresas do
Estado ajudam no desvio. Operadores organizam a arrecadação eleitoral e contam
com portas abertas para tocar negócios privados. Fica tudo em família – quando
são pessoas com o mesmo sobrenome.
Foi
assim no mensalão tucano, também, com o mesmo Marcos Valério, as mesmas
agências de publicidade e o mesmo Visanet. Um publicitário paulista
garante pelos filhos que em 2003 participava de reuniões com Marcos
Valério para fazer acertos com tucanos e petistas. Era tudo igual, no mesmo
endereço, duas fases do mesmo espetáculo.
O mensalão tucano: foi diferente?
Só não
houve igualdade na hora de investigar e julgar. Por decisão do mesmo tribunal,
acusados pelos mesmos crimes, os mesmos personagens receberam tratamentos
diferentes quando vestiam a camisa tucana e quando vestiam a camisa petista. É
tão absurdo que deveriam dizer, em voz baixa: “Sou ou não sou?” Ou: “Que rei
sou eu?”
Mesmo o
mensalão do DEM, que, sob certos aspectos, envolveu momentos de muito mau
gosto, foi desmembrado.
Diante
da hipocrisia absoluta da legislação eleitoral, sua contrapartida necessária é
o discurso moralista, indispensável para dar uma satisfação ao cidadão comum.
Os escândalos geram um sentimento de revolta e inconformismo, estimulando
o coro de “pega ladrão!”, estimulado para “dar uma satisfação à sociedade” ou
para “dar um basta na impunidade!” Bonito e inócuo.
Perverso, também.
Até
porque é feito sempre de forma seletiva, controlada, por quem tem o poder de
escolher os inimigos, uma força que está muito acima de onze juízes. Estes são,
acima de tudo, pressionados a andar na linha…
A "Marcha da Família com Deus pela Liberdade": a classe média apoia o golpe
Em 1964,
o mais duradouro golpe contra a democracia brasileira em sua história teve como
um dos motes ilusórios a eliminação da corrupção. O outro era eliminar a
subversão, como nós sabemos. Isso demonstra não só que a corrupção é antiga,
mas que a manipulação da denúncia e do escândalo também é. Também lembra que
está sempre associada a uma motivação política.
Entre
aqueles que se tornaram campeões da moralidade de 64, um número considerável de
parlamentares recebeu, um ano e meio antes do golpe, US$ 5 milhões da CIA para
tentar emparedar João Goulart no Congresso. Depois do 31 de março, essa turma é
que deu posse a Ranieri Mazzilli, alegando que Jango abandonara a presidência
embora ele nunca tenha pedido a renúncia.
Rubens Paiva: assassinado por investigar quem financiou os golpistas
Seis
anos depois do golpe, o deputado Rubens Paiva, que liderou a CPI que apurou a
distribuição de verbas da CIA e foi cassado logo nos primeiros dias, foi sequestrado
e executado por militares que diziam combater a subversão e a corrupção. Não
informam sequer o que aconteceu com seu corpo. Está desaparecido e ninguém sabe
quem deu a ordem nem quem executou. Segredo dos que combatiam a subversão
e a corrupção, você entende.
O alvo
era outro. A democracia, a sempre insuportável equação de 1 homem = 1 voto.
Eu acho
curioso que a oposição e grande parte da imprensa – nem sempre elas se
distinguem, vamos combinar, e recentemente uma executiva dos jornais disse que
eram de fato a mesma coisa – tenham assumido a perspectiva de associar, quatro
décadas depois, a corrupção com aquelas forças e aquelas ideias que, em 64, se
chamavam de subversão.
A coisa
pretende ser refinada, embora pratique-se uma antropologia de segunda mão, uma
grosseria impar. Não faltam intelectuais para associar Estado forte a maior
corrupção, proteção social a paternalismo e distribuição de renda à troca de
favores. Ou seja: a simples ideia de bem-estar social, conforme essa visão, já
é um meio caminho da corrupção.
Bolsa-Família,
claro, é compra de votos. Como o mensalão, ainda que nenhuma das 300
testemunhas ouvidas no inquérito tenha confirmado isso e o próprio calendário
das votações desminta uma conexão entre uma coisa e outra. Roberto Jefferson
disse, na Policia Federal, que o mensalão era uma “criação mental”, mas a
denúncia reafirma que a distribuição de recursos era compra de consciência, era
corrupção – você já viu aonde essa turma pretende chegar.
A
corrupção dos subversivos é intolerável enquanto a dos amigos de sempre vai
para debaixo do tapete.
Desse
ponto de vista, eu acho mesmo que o julgamento tem um sentido histórico. Não
por ser inédito, mas por ser repetitivo, por representar uma nova tentativa de
ajuste de contas. Não é uma farsa, como lembrou Bob Fernandes (...).
A farsa
é o contexto.
Veja
quantas iniciativas já ocorreram. O desmembramento, que só foi oferecido aos
tucanos. O fatiamento, que nunca havia ocorrido num processo penal e que
apanhou o revisor de surpresa.
Agora
que a mudança de regras garantiu que Cezar Peluso possa votar pelo menos em
algumas fases do processo (“é melhor do que nada”, diz o procurador geral) já
se coloca uma outra questão: o que acontece se o plenário, reduzido a dez,
votar em empate? Valerá a regra histórica, que eu aprendi com uns oito anos de
idade, pela qual em dúvida os réus se beneficiam? Ou o presidente Ayres Britto
irá votar duas vezes?
E, se,
mesmo assim, houver uma minoria de quatro votos, o que acontece? Vai-se aceitar
a ideia de que é possível tentar um recurso?
Ali, no
arquivo das possibilidades eventuais, surgiu uma conversa do ministro Toffoli,
às 2 e meia da manhã, numa festa em Brasília. Já tem sido usada para dar liçãozinha
de moral no ministro. No vale-tudo, servirá para criar constrangimento.
Enquanto
isso, os visitantes que chegam a Praça dos Três Poderes demonstram mais
interesse em tirar foto turística para o Facebook do que em seguir os debates,
como revelou reportagem de O Globo. Calma. O julgamento não vai ser tão rápido
como se gostaria. Com a cobertura diária no horário nobre, manchetes
frequentes, é possível mudar isso…
O golpe de 1964: os militares diziam que iriam lutar contra a corrupção
Minha
mãe ria muito de uma vizinha, que dias antes do 31 de março de 64 foi às ruas
de São Paulo protestar a favor de Deus, da Família, contra a corrupção e a
subversão. Quando essa vizinha descobriu, era um pouco tarde demais e a filha
dela já tinha virado base de apoio da guerrilha do PC do B. O diplomata e
historiador Moniz Bandeira conta que a CIA trouxe até padre americano para
ajudar na organização daqueles protestos.
A
marcha de 64 foi um sucesso, escreveu o embaixador norte-americano Lincoln
Gordon, num despacho enviado a seus chefes em Washington, já envolvidos no
apoio e nos preparativos do golpe. Mas era uma pena, reparou Gordon, que havia
poucos trabalhadores e homens do povo.