Tribos são a base da organização social do país e da rebelião contra Muammar Gaddafi (*)
Cláudio Camargo
Cláudio Camargo
O líder revolucionário russo Vladimir Lênin disse certa vez que há décadas em que nada acontece, mas, em compensação, há semanas ou meses em que os acontecimentos se precipitam de tal maneira que fazem a humanidade avançar décadas. Ele se referia, principalmente, aos eventos de 1917 na Rússia, onde, em poucos meses, foi derrubada uma dinastia com quase 300 anos, os Romanov e, na sequência, estabeleceu-se o primeiro regime socialista da História. A onda revolucionária que está em curso no Oriente Médio se encaixa nessa definição: em poucos dias, as massas da região parecem ter despertado de seu sono secular, derrubando ditadores longa e firmemente estabelecidos na Tunísia e no Egito. E, como um rastilho de pólvora, a rebelião se espalhou pela região, ameaçando as autocracias do Marrocos, Bahrein, Iêmen, Jordânia e Síria, onde a ditadura resiste ferozmente. E na Líbia, onde, depois de meses de uma luta sangrenta que teve uma mãozinha da Otan - afinal, o país é produtor de petróleo -, chegou ao fim o reino de terror de quatro décadas de Muammar Gaddafi.
Muammar Gaddafi |
Mas há diferenças profundas entre esses processos. Tanto na Tunísia quanto no Egito, o Exército teve papel fundamental na queda dos ditadores. Nos dois casos, os comandantes militares se recusaram a reprimir a multidão que saiu às ruas. No Egito, o Exército inclusive assumiu provisoriamente o poder, no lugar do ditador Hosni Mubarak – ele próprio um oficial da Aeronáutica. Em ambos os casos, as Forças Armadas, embora nunca tivessem deixado de ser guardiões dos respectivos regimes, conservaram uma autonomia institucional e um prestígio social que lhes permitiram se distanciar dos governos e garantir a estabilidade política.
Mas na Líbia, o coronel Gaddafi enfrentou defecções nas fileiras militares e teve que recorrer às milícias e a mercenários estrangeiros para tentar conjurar a guerra civil que eclodiu no país. Lá, embora o poder também tenha nascido da ponta do fuzil, o Exército não teve protagonismo.
Parte da explicação está nas características históricas, geográficas e sociais da Líbia. Desde a época do Império Romano, o país está dividido em três regiões distintas: a Cirenaica, a leste, a Tripolitânia, a noroeste, e Fezzan, a sudoeste. A organização social líbia se baseia largamente nas 140 tribos e nos clãs familiares dessas regiões. Historicamente divididas, as tribos da Líbia se uniram militarmente com o colapso do Império Otomano, para enfrentar o invasor italiano, em 1911 e nos anos 1920. Em 1931, o ditador fascista Benito Mussolini esmagou a rebelião e fez da Líbia, manu militari, uma colônia italiana. Nesse conflito contra os italianos, destacou-se Omar Mukhtar, o lendário guerreiro líbio cuja história Hollywood retratou no filme O Leão do Deserto (1981), com Anthony Quinn no papel principal. Com a derrota da Itália na II Guerra, a Cirenaica e a Tripolitânia ficaram com os britânicos e Fezzan com os franceses.
A Líbia conquistou sua independência em 1951, com o rei Idris I como monarca. Ele manteve intacta a estrutura tribal do país, equilibrando-se entre os interesses das tribos para governar. Quando assumiu o poder por meio de um golpe militar em 1969, o coronel Gaddafi tinha uma agenda nacionalista e pan-arabista e, inicialmente, tentou suprimir a divisão tribal. Em pouco tempo, contudo, ele se rendeu a ela. Como o ex-ditador Saddam Hussein, do Iraque, Gaddafi ofereceu privilégios econômicos de um lado e manipulou rivalidades inter-tribais, de outro. Colocou grupos rivais no Exército e nas forças de segurança para se prevenir contra um golpe. “(Gaddafi) preencheu os altos comandos militares com oficiais de sua própria tribo, Gaddafa, ou de tribos leais a ele”, diz o jornalista Ameen Izzadeen, do Daily Mirror de Sri Lanka. Ao mesmo tempo, “ele também fez de suas forças paramilitares organizações mais poderosas do que o Exército, lideradas por homens majoritariamente de sua tribo e de outras tribos leais”. De fato, as forças paramilitares de Gaddafi constituem o principal sustentáculo de seu poder. Elas somam cerca de 10 mil homens bem armados e equipados; a melhor unidade é a 32ª Brigada, conhecida como Brigada Khamis, comandada por Khamis Gaddafi, um dos sete filhos homens do ditador líbio.
O coração da rebelião contra Gaddafi é justamente a Cirenaica, a parte Leste da Líbia, região rica em petróleo e onde estão as principais tribos hostis ao ditador – Warfalhah e Zawiya, entre outras. E há um dado que poucos no Ocidente têm prestado atenção: a região também é o berço de organizações islâmicas radicais, como o Grupo Islâmico Líbio de Luta (GILL), que participou de ações ao lado dos mujahedins contra os soviéticos no Afeganistão, nos anos 1980. Muitos jihadistas depois retornaram à Líbia, onde em 1996 tentaram assassinar Gaddafi. Com a violenta repressão que se seguiu, a maioria dos integrantes do grupo fugiu do país; alguns se engajaram na luta contra os americanos no Afeganistão e no Iraque. Considerados terroristas perigosos pelo governo líbio e pelos ocidentais, eles são tidos como herois por muitas tribos da Cirenaica, inclusive pelos Imnifa, à qual pertenceu o líder da resistência contra os italianos, Omar Mukhtar. Seu filho, Mohammed Omar Mukhtar, de 90 anos, diz que se equivocam aqueles que reduzem o conflito na Líbia a apenas uma luta entre tribos. “Ele tem esperança que todas as tribos se unam novamente para derrubar Gaddafi, mostrando a mesma unidade que seu pai forjou para liderar a guerra contra os colonialistas italianos”, diz Ameen Izzadeen.
“Há temores de que, ao contrário da Tunísia e no Egito, a rebelião na Líbia possa resultar não apenas na mudança do governante, mas também a mudança do regime e talvez o colapso do Estado”, diz Scott Stewart, analista do site STRATFOR. No Egito e na Tunísia, regimes militares fortes puderam manter a estabilidade depois da saída dos ditadores. “Ao contrário, na Líbia, o líder Muammar Gaddafi manteve deliberadamente os militares e as forças de segurança fraturados e fracos e, dessa forma, dependentes dele. Consequentemente, poderá não haver uma instituição capaz de intervir e substituí-lo se ele vier a cair”. Isso significa que a Líbia, rica em petróleo, “poderá cair na espiral do caos, o ambiente ideal para o florescimento de jihadistas, como foi demonstrado pela Somália e pelo Afeganistão”, conclui Stewart. E pelo Iraque, poderíamos acrescentar.
(*) Adaptação de matéria publicada originalmente no Boletim Mundo
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