Abdias do Nascimento, morto ontem aos 97 anos, foi um dos pioneiros na luta contra o racismo no Brasil. Fundador do Teatro Experimental do Negro em 1944, organizou o primeiro Congresso do Negro Brasileiro, em 1950. Em 1968, com o endurecimento da ditadura militar, exilou-se nos Estados Unidos, onde trabalhou como professor universitário. Em 1978 foi co-fundador do Movimento Negro Unificado (MNU). Dois anos depois, em maio de 1980, foi, juntamente com Leonel Brizola – de quem se tornara amigo no exílio – um dos fundadores do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Escolhido vice-presidente do partido em 1981, neste mesmo ano fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, na PUC de São Paulo. Em 1982, Abdias retornou definitivamente ao Brasil. Foi ainda deputado federal, senador e secretário de Estado.
O artigo abaixo, do dramaturgo Nelson Rodrigues, foi escrito há mais de 50 anos e traça um belo perfil de Abdias, da sua luta e da hipocrisia da nossa "democracia racial".
Por Nelson Rodrigues
O que eu admiro em Abdias do Nascimento é a sua irredutível consciência racial. Por outras palavras: trata-se de um negro que se apresenta como tal, que não se envergonha de sê-lo e que esfrega a cor na cara de todo o mundo.
Aí está "Sortilégio", o seu mistério, que vive, justamente, do seu dilaceramento de negro. Eu já imagino o que vão dizer três ou quatro críticos da nova geração: - que o problema não existe no Brasil etc., etc., etc. Mas existe.
E só a obtusidade pétrea ou a má-fé cínica poderão negá-lo. Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. A vida do preto Brasileiro é toda tecida de humilhações. Nós o tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite. Acho o branco brasileiro um dos mais racistas do mundo.
A primeira condição de "Sortilégio" para ser válida como expressão artística de um problema brasileiro está na base da autenticidade. A peça nutre-se de toda a experiência vital do autor. Ele é o "Dr. Emanuel"; 'a semelhança do seu herói, foi atirado no xadrez, como um objeto "doutor africano"; e se fosse casado com uma esposa branca estaria sempre diante do limite do crime, do suicídio, da loucura.
Eis a grandeza do personagem: - a exasperada solidão. E que grande e quase intolerável poder de vida tem "Sortilégio"! Na sua firme e harmoniosa estrutura dramática, na sua poesia violenta, na sua dramaticidade ininterrupta, ela também constitui uma grande experiência estética e vital para o espectador. Não tenham dúvidas que a maioria da crítica não vai entendê-la.
Sobretudo, dois ou três cretinos que se intitulam a si mesmos de "novos". Mas não são "novos" coisa nenhuma. Entre a Sra. Barreto Leite, que tem a idade do Sr. Mário Nunes e os Srs. Paulo Francis e Henrique Oscar, que são garotos, não há diferença. Diga-se a verdade total: - não são novos, nem velhos. São burros. Tanto faz, que tenham 15 ou 80 anos. A burrice os isenta do tempo. Vão se atirar contra "Sortilégio". Mas nada impedirá que o mistério negro entre para a escassa história do drama brasileiro.
Publicado no jornal ÚLTIMA HORA em 26 de agosto de 1957
Entrevista de Lázaro Ramos com Abdias em 2009. Video extraído do blog "Tijolaço", do deputado Brizola Neto.
Untitled from Tijolaco on Vimeo.
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