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quinta-feira, 31 de março de 2011

EPPUR SI MUOVE

O 47º aniversário do golpe cívico-militar de 1º de abril de 1964 passaria em brancas nuvens não fossem alguns saudosistas da velha ordem. Afinal, em 2011 o Exército retirou de seu calendário oficial a comemoração do golpe; talvez por uma compreensão tardia de que comemorar um golpe de Estado contra um governo democrático e legitimamente constituído é uma incoerência; ou talvez por temor de irritar a chefe de Estado, que foi presa e torturada por ter lutado contra a ditadura. Seja como for, o único general da ativa a insistir na velha prática foi o comandante militar do Nordeste, general-de-Exército Américo Salvador de Oliveira, que organizou uma solenidade para comemorar a “revolução democrática de 31 de março de 1964”. O Ministério da Defesa não fez nada para impedi-lo.

O golpe foi “comemorado” apenas pelos clubes militares das três Forças Armadas – estes congregam oficiais da reserva, que têm mais liberdade para se manifestar do que seus colegas da ativa. Seus presidentes divulgaram uma nota na qual reafirmam que o objetivo do “movimento” de 1964 foi “impedir a tomada do poder e sua entrega a um regime ditatorial atrelado a ideologias antagônicas ao modo de ser do brasileiro [...] Por maiores que sejam alguns esforços para ‘criar’ uma versão diferente da real, os acontecimentos registrados na memória dos cidadãos de bem e transmitidos aos seus sucessores são indeléveis, até porque são mera repetição de acontecimentos similares registrados em outros países”, diz o documento. O manifesto foi assinado pelos presidentes do Clube Militar, general Renato César Tibau da Costa, do Clube Naval, vice-almirante Ricardo Antônio da Veiga Cabral, e do Clube de Aeronáutica, tenente-brigadeiro-do-ar Carlos de Almeida Batista.


Se o problema fosse só a lembrança, não seria assim tão grave. A questão é que os chefes militares ainda resistem a se subordinar inteiramente ao poder civil. A intenção anunciada pela presidenta Dilma Rousseff de criar uma Comissão da Verdade para analisar as circunstâncias em que ocorreram as torturas, desaparecimentos e mortes durante a ditadura encontra forte resistência na caserna. Os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica tiveram a petulância de elaborar um texto com críticas à proposta. No documento, eles afirmam que a instalação da comissão “provocará tensões e sérias desavenças ao trazer fatos superados à nova discussão”. Para eles, vai se abrir uma “ferida na amálgama nacional” e o que se está querendo é “promover retaliações políticas”. Era o caso de demissão sumária dos comandantes por indisciplina e insubordinação.

Bolsonaro: racismo e homofobia
Apesar de tudo, poucos, além de alguns generais de pijama, têm a coragem de defender o “legado” da ditadura. Um deles é o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), capitão da reserva do Exército. Nos últimos dias, esse sujeito voltou às manchetes destilando seus preconceitos contra negros e homossexuais. “Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco e meus filhos foram muito bem educados. E não viveram em ambiente como lamentavelmente é o seu”, disse ele à cantora Preta Gil em resposta à pergunta que ela lhe fizera no programa CQC, de como o deputado reagiria se seu filho se apaixonasse por uma negra. Criticado pelas declarações racistas, Bolsonaro emendou dizendo que tinha se equivocado, pois pensara que a cantora tinha se referido a um relacionamento homossexual. Ah, bom! E, ao receber críticas pela manifestação e homofobia, o deputado saiu-se como esta: “estou me lixando para esse pessoal aí”, disse, referindo-se aos grupos de defesa dos homossexuais. Depois, ele ainda disse que o Ministério da Educação estimula a homossexualidade e “abre as portas” para pedofilia nas escolas com a distribuição dos kits anti-homofobia nas instituições de ensino fundamental e médio. “Atenção, pais: os seus filhos vão receber um kit que diz que é pra combater a homofobia, mas na verdade estimula o homossexualismo”, disse. “Com a mentira de combater a homofobia, o MEC está estimulando o homossexualismo e abrindo as portas para a pedofilia”.

Tempos atrás, Bolsonaro já defendera a pena de morte e a tortura (“um traficante tem que ser colocado no pau de arara... seqüestrador também... não tem direitos humanos... é pau de arara, porrada”). Ironicamente, o herdeiro do “ideário” da ditadura nunca passou do posto de capitão. Seu comportamento indisciplinado na caserna foi considerado indigno de um oficial por um ex-ministro do Exército (general Leônidas Pires Gonçalves). "Ele era um mau militar, só se salvou de não perder o posto de capitão por causa de por um general que era amigo dele no Superior Tribunal Militar (STM)", disse o coronel Jarbas Passarinho, esse sim prócer da ditadura.

Sebastião Curió e os segredos da ditadura
Outro defensor do regime dos generais é o coronel da reserva do Exército Sebastião Curió Rodrigues de Moura, ex-deputado federal que dá o nome a uma cidade (Curionópolis, no Pará, da qual foi prefeito). Ele chegou a ser preso nesta semana em Brasília por agentes da Polícia Federal, mas já está em liberdade. A prisão se deu em meio a uma operação de busca e apreensão a documentos da ditadura militar durante o período em que Curió, como major, atuou na repressão à Guerrilha do Araguaia, na primeira metade do anos 1970. A PF aprendeu vários documentos antigos com o selo “confidencial”. Em algumas entrevistas e depoimentos à Justiça, Curió disse que o Exército teria aprisionado e executado 41 guerrilheiros do Araguaia, quando eles não ofereciam mais perigo aos soldados. O Ministério Público Federal quer encontrar pistas de onde os corpos foram enterrados.

A operação de busca e apreensão foi resultado de uma ação movida por 22 familiares de 25 desaparecidos. No final do ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Brasil por crimes cometidos pela ditadura na região do Araguaia. Apesar de tudo, alguma coisa se move. Mas enquanto não acertarmos as contas com esse período tenebroso da nossa história não seremos uma nação verdadeira.  

quarta-feira, 30 de março de 2011

UM VICE COMO NUNCA ANTES

Não creio que tenha existido na História do Brasil um vice-presidente tão popular quanto José Alencar. Aliás, pouquíssimos vices foram conhecidos do grande público, exceção feita àqueles que as circunstâncias históricas alçaram ao cargo máximo da nação. E estes, em geral, não se saíram muito bem: João Goulart foi deposto por um golpe em 1964; Pedro Aleixo foi impedido de assumir pelos comandantes militares (os “três patetas”) depois da doença de Costa e Silva em 1969; e José Sarney comandou uma transição capenga em que a corrupção se institucionalizou. Isso só para ficar nos mais recentes. A exceção foi Itamar Franco, que pegou o país à deriva e, graças à estabilização econômica, conseguiu fazer o sucessor.

Voltando a José Alencar: ele foi um vice singular, que conquistou o respeito e se tornou uma espécie de símbolo nacional, acima das divergências políticas e ideológicas. Sua figura pública combinava as qualidades do sujeito bonachão e espontâneo com convicções sólidas e absoluta transparência no plano pessoal e político. Essas qualidades ficaram expressas na estóica, dramática e pública batalha que ele travou contra o câncer nos últimos 14 anos. Numa conversa em off que tivemos – eu e o jornalista Rudolfo Lago – com Alencar anos atrás, ele nos falou sem constrangimentos de sua doença e das limitações físicas que ela lhe impunha. Também demonstrou coragem e audácia para assumir a defesa de posições que soariam, aos ouvidos delicados, “politicamente incorretas”. Nessa conversa, Alencar disse, com todas as letras, que foi um erro o Brasil ter renunciado à capacidade de construir sua bomba atômica. Não para usá-la, frisava, mas para ter capacidade de dissuasão, projetar poder militar e ser respeitado no concerto das nações. Lembro-me de ter lhe dito que esperava um dia poder revelar publicamente essa posição, com a qual eu concordava. O próprio Alencar desvendou o segredo, tempos depois, e foi até mais longe, quando defendeu o direito de o Irã ter a bomba atômica como elemento dissuasório para não virar um novo Iraque – um país ocupado por tropas estrangeiras e dividido internamente. A possibilidade de Teerã ter armas atômicas escandaliza a grande mídia alinhada aos interesses americanos e os seus "miquinhos amestrados" da classe média paulistana, mas ninguém se incomoda minimamente com o fato de Israel e Paquistão – país que armou o Talibã e dá abrigo a Osama Bin Laden – terem seu arsenal capaz de varrer o Oriente Médio do mapa. Alencar se lixava para esse consenso babaca, assim como sempre desafiou a rejeição preconceituosa da classe média ao metalúrgico-presidente. Mas ele estava tão acima do bem e do mal que nunca foi crucificado por isso.

O ex-vice presidente também encarnou um personagem que parecia sepultado pela marcha batida da globalização e do Consenso de Washington dos últimos anos: o industrial brasileiro com um projeto nacionalista e desenvolvimentista, lutando como um Dom Quixote contra a política rentista dos juros altos que beneficia, fundamentalmente, os interesses do capital financeiro internacional. Como lembrou o jornalista Alon Feuerwerker, Alencar foi um patriota “não só pelo que fez na política. Mais por ter dedicado toda a sua vida útil empresarial à indústria. Um caso raro de empresário brasileiro que percorreu integralmente a trilha da construção do sucesso dedicado a produzir coisas tangíveis. Entre nós não é pouca coisa. Num país nascido e desenvolvido sob a marca do anti-industrialismo, da colônia à República, definitivamente não é pouca coisa”.

terça-feira, 29 de março de 2011

LAMPEDUSA EXPLICA?


Alain Delon (Tancredi) e Burt Lancaster (Fabrizio) em
O Leopardo (Il Gattopardo), de Luchino Visconti
 "Algo precisa mudar para que tudo permaneça como está", dizia Tancredi, príncipe de Falconieri, ao seu tio, o príncipe Fabrizio Salinas, da Sicília. Era uma provocação para que o tio, conservador e aristocrata, abandonasse a lealdade aos Bourbouns e ao reino das duas Sicílias e se aliasse aos Sabóia para manter os privilégios apesar da mudança de regime. O diálogo faz alusão aos episódios finais do Risorgimento(processo de unificação da Itália que culminou em  1861) e aparece no romance Il Gattopardo (O Leopardo), de Giuseppe Tomaso di Lampedusa. A metáfora pode explicar a  metamorfose do Front National, a extrema-direita francesa, analisada nessa matéria que reproduzi do site Operamundi. O fato de o episódio mencionado no início do artigo ter ocorrido numa localidade chamada Lampedusa é mera coincidência...       

Marine Le Pen: de salto alto, extrema-direita francesa
avança e 'repagina' discurso contra imigrantes


Em 14 de março, um dia de sol e tempo bom, mais de 15 barcos, com cerca de 1,4 mil pessoas, desembarcaram na ilha italiana de Lampedusa, atual porta de entrada para milhares de imigrantes ilegais do Norte da África. A presidente do partido de extrema-direita francesa Frente Nacional (FN) Marine Le Pen, que visitava a localidade, não poderia ter encontrado cenário melhor para seu discurso contra a imigração ilegal. “Empobrecidas, Europa e França não têm mais condições de hospedar todos os imigrantes”, disse aos jornalistas. “Eu tenho compaixão por estas pessoas”, garantiu, “mas ‘nosso barco’ está muito frágil. Não podemos carregar mais pessoas, senão vamos afundar.”

Na França, o discurso de Marine agrada a muitos. Menos de uma semana após a viagem à Lampedusa, no primeiro turno das eleições locais de 20 de março, mais de 15% dos eleitores escolheram candidatos da FN. “Não é pouca coisa, especialmente para uma eleição que era pouco favorável ao partido”, afirmou ao Opera Mundi Christophe Forcari, jornalista do jornal Libération e autor do livro Le Pen, o último combate. No segundo turno, domingo (27/03), a FN confirmou o bom desempenho. “Isso significa que o potencial de Marine Le Pen para as próximas eleições presidenciais é muito alto”, alertou Forcari.

As pesquisas de intenção de voto, publicadas desde o início de 2011, confirmam que a nova líder da extrema-direita deve figurar no segundo turno da eleição, previsto para abril de 2012. Segundo o instituto Harris, em enquete do início de março, Marine superaria até mesmo o presidente Nicolas Sarkozy e a secretária do Partido Socialista, Martine Aubry, com 23% dos votos. Seria um resultado superior ao do pai, o líder histórico da FN Jean-Marie Le Pen, que surpreendeu em 2002 ao chegar ao segundo turno com Jacques Chirac, ultrapassando o socialista Lionel Jospin.

A ascensão de Marine começou naquele ano. Formada em Direito, ela abriu seu próprio escritório. Mas por causa do sobrenome, não conseguiu muitos clientes e acabou pedindo emprego ao pai. Em 21 de abril de 2002, quando foi anunciado que Le Pen tinha chegado ao segundo turno, a FN se viu sem uma figura destacada para defender o partido na mídia. Acabaram enviando Marine e a tímida política surpreendeu. Em poucas horas, ela se tornou a nova estrela de um partido dominado por Bruno Gollnish, até então o único herdeiro político de Le Pen.

Início da mudança na FN
Até 2007, Marine trabalhou para construir sua legitimidade eleitoral por meio de eleições locais, escolhendo a cidade de Henin-Beaumont, devastada pelo desemprego. Com o objetivo de seduzir um eleitorado popular, ela testou um novo discurso de cunho social. Deu certo. A filha de Le Pen achava que a FN precisava mudar de estratégia para atrair as vítimas da crise econômica. Ela também mudou fisicamente e na vida pessoal: emagreceu 15 quilos, cortou os cabelos, trocou o guarda-roupa e se divorciou. Todas as revistas de celebridades lhe dedicaram matérias de capa. Marine ficou famosa.

Marine e o pai, Jean-Marie Le Pen: adivinhe quem vem para jantar?

“Paradoxalmente, a chegada de Le Pen ao segundo turno em 2002 traumatizou Marine e toda uma geração de militantes da FN”, explicou o sociólogo Sylvain Crépon na Universidade Paris-X-Nanterre. “Quando viram que a maioria da população se mobilizou contra Le Pen, permitindo a reeleição de Chirac com 82% dos votos, eles perceberam que seu líder nunca seria presidente”. Os jovens ativistas pareciam estar cansados de Le Pen. Nascida em 1968, Marine se distanciou de temas tradicionais de extrema-direita.

Desde 2002, confirmam as pesquisas, a FN é o partido mais votado pelos operários – os mesmos que, há 20 anos, votavam maciçamente em comunistas e socialistas – e por isso, precisa refletir suas preocupações. De acordo com a plataforma de Marine, o FN deve ser um “partido de direita, nacional, social e popular” e não um grupo de extrema-direita. Ao defender idéias sociais, ela procura atrair os eleitores de todas as origens. De acordo com o instituto de pesquisas Sofres, entre os eleitores de Marine, 23% dizem que estão próximos da extrema-esquerda e 36% se dizem sem preferência política. É uma pista para entender porque alguns não se identificam mais com o discurso dos partidos de esquerda após o colapso do comunismo e das batalhas fratricidas entre socialistas.

A estratégia da FN é fazer um trabalho de base, “como o Partido Comunista Francês em sua grande época”, explicou Forcari. Seus militantes estão presentes nas feiras todos os domingos, e não apenas antes das eleições. Eles distribuem panfletos e convidam para reuniões. “Isso é ainda mais impressionante considerando que o partido não tem dinheiro”, completa o jornalista. Essa presença nas ruas mudou a imagem do FN.

Novas bandeiras
Enquanto o partido se dizia historicamente católico, Marine defende os valores republicanos, sendo que em primeiro lugar o laicismo, contra a “islamização da sociedade francesa”. Para ela, as orações dos muçulmanos nas ruas – provocadas pela falta de mesquitas – são comparáveis a uma “nova forma de ocupação”, como a dos alemães durante a segunda guerra. A candidata também virou porta-bandeira das mulheres e dos direitos dos homossexuais, em um partido conhecido pelo machismo e homofobia. Segundo ela, o Islã é hoje o principal perigo para as liberdades civis. “Ela se inspira fortemente na extrema-direita holandesa, que é liberal e xenófoba ao mesmo tempo, algo impossível antes”, explica Crépon.

Outro tema novo é a defesa dos funcionários públicos, antes resistentes às teorias da FN. Marine abandonou a visão liberal ou mesmo “thatcherista” do pai para defender a “restauração de um estado forte” e uma política de obras públicas. Por esta mesma razão, ela defende o serviço público, denunciando a desaparição de escolas e hospitais, um argumento até então defendido prioritariamente pela esquerda.

Enquanto isso, Marine transformou a FN em um partido mais respeitável aos olhos da população. Ela não tolera qualquer deslize como os do pai, que classificou as câmaras de gás de Hitler como um “detalhe da história”. Esse novo posicionamento causou descontentamento nos antigos quadros do partido, como Roger Holeindre, veterano da guerra da Indochina e da Argélia. “Marina não sabe nada sobre a nossa história e não representa nossas idéias”, disse o político ao abandonar o partido. Porém, o posicionamento de Marine agrada os jovens, que a elegeram como nova presidente do partido com quase 67% dos votos.

Novas metas
Marine tinha dois grandes projetos: por um fim à demonização do partido e oferecer uma imagem de competência. O primeiro teve sucesso. “Ela conseguiu quebrar o cordão sanitário em torno da FN”, disse Crépon. Na semana passada, o UMP (União por um Movimento Popular), partido de Sarkozy, estava dividido quanto à estratégia para o primeiro turno das eleições locais: barrar ou não o caminho da FN e pedir votos para os socialistas. Há dez anos, 22% dos eleitores da direita tradicional afirmavam que poderiam votar na FN nesse tipo de situação. Hoje, a proporção passou a 43%. “Isso significa que estamos passando de um voto de protesto ao de adesão”, analisou Forcari.

Sarkozy: mais à direita

[...]

Diante do “fenômeno Marine”, a direita acaba relançando as palavras de ordem da FN. Em 2009, Sarkozy convocou um debate sobre a “identidade nacional” e há um mês, um sobre o lugar do Islã na sociedade francesa. Uma tática que pode disseminar as ideias da FN na sociedade. “Nesse caso, os franceses sempre preferem o original à cópia”, argumentou Marine.


As forças de esquerda, por sua vez, parecem paralisadas. “Marine é um sintoma, ela demonstra nossas fraquezas”, admitiu o socialista Jean-Christophe Cambadélis em um artigo no Le Monde. O partido não elaborou, porém, nenhuma estratégia para voltar a atrair o eleitorado popular. Seus líderes preferem expor suas divisões por meio de eleições primárias que devem acontecer em três meses. O candidato mais forte parece ser Dominique Strauss-Kahn, atual presidente do FMI (Fundo Monetário Internacional). Um currículo que dificilmente poderá convencer a classe operária que o PS ficou mais sensível à causa dos mais pobres, afetados pela globalização e as consequências sociais na França.

Il Gattopardo (1963), Luchino Visconti 

segunda-feira, 28 de março de 2011

"A TERRA É AZUL E EU NÃO VI DEUS"

Wernher von Braun e seus patrões nazistas
Nos anos 1960, a corrida espacial entre americanos e soviéticos pegava fogo. Com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, EUA e URSS tinham capturado os engenheiros que trabalhavam no projeto de foguetes V-2, que atormentaram a Inglaterra no final do conflito. O mais famoso deles, Wernher von Braun, que desenvolveu as V-2, participou ativamente do programa de mísseis balísticos dos EUA e depois tornou-se pai do projeto espacial americano. Ele liderou do Projeto Saturno, que depois levaria as naves Apollo para a Lua. Na URSS, o responsável pelo programa espacial foi o coronel Andrei Korolev, antigo prisioneiro de Stálin no Gulag, que estudou as V-2 e chefiou o projeto Vostok.



Sputnik I - os soviéticos chegam na frente
Os soviéticos saíram na frente e surpreenderam o mundo: em 4 de outubro de 1957, foi lançado em órbita da terra o primeiro satélite artificial, o Sputnik-1, uma esfera de 58,5 cm e 83,6 quilos que transmitia sinais de rádio (“bips”) para a Terra. O satélite funcionou durante 22 dias, quando acabou sua bateria. Um mês depois, em 4 de novembro, o Sputnik-2 enviava o primeiro ser vivo ao espaço, a cadela Laika, que acabou morrendo poucas horas depois do lançamento devido ao superaquecimento da cabine. Os EUA só lançariam seu primeiro satélite, o Explorer 1, em 31 de janeiro de 1958; em junho foi criada a NASA, agência aeroespacial americana. A URSS ainda lançaria a Luna 1, primeiro satélite a orbitar o Sol, em janeiro de 1959; em setembro, o Luna 2, primeira sonda a alcançar a Lua.

Gagárin: "A Terra é azul e eu não vi Deus"
Mas foi em 12 de abril de 1961, há 50 anos, que os soviéticos realmente assombraram o mundo, quando lançaram o primeiro homem ao espaço. A bordo da nave Vostok 1, lançada do cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão, o cosmonauta Yuri Gagárin, 27 anos, major da Força Aérea soviética, completou uma volta à órbita da Terra em 1h48min. A primeira frase que Gagárin proferiu ao ver o globo terrestre foi: “A Terra é azul”. Essa constatação algo romântica da grandeza do Universo granjeou simpatias ao cosmonauta soviético no Ocidente – afinal, ele “parecia” humano, embora viesse do “país vermelho” – era o auge da guerra fria. Talvez por isso poucos tenham dado importância à frase seguinte de Gagárin, mais condizente com o credo marxista: “Olhei para os lados, mas não vi Deus”. Gagárin morreria num acidente quando pilotava um MiG-15, em 1968.


Kennedy inspeciona cápsula da Geminui
A conquista do espaço pelos soviéticos levou o presidente americano John Fitzgerald Kennedy a prometer que os americanos chegariam à Lua até o final da década de 1960: “We choose to go to the moon. We choose to go to the moon in this decade and do the other things, not because they are easy, but because they are hard” (“Nós decidimos ir à Lua. Nós decidimos ir à Lua nesta década e fazer as outras coisas, não porque elas são fáceis, mas porque elas são difíceis”). Êta irlandês topetudo! Enfim, os americanos começaram a correr atrás do prejuízo e, já em maio de 1961, a Mercury Freedom 7 lançava o primeiro americano ao espaço, Alan Shepard. Em junho de 1963, os soviéticos deram outro passo à frente, lançando a Vostok 6, que levou ao espaço a primeira mulher, Valentina Tereshkova. Em fevereiro de 1966, a soviética Luna 9 tornou-se a primeira nave não-tripulada à chegar à Lua.

Apolo 11, a conquista 
Os EUA finalmente venceram a corrida espacial em 20 de julho de 1969, quando o primeiro homem pisou na Lua: o astronauta americano Neil Armstrong, a bordo da Apollo 11, fincou a bandeira de Tio Sam no solo lunar. Uma conquista que ecoava Iwo Jima, lembram-se? Em compensação, como gostavam de filosofar esses astronautas do século XX: “um pequeno passo para um homem, mas um salto gigantesco para a humanidade”, disse Armstrong. Será que eles tinham assessores de imprensa? A Lua, de qualquer modo, nunca mais seria a mesma.





Le voyage dans la Lune, Georges Méliès (1902)





Lunik 9 (Gilberto Gil), por Elis Regina

quinta-feira, 24 de março de 2011

CONTRA A CORRENTE

“A Justiça exagerada é extremamente injusta”

Marco Túlio Cícero, estadista e orador romano



Numa sessão histórica, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu um exemplo de independência e de respeito à Constituição ao decidir, pelo placar apertado de 6x5, que a Lei da Ficha Limpa (LC n° 135/2010) só poderá vigorar nas eleições de 2012. O argumento é que ela foi sancionada em 2010 e o Artigo 16º da Constituição Federal diz explicitamente: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

Ministro Cezar Peluso: contra o "clamor popular"
O voto decisivo foi dado pelo recém-empossado ministro Luiz Fux. A melhor declaração de voto, contudo, ficou com o presidente da Casa, ministro Cezar Peluso: “o tribunal que atende aos anseios do povo, ao arrepio da Constituição, não é um tribunal no qual o povo pode confiar”. Já a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) rendeu-se à demagogia do “clamor popular”: segundo o presidente do Conselho Federal da Ordem, Ophir Cavalcanti, “a decisão do Supremo Tribunal Federal proferida com o voto do ministro Luiz Fux [..] frustra a sociedade que, por meio de lei de iniciativa popular, referendada pelo TSE, apontou um novo caminho para a seleção de candidatos a cargos eletivos fundado no critério da moralidade e da ética, exigindo como requisito de elegibilidade a não condenação judicial por órgão colegiado”.

A Lei da Ficha Limpa teve origem numa iniciativa popular contra políticos corruptos. No fundo, o raciocínio é que, já que o povo não sabe votar e coloca no poder gente desse naipe, o jeito é impedir os corruptos de se candidatar. A proposta recolheu 1,2 milhão de assinaturas e, em tempo recorde, foi aprovada na Câmara, no Senado e sancionada pelo presidente da República. O problema é que a iniciativa foi tão açodada que criaram um monstrengo jurídico. A versão inicial, feita sob medida para atender à sanha neoudenista da classe média, previa que qualquer pessoa condenada em primeira instância (!) estaria impedida de se candidatar a cargos eletivos. O projeto foi retificado no Congresso, mas ainda assim ficaram falhas clamorosas, como essa que o STF apontou para derrubar a vigência da lei em 2010. Sem contar que há dúvidas sobre a própria constitucionalidade da lei, já que a Carta Magna prevê que “ninguém será julgado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória” (Art. 5º, inciso LVII). Ora, se ninguém pode ser considerado culpado até ser julgado em última instância, como seria possível punir o réu antes disso?

Dá a impressão de que a Lei da Ficha Limpa foi a maneira com que o Legislativo, incomodado com o ativismo legiferante que o Judiciário tem demonstrado nos últimos tempos, principalmente em matéria eleitoral, tentou dar o troco aos magistrados. Meteu o pé pelas mãos. De qualquer forma, se a Justiça no Brasil não fosse tão morosa e burocrática, não seria necessário inventar leis específicas para impedir que corruptos se candidatassem, como o Ficha Limpa. Se os políticos corruptos já tivessem sido julgados e condenados, não poderiam aspirar a ser representantes do povo.

Eles queriam acabar com a corrupção...
É ruim para a democracia brasileira que personagens como Paulo Maluf, Jader Barbalho e Anthony Garotinho, entre outros, estejam impunemente ocupando cadeiras no Congresso Nacional. Mas é muito pior aceitar que, em nome da “moralidade pública”, o Estado Democrático de Direito seja conspurcado. Afinal - sempre é bom lembrar - o discurso moralista contra a corrupção dos políticos, digno de um Catão e um Savonarola, foi uma das justificativas para o golpe cívico-militar de 1º de abril de 1964.

quarta-feira, 23 de março de 2011

A CONSCIÊNCIA DE UM LIBERAL AMERICANO

John Rawls
Reproduzo aqui um texto do Voltaire Schilling sobre a obra do pensador norte-americano John Rawls, o grande teórico liberal – no sentido anglo-saxão do termo – cujo livro seminal, A Theory of Justice, foi lançado em 1971 no auge do movimento pelos direitos civis nos EUA, que se iniciara na década de 1950. Suas teorias justificam as políticas progressistas, como a ação afirmativa, que até hoje fazem os reacionários de todos os meridianos pensarem em sacar suas Brownings... 

  
“Certa vez, Hegel escreveu que a Filosofia – tal como a coruja, que só alça o vôo depois do entardecer –, somente elabora uma teoria após as coisas terem ocorrido. Foi bem esse o caso da contribuição de John Rawls, surgida em livro em 1971, A Theory of Justice, Uma Teoria da Justiça, resultante direto do sucesso da campanha pelos Direitos Civis. Herdeiro da melhor tradição liberal, que principia com Locke, passando por Rousseau, Kant e Stuart Mills, Rawls debruçou-se sobre um dos mais espinhosos dilemas da sociedade democrática: como conciliar direitos iguais numa sociedade desigual, como harmonizar as ambições materiais dos mais talentosos e destros com os anseios dos menos favorecidos em melhorar sua vida e sua posição na sociedade? Tratou-se de um alentado esforço intelectual para conciliar a meritocracia com a idéia da igualdade.

O movimento pelos direitos civis nos anos 1950...
A resposta que Rawls encontrou para resolver essas antinomias e posições conflitantes fez história. Nem a social-democracia europeia, velha de mais de século e meio, adotando sempre um política social pragmática, havia encontrado uma solução teórica-jurídica para tal desafio. Habermas, o maior filosofo alemão do pós-guerra, considerou o livro de Rawls um marco na história do pensamento, um turning point na teoria social moderna, abrindo caminho para a aceitação dos direitos das minorias e para a política da Affirmative Action, a ação positiva. Política de compensação social adotada em muitos estados dos Estados Unidos desde então, que visa ampliar e facilitar as possibilidades de ascensão aos empregos públicos e aos assentos universitários por parte daquelas minorias étnicas que deles tinham sido até então rejeitadas ou excluídas. Cumpre-se dessa forma a sua meta de maximize the welfare of society's worse-off member, de fazer com que a sociedade do Bem-Estar fosse maximizada em função dos que estão na pior situação, garantindo que a extensão dos direitos de cada um fosse o mais amplamente estendido, desde que compatível com a liberdade do outro. Se foi o projeto da Grande Sociedade de (Lyndon Johnson) quem impulsionou a teoria de Rawls, suas proposições, difundindo-se universalmente, terminaram por lançar as bases dos fundamentos ético-jurídicos do moderno Estado de Bem-Estar Social, 20 ou 30 anos depois ele ter sido implementado.

A sociedade justa

...e nos anos 1960, quando se impuseram à sociedade
De certo modo Rawls retoma, no quadro do liberalismo social de hoje, a discussão ocorrida nos tempos da Grécia Antiga, no século 5 a.C., registrada na República, de Platão. Ocasião em que, por primeiro, debateu-se quais seriam os fundamentos de uma sociedade justa. Para o filósofo americano os seus dois pressupostos são: 1) igualdade de oportunidade aberta a todos em condições de plena equidade e: 2) os benefícios nela auferidos devem ser repassados preferencialmente aos membros menos privilegiados da sociedade, os worst off, satisfazendo as expectativas deles, porque justiça social é, antes de tudo, amparar os desvalidos. Para conseguir-se isso é preciso, todavia, que uma dupla operação ocorra. Os better off, os talentosos, os melhor dotados (por nascimento, herança ou dom), devem aceitar com benevolência ver diminuir sua participação material (em bens, salários, lucros e status social), minimizadas em favor do outros, dos desassistidos. Esses, por sua vez, podem assim ampliar seus horizontes e suas esperanças em dias melhores, maximizando suas expectativas. 
A Grande Sociedade não era suficientemente grande para abrigá-los 
Para que isso seja realizável numa moderna democracia de modelo representativo é pertinente concordar inclusive que os representantes dos menos favorecidos (partidos populares, lideranças sindicais, minorias étnicas, certos grupos religiosos, e demais excluídos), sejam contemplados no jogo político com a ampliação da sua deputação, mesmo que em detrimento momentâneo da representação da maioria. Rawls aqui introduz o principio ético do altruísmo a ser exigido ou cobrado dos mais talentosos e aquinhoados – a abdicação consciente de certos privilégios e vantagens materiais legítimas em favor dos socialmente menos favorecidos.

A direita ontem: a fascistizante Klu Klux Klan...
Há nisso uma clara evocação, de origem calvinista, à limitação dos “direitos do talento”, sem a qual ele considera difícil, senão impossível, pôr em prática a equidade. Especialmente quando ele lembra que uma sociedade materialmente rica não significa necessariamente que ela seja justa. Organizações sociais modestas, lembra ele, podem apresentar um padrão de justiça bem maior do o que se encontra nas opulentas. Exemplo igual dessa “secularização do calvinismo” visando o apelo à concórdia social, é a abundância no texto de Rawls de expressões como, além do citado altruísmo, “benevolência”, “imparcialidade”, “desinteresse mútuo”, “desejos benevolentes”, “situação eqüitativa”, “bondade”, “objeção de consciência” etc...

Equidade e igualdade

...e a direita hoje: a delirante Sarah Palin e seu Tea Party
 Se a pregação de Rawls a favor da limitação dos benefícios obtidos pelos mais talentosos desgosta a maioria dos teóricos conservadores (é injusto retirar do talentoso as vantagens legítimas adquiridas por ele), a questão da equidade sobrepor-se como um sucedâneo a igualdade fere os princípios dos teóricos democráticos mais radicais. Aparentemente, ele descarta a possibilidade de haver uma distribuição dos bens igual para todos. Rawls aposta mais na eficácia equidade para aparar os feitos negativos da desigualdade.


Por mais que a sociedade liberal tenha proclamado ao longo dos tempos seu em empenho em favor da igualdade de oportunidades para todos, e na difusão universal dos direitos de cidadania, sabe-se que, na prática isso não ocorre. Um simples vislumbre da paisagem social existente na maioria dos países democráticos confirma que as afirmações pró-igualdade, alardeadas por todos, prendem-se mais à retórica do que à realidade. Evidentemente que pode-se superar isso, e a história assim o demonstrou, pela aplicação revolucionária de uma igualdade imposta pela violência ou pelo terror político, na qual todos terão acesso as mesmas coisas. Isso, porém, além de ter-se verificado inviável ou impraticável numa sociedade democrática, comete uma outra injustiça, visto que desconsidera as vantagens legitimas obtidas pelos talentosos e os bem sucedidos em geral.

Equidade e altruísmo
Immanuel Kant

A correção das injustiças sociais, por conseguinte, somente poderia advir da prática de uma politica visando a equidade, claramente localizada e pontual. Não de uma revolução social. Verificando-se qual o setor social menos favorecido (em razão da raça, sexo, cultura ou religião), mecanismos legislativos compensatórios entrariam em ação para buscar reparar, pela lei e com o consentimento geral, as injustiças cometidas. É certo que isso requer a suspensão temporária dos direitos de todos os demais, especialmente dos bem sucedidos, mas, como acreditava Kant, a Billigkeit, a equidade deve ser, antes de tudo, reivindicada no tribunal da consciência e não nos tribunais comuns. A sociedade num todo avançaria então gradativamente identificando aqui e a ali as correções sociais a serem feitas, agindo cirurgicamente no sentido de superá-las pela lei , aplicada simultaneamente ao apelo constante ao altruísmo dos better off, não no sentido de uma inatingível igualdade absoluta, como era o desejo dos radicais socialistas, mas na direção da mais justa possível a ser alcançada dentro das normas de uma democracia liberal moderna..

Invertendo Platão

Platão, o filósofo da aristocracia
A sociedade justa para Platão era aquela que alocava cada um dos seus integrantes segundo suas aptidões verificadas (inteligência, coragem ou apetite), cabendo o seu governo aos mais qualificados: os filósofos. Por conseguinte, sua visão favorecia um regime dominado, digamos, dos mais técnicos, dos mais talentosos e inteligentes (comumente se aceita que Platão teria sido o pai da tecnocracia moderna). Rawls inverte tal propósito. Como vimos, uma sociedade realmente justa, para ele, sem que se descurasse da importância dos talentosos, é aquela que funciona em favor dos destituídos.

Conclusão essa que se choca frontalmente com a muito difundida concepção darwinista dos norte-americanos, que divide a sociedade entre vencedores (winners) e perdedores (losers). Como poderiam eles aceitar - numa cultura que celebra o vencedor mais do que qualquer outra que se conheça - uma doutrina voltada preferencialmente a favor dos desvalidos, dos que não tiveram condições de seguir na competição, ou foram alijados dela, mesmo que o objetivo seja nobre visando corrigir um erro do passado? Seja como for,a Teoria da Justiça serve hoje como inspiração para a maior parte dos reformadores sociais em atividade.”


LIZ TAYLOR (1932-2011)

"O problema das pessoas que não têm defeitos é que, com certeza, têm virtudes terríveis."
(Liz Taylor)








































terça-feira, 22 de março de 2011

DO ASSALTO AOS CÉUS À DESCIDA AOS INFERNOS

Há exatos 140 anos, em março de 1871, nascia a Comuna de Paris, primeira experiência de um governo revolucionário dos trabalhadores da História. A comuna foi fruto direto da pusilanimidade da burguesia francesa na defesa do país frente às tropas prussianas durante a Guerra Franco-Prussiana. O imperador francês Napoleão III havia iniciado a guerra para impedir o processo de unificação alemã liderado pelo chanceler prussiano Otto von Bismarck. Em setembro de 1870, as tropas francesas foram fragorosamente derrotadas em Sedan. O imperador francês foi feito prisioneiro pelos prussianos, que exigiram pesadas indenizações, bem como a cessão da região mineradora da Alsácia-Lorena e uma marcha triunfal pelos Champs-Elysées.


O imperador Napoleão III
A queda de Napoleão III resultou na formação da III República Francesa com um governo provisório de defesa nacional. As exigências de Bismarck enraiveceram os franceses e dezenas de milhares engrossaram as fileiras da Guarda Nacional, a mílicia dos cidadãos armados. O Exército prussiano sitiou Paris durante quatro meses. Além da fome, o cerco provocou um racha nos republicanos - os moderados queriam se render aos prussianos enquanto que os revolucionários exigiam lutar até o fim. Em janeiro de 1871, um armistício suspendeu as operações militares. A burguesia francesa sofreu a humilhação de ver o rei prussiano Wilhelm I ser coroado imperador do II Reich - a Alemanha unificada - no salão dos espelhos do Palácio de Versalhes. Em fevereiro de 1871, a Assembléia Nacional da França elegeu Louis Adolphe Thiers presidente da República. A ele coube o papel de verdugo dos revolucionários parisienses.

Adolphe Thiers
Depois de ter dissolvido o Exército francês, Thiers tentou desmilitarizar a Guarda Nacional. Seus integrantes, contudo, resistiram a entregar os canhões e atacaram o Hôtel de Ville, sede do governo provisório, levando seus membros a fugir para Versalhes. Quando as tropas de Thiers foram enfrentadas pelos féderés da Guarda Nacional - misturados com as mulheres e crianças do bairro operário -, elas depuseram as armas e se uniram aos revoltosos.


Monumentos que representam a velha ordem vêm abaixo
"Apesar de todas as melhorias urbanas realizadas pelo barão de Hausemann nas décadas anteriores - os bulevares à prova de barreiras, a dispersão dos bairros operários, as ruas retas para facilitar o movimento das tropas -, Paris ainda era a cidade da revolução. As barricadas foram erguidas, as tropas remanescentes do governo voltaram para Versalhes", escreve o historador Tristam Hunt. "Um novo conselho municipal foi anunciado, com o título de 'Comuna de Paris' evocando conscientemente a Comuna de 1792". "Que resiliência, que iniciativa histórica, que capacidade de sacrifício desses parisienses", escreveria Karl Marx.     

Influenciada pelas idéias socialistas e anarquistas, a Comuna de Paris tomou uma série de medidas no sentido de criar uma república democrática e igualitária. A "Declaração ao Povo Francês" pedia liberdade de consciência, direito de envolvimento permanente dos cidadãos em questões comunais, o dever dos funcionários públicos e magistrados de prestar contas, a substituição da polícia e do Exército pela Guarda Nacional, redução da jornada de trabalho, abolição do trabalho noturno, concessão de pensão a viúvas e órfãos, substituição dos ministérios por comissões eletivas e a separação entre a Igreja e o Estado. Com essas medidas, os communards reinventavam a democracia direta. 

Enquanto a revolução entusiasmava Paris, Thiers negociava com a Prússia, em Versalhes, uma aliança para derrotar o governo da Comuna. Em troca de concessões da França, Bismarck libertou prisioneiros de guerra franceses para que pudessem ajudar no cerco à cidade. Assim, em 21 de maio de 1871, mais de 120 mil soldados atacaram Paris. Seguiu-se a semaine sanglante, quando milhares de communards foram massacrados pelas forças do governo. "As armas que são carregadas pela culatra não matavam mais com a rapidez necessária; os vencidos eram fuzilados pelo fogo mitrailleuse", escreveu Friedrich Engels. A Comuna foi esmagada e entre 60 mil e 80 mil communards morreram. "O Muro dos Féderés do cemitério Père Lachaise, onde foi consumado o assassinato em massa final, ainda está de pé até hoje, um testemunho mudo, mas eloquente, da loucura que a classe dominante é capaz assim que a classe operária ousa se levantar para lutar por seus direitos", escreveram Marx e Engels. 
 
Communards fuzilados em Paris

O "assalto ao céu" descrito por Marx acabaria com a descida ao inferno dos massacres. Lasciate ogni speranza, voi ch' intrate (Deixai aqui toda a esperança, vós que entrastes), escreveu Dante Alighieri no Canto III do Inferno. A generosa utopia da Comuna de Paris, gravada a ferro e fogo nos corações de várias gerações de socialistas, jamais se realizaria. Ficou o exemplo de luta e determinação.