Naquele tempo em que Lula ainda era um líder metalúrgico do ABC e o PT apenas engatinhava, havia no universo da esquerda ortodoxa brasileira uma gama de adjetivos que causavam urticária nos militantes. Dois deles, especialmente, soavam quase como palavrões: “revisionista” e “social-democrata”. O primeiro designava os "hereges" que ousavam criticar os mandamentos do credo marxista, a saber: o caráter inevitável da crise do capitalismo, a polarização entre a maioria proletária e a minoria burguesa e a consequente revolução socialista, que aboliria a propriedade privada dos meios de produção, trazendo a redenção da humanidade trabalhadora na face da Terra. O segundo adjetivo era consequência do primeiro, referindo-se àqueles que levaram o "revisionismo" à prática, ou seja, os tradicionais partidos social-democratas europeus, considerados “traidores da classe operária” por terem adotado o caminho de reformar o capitalismo, deixando o ideal da revolução socialista para um futuro improvável.
A polêmica que agitou o PT em seus primórdios já era bem velha: teve origem na Europa em 1896, quando o "herege" Eduard Bernstein (1850-1932; acima, à esq.) chocou seus pares do Partido Social Democrata da Alemanha (SPD), a mais tradicional e poderosa organização da classe operária europeia, ao afirmar que, ao contrário das previsões catastróficas de Karl Marx, o capitalismo não estava condenado à bancarrota, nem a classe operária era destinada a forjar uma nova sociedade. O capitalismo, dizia Bernstein, desenvolvera mecanismos de auto-regulação não previstos pelo autor de O capital. Por isso, os socialistas deveriam abandonar a via da revolução violenta e passar a lutar, dentro dos parlamentos, para democratizar a sociedade burguesa, tornando-a mais igualitária. Os cardeais do SPD e da II Internacional (que reunia os partidos social-democratas da Europa) rejeitaram as teses de Bernstein e mantiveram o discurso ortodoxo. Afinal, a I Guerra e a continuidade das crises do capitalismo pareciam desmentir o diagnóstico revisionista. Mas na prática, a II Internacional adotou o caminho de Bernstein.
A Revolução Bolchevique de 1917 (acima, à dir.) consolidou a ruptura da esquerda mundial entre revolucionários que insistiam na derrubada do capitalismo pela violência e os social-democratas que acreditavam que reformas democráticas poderiam superar gradativamente o regime burguês de propriedade privada. Depois da II Guerra Mundial, o SPD continuou a crescer eleitoralmente e teve êxito em implantar o welfare state na Europa, aumentando a distância entre a intenção revolucionária e o gesto reformista.
Em 1959, no Congresso de Bad Godsberg, o SPD, sob a batuta de Willy Brandt (abaixo, à esq.), finalmente adequou a teoria à prática: deu adeus ao marxismo, abandonou a idéia de ruptura com o capitalismo e de partido dos trabalhadores transformou-se em “partido de todo o povo”. Era o reconhecimento de que Berstein tinha razão. Em 1969, Willy Brandt se tornaria o primeiro chanceler (primeiro-ministro) social-democrata da Alemanha Ocidental. O colapso do bloco soviético confirmou a vitória final do reformismo.
Enquanto era oposição, o PT podia se dar ao luxo de ficar no meio caminho entre a reforma e a revolução. Para conquistar o poder, o partido teve que atravessar o Rubicão (a "Carta aos Brasileiros"). Mandou o socialismo às calendas gregas – ou seja, o partido fez um Bad Godsberg à brasileira. Aos setores radicais restaram duas alternativas: a aceitação da nova orientação ou a ruptura com o governo Lula e o consequente isolamento político. Situação, aliás, semelhante às já vividas por todos os partidos social-democratas que passaram pelo teste do poder, como o PS francês, o PSOE espanhol e o Labour Party britânico.
Agora que o lulismo superou (dialeticamente?) o petismo, o reformismo se tornou um caminho definitivamente sem volta. Por isso, a ideia de que a candidatura Dilma Rousseff possa representar uma guinada à esquerda em relação a Lula é mero discurso para apaziguar os “bolsões sinceros mas radicais” do PT. E também cortina de fumaça eleitoral dos demo-tucanos.
(*) adaptado e atualizado de um artigo publicado na ISTOÉ
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
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