O 47º aniversário do golpe cívico-militar de 1º de abril de 1964 passaria em brancas nuvens não fossem alguns saudosistas da velha ordem. Afinal, em 2011 o Exército retirou de seu calendário oficial a comemoração do golpe; talvez por uma compreensão tardia de que comemorar um golpe de Estado contra um governo democrático e legitimamente constituído é uma incoerência; ou talvez por temor de irritar a chefe de Estado, que foi presa e torturada por ter lutado contra a ditadura. Seja como for, o único general da ativa a insistir na velha prática foi o comandante militar do Nordeste, general-de-Exército Américo Salvador de Oliveira, que organizou uma solenidade para comemorar a “revolução democrática de 31 de março de 1964”. O Ministério da Defesa não fez nada para impedi-lo.
O golpe foi “comemorado” apenas pelos clubes militares das três Forças Armadas – estes congregam oficiais da reserva, que têm mais liberdade para se manifestar do que seus colegas da ativa. Seus presidentes divulgaram uma nota na qual reafirmam que o objetivo do “movimento” de 1964 foi “impedir a tomada do poder e sua entrega a um regime ditatorial atrelado a ideologias antagônicas ao modo de ser do brasileiro [...] Por maiores que sejam alguns esforços para ‘criar’ uma versão diferente da real, os acontecimentos registrados na memória dos cidadãos de bem e transmitidos aos seus sucessores são indeléveis, até porque são mera repetição de acontecimentos similares registrados em outros países”, diz o documento. O manifesto foi assinado pelos presidentes do Clube Militar, general Renato César Tibau da Costa, do Clube Naval, vice-almirante Ricardo Antônio da Veiga Cabral, e do Clube de Aeronáutica, tenente-brigadeiro-do-ar Carlos de Almeida Batista.
Se o problema fosse só a lembrança, não seria assim tão grave. A questão é que os chefes militares ainda resistem a se subordinar inteiramente ao poder civil. A intenção anunciada pela presidenta Dilma Rousseff de criar uma Comissão da Verdade para analisar as circunstâncias em que ocorreram as torturas, desaparecimentos e mortes durante a ditadura encontra forte resistência na caserna. Os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica tiveram a petulância de elaborar um texto com críticas à proposta. No documento, eles afirmam que a instalação da comissão “provocará tensões e sérias desavenças ao trazer fatos superados à nova discussão”. Para eles, vai se abrir uma “ferida na amálgama nacional” e o que se está querendo é “promover retaliações políticas”. Era o caso de demissão sumária dos comandantes por indisciplina e insubordinação.
Apesar de tudo, poucos, além de alguns generais de pijama, têm a coragem de defender o “legado” da ditadura. Um deles é o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), capitão da reserva do Exército. Nos últimos dias, esse sujeito voltou às manchetes destilando seus preconceitos contra negros e homossexuais. “Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco e meus filhos foram muito bem educados. E não viveram em ambiente como lamentavelmente é o seu”, disse ele à cantora Preta Gil em resposta à pergunta que ela lhe fizera no programa CQC, de como o deputado reagiria se seu filho se apaixonasse por uma negra. Criticado pelas declarações racistas, Bolsonaro emendou dizendo que tinha se equivocado, pois pensara que a cantora tinha se referido a um relacionamento homossexual. Ah, bom! E, ao receber críticas pela manifestação e homofobia, o deputado saiu-se como esta: “estou me lixando para esse pessoal aí”, disse, referindo-se aos grupos de defesa dos homossexuais. Depois, ele ainda disse que o Ministério da Educação estimula a homossexualidade e “abre as portas” para pedofilia nas escolas com a distribuição dos kits anti-homofobia nas instituições de ensino fundamental e médio. “Atenção, pais: os seus filhos vão receber um kit que diz que é pra combater a homofobia, mas na verdade estimula o homossexualismo”, disse. “Com a mentira de combater a homofobia, o MEC está estimulando o homossexualismo e abrindo as portas para a pedofilia”.
Bolsonaro: racismo e homofobia |
Tempos atrás, Bolsonaro já defendera a pena de morte e a tortura (“um traficante tem que ser colocado no pau de arara... seqüestrador também... não tem direitos humanos... é pau de arara, porrada”). Ironicamente, o herdeiro do “ideário” da ditadura nunca passou do posto de capitão. Seu comportamento indisciplinado na caserna foi considerado indigno de um oficial por um ex-ministro do Exército (general Leônidas Pires Gonçalves). "Ele era um mau militar, só se salvou de não perder o posto de capitão por causa de por um general que era amigo dele no Superior Tribunal Militar (STM)", disse o coronel Jarbas Passarinho, esse sim prócer da ditadura.
Sebastião Curió e os segredos da ditadura |
Outro defensor do regime dos generais é o coronel da reserva do Exército Sebastião Curió Rodrigues de Moura, ex-deputado federal que dá o nome a uma cidade (Curionópolis, no Pará, da qual foi prefeito). Ele chegou a ser preso nesta semana em Brasília por agentes da Polícia Federal, mas já está em liberdade. A prisão se deu em meio a uma operação de busca e apreensão a documentos da ditadura militar durante o período em que Curió, como major, atuou na repressão à Guerrilha do Araguaia, na primeira metade do anos 1970. A PF aprendeu vários documentos antigos com o selo “confidencial”. Em algumas entrevistas e depoimentos à Justiça, Curió disse que o Exército teria aprisionado e executado 41 guerrilheiros do Araguaia, quando eles não ofereciam mais perigo aos soldados. O Ministério Público Federal quer encontrar pistas de onde os corpos foram enterrados.
A operação de busca e apreensão foi resultado de uma ação movida por 22 familiares de 25 desaparecidos. No final do ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Brasil por crimes cometidos pela ditadura na região do Araguaia. Apesar de tudo, alguma coisa se move. Mas enquanto não acertarmos as contas com esse período tenebroso da nossa história não seremos uma nação verdadeira.
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