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sexta-feira, 13 de maio de 2011

ILUSÕES PERDIDAS


François Mitterrand, maio de 1981, "a força tranquila"
Trinta anos atrás, François Mitterrand, do Partido Socialista, era eleito presidente da França, tornando-se o primeiro - e até agora único - presidente de esquerda da V República. A eleição de Mitterrand, na terceira tentativa de chegar ao Elysée, abriu uma grande expectativa de profundas transformações sociais pela via democrática, mas essas expectativas se frustraram rapidamente e Mitterrand tornou-se o modelo de governo de esquerda que faz da necessidade virtude e implanta com êxito o programa econômico da direita. Esse modelo se repetiria depois nos governos "socialistas" da Espanha, Grécia, Itália e Portugal. E o pior, dá o que pensar sobre experiências semelhantes abaixo do Equador. Transcrevo, abaixo, um paper que resume exemplarmente as expectativas e as frustrações dos chamados "anos Mitterrand".       

"A chegada da esquerda ao poder na França, em 1981, ocorreu num contexto muito particular: profunda divisão da direita (a esquerda ganhou, não porque era majoritária, mas porque se achava diante de uma direita dividida), crise do Welfare State sob os efeitos combinados da internacionalização crescente do mercado interno e dos dois choques petrolíferos, de 1973 e 1979, e, enfim, crise monetária e fiscal sem precedente.

Diante dessa situação, o questionamento do Estado social francês tornou-se, do ponto de vista dos interesses do capitalismo francês, uma necessidade incontornável, que a direita estava, política e socialmente,incapacitada de realizar e de obter a aprovação da sociedade.
A emergência de novas camadas sociais, ligada a uma profunda mudança tecnológica, desempenhou, igualmente, um papel determinante na vitória da esquerda. Entre 1945 e 1975 o movimento operário, as camadas burguesas e as classes assalariadas tradicionais configuravam um relativo equilíbrio. O desenvolvimento do Estado social durante esses trinta anos gloriosos favoreceu o aparecimento de novas assalariadas (funções públicas, serviços etc.) que se tornaram objeto de disputa muito intensa entre o Partido Comunista e o Partido Socialista.

Desde 1972, François Mitterrand escrevia: “Nosso objetivo fundamental é refazer um grande Partido Socialista no espaço ocupado pelo Partido Comunista, a fim de demonstrar que, sobre os 5 milhões de eleitores comunistas, 3 milhões podem votar nos socialistas”. O programa comum exprimiu claramente a vontade do Partido Socialista de reunir essas camadas ao seu redor, e François Mitterrand teve um êxito além do esperado.

I
O programa comum da esquerda foi organizado em torno do tema da ruptura com o capitalismo. Propunha-se construir um novo socialismo: democrático, autogestionário, centrado na reconquista do mercado interno e solidário com os países do Sul.

Mas, a ascensão política da esquerda, sua capacidade de captar as novas camadas sociais, aconteceu paradoxalmente num contexto de derrocada dos ideais da esquerda e de desvio ideológico-conservador (cf. os novos filósofos etc.). A esquerda ganhou politicamente no momento em que a intelligentsia da esquerda tornou-se liberal. O conjunto do contexto internacional revelava esse desvio: revolução conservadora Reagan/Thatcher, enfraquecimento da URSS, crise do terceiro mundismo e emergência da revolução religiosa nos países muçulmanos.


Quando, em 1981, a esquerda vence as eleições, o emprego está, na França, no centro das preocupações. O número de desempregados atinge 1,7 milhões e a taxa de inflação chega a 13%. A esquerda quer retomar o consumo, nacionalizar os bancos e os setores-chave para a criação de emprego e a reconquista do mercado interno, romper com a lógica do franco forte a fim de retomar as exportações e, enfim, refundir o sistema fiscal para uma maior justiça. A experiência de pôr em prática essa política se desenvolve durante dezoito meses, exatamente entre maio de 1981 e março de 1983. Trata-se de um período-chave para a compreensão da situação atual. Durante esses poucos meses, a esquerda fará três escolhas negativas: recusar a desvalorização e aderir à lógica do franco forte, recusar sair do Sistema Monetário Europeu e recusar a reforma fiscal. Essas três recusas assinalam a passagem de uma esquerda reformista, crítica, solidária com o Sul, para uma esquerda conservadora e indiferente à “miséria do mundo”. É simbólico o discurso de solidariedade para com o Terceiro Mundo que fez François Mitterrand em Cancún em 1982. Mais simbólica ainda a pequena frase de Michel Rocard, seis anos mais tarde: “A França não pode acolher toda a miséria do mundo”. Entre essas duas datas passam-se seis anos de uma mudança completa, política, ideológica e cultural, da esquerda.

Mitterrand e Helmut Kohl: unificação alemã e moeda única

1) A recusa da desvalorização impeliu a esquerda a uma política de retomada e a obrigou a aderir à moeda alemã. A desvalorização teria estimulado as exportações, mas ela necessitava de uma vontade política forte em face do modelo liberal representado por Ronald Reagan nos Estados Unidos, Margareth Thatcher na Grã-Bretanha e Helmut Kohl na Alemanha. A esquerda fez então a escolha da política alemã de construção européia ao fim de um rude debate interno que se encerrou com a saída do Partido Comunista e do CERES de Jean-Pierre Chevènement do governo.

2) A esquerda também se recusa a sair do Sistema Monetário Europeu em nome de constrangimentos europeus. Assim, ela faz da Europa sua principal referência, e toda política que entra em contradição com a política liberal européia é portanto rejeitada. A intervenção, na France Inter (emissora de rádio), no dia 9 de fevereiro de 1990, de Henri Emmanuelli, primeiro-secretário do Partido Socialista, é reveladora da renúncia fundamental da esquerda: "Nós fizemos nosso Bad Godesberg. Nós o fizemos a 23 de março, às 11 horas da manhã. O dia em que decidimos abrir as fronteiras e não sair do SME, nós escolhemos uma economia de mercado". Henri Emmanuelli não evoca sequer a possibilidade de uma economia mista. A ruptura é brutal, dupla: ruptura com o programa anticapitalista e aí incluída a ruptura com a possibilidade de um capitalismo social keynesiano. Os dirigentes socialistas evocarão, então, para justificar essa mudança de rumo, a emergência de uma nova “cultura de governo” contra a cultura política tradicional da esquerda. Essa cultura será caracterizada pelo rigor salarial, a recusa da indexação dos salários aos preços, a recusa de lutar contra a desindustrialização, a submissão à Comissão de Bruxelas, o aumento do desemprego, o enfraquecimento dos sindicatos. Enfim, pela distribuição dos principais trunfos do Welfare State.

Diante dessa evolução, a imprensa conservadora-liberal angloamericana exulta. O U.S. News and World Report fala da "transição francesa do socialismo ao reaganismo" (17.12.84), o Financial Times faz da França de Mitterrand um exemplo de inteligência e o Wall Street Journal grita "Hurra para Mitterrand" (6.7.84).

3) A promessa de reforma fiscal foi também traída. No relatório que lhe foi encomendado pelo governo, Pierre Ury fez numerosas proposições para a melhoria dos sistemas fiscais mais desiguais da OCDF. Mas esse relatório foi cuidadosamente posto de lado pelo presidente Mitterrand.


A esquerda recusa os adiantamentos sobre o capital, libera os preços e se opõe ao ajustamento pelos salários.

A direita jamais foi capaz, anteriormente, de empreender tal política. A indicação de Jacques Delors à frente da Comissão de Bruxelas encarna essa política; ele torna-se o responsável pela aplicação da política liberal na Europa. Stanley Hoffman, especialista americano sobre a França, sintetiza de forma notável a situação: “O sucesso dos socialistas foi particularmente nítido onde não se esperava nada. Eles se revelaram mais capazes que os seus predecessores de gerar a austeridade, reduzir a inflação e comprimir os salários. Reabilitaram a concorrência (inclusive no setor público), celebraram o espírito de empresa, iniciaram a desregulamentação e, assim, prepararam o terreno da direita" (quanto ao que Hoffman se felicita).

II

Nem ele teve tanto poder quanto Mitterrand

Essas três recusas (desvalorização, fiscalização, saída do Sistema Monetário Europeu) definiram toda a experiência da esquerda, não apenas entre 1981 e 1983, mas também até os dias de hoje. Elas implicam uma mutação ideológica profunda: passagem do socialismo de esquerda para o liberalismo de esquerda; união em torno de François Mitterrand, que impõe suas escolhas ao Partido Socialista reforçando as instituições da V República. Jamais um presidente terá tido tanto poder quanto François Mitterrand. De Gaulle tinha contra si o Partido Comunista e os sindicatos. Mitterrand não tem oposição, e a direita lhe sorri. Confrontada com o problema histórico-estratégico do desmantelamento do Estado social, a esquerda consegue fazer sem dificuldade o que a direita não pôde realizar entre 1975 a 1981.

Uma das conseqüências fundamentais dessa política é o aparecimento da Frente Nacional. Nos anos 70, a extrema direita era inexistente. Em 1983 ela representa 3% do eleitorado, 13% em 1986 e, hoje, entre 15% e 18%. É nesse contexto de agravamento da situação social e de aumento de idéias xenófobas e racistas que a esquerda perde as eleições legislativas de 1986. Perde por pouco, graças ao gênio manipulador de Mitterrand. Durante os dois anos de sua presença no governo (1986-1988), a direita vai radicalizar o programa da esquerda, notadamente acentuando a liberação do mercado de trabalho (supressão de autorização da licença). Assim que a esquerda retorna ao poder, em 1988, confirmará esse desmantelamento.

A segunda experiência da esquerda no poder, entre 1988 e 1993 se organiza, pois, em torno da  radicalização da política liberal. Ela faz apologia do dinheiro, dos ganhadores (fenômeno Tapie), e põe sua energia no avanço do processo da construção européia (Tratado de Maastricht).

Jean-Marie Le Pen, fortalecido por Mitterrand

Mas, na ocasião do debate sobre a adoção do Tratado de Maastricht, a França se encontrava dividida em duas: de um lado, a direita e o Partido Socialista, de outro, o Partido Comunista, o Movimento dos Cidadãos (ex-CERES), a extrema esquerda e a extrema direita (esta sobretudo por razões xenófobas). O "sim" venceu por pouco, provocando na França a continuação e o reforço da política de desmantelamento do sistema social decidido desde 1983, mediante um tipo de plano de ajuste estrutural pelo qual a Comissão de Bruxelas desempenhava o papel do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. É significativo que François Mitterrand, nas eleições presidenciais de 1988, tenha se recusado a se apresentar aos eleitores em nome da esquerda, do Partido Socialista: preferiu fazê-lo em nome da Europa e de sua construção liberal. Sendo os Estados europeus majoritariamente pró-atlantismo, esse enraizamento europeu levou a uma reonentação estragégica da esquerda: o alinhamento da França com os EUA. Daí sua submissão, na Guerra do Golfo. Nesse período, como um eco ao aprofundamento da crise social, na França, responde-se com a continuação da subida da Frente Nacional, que se torna o terceiro partido da França e o primeiro partido popular.

III


Pode-se perguntar quais são as razões de a esquerda ganhar e perder sucessivamente as eleições. A orientação liberal européia não significa somente a submissão à mundialização, mas, de forma mais fundamental, um projeto de sociedade radicalmente oposto às estruturas profundas da sociedade francesa: a americanização e a redução da cidadania ao individualismo, a destruição da identidade coletiva, o questionamento, em suma, do modelo republicano francês. Ora, esse modelo liberal europeu não cessa de atingir não as forças socialistas, mas o núcleo organizador da tradição republicana francesa. Se o liberalismo conseguiu destruir o Welfare State, não pode destruir os valores republicanos de igualdade, de recusa do diferencialismo, da meritocracia, da autonomia do espaço público e da cidadania. Esses são os valores que permitiram resistir à mundialização. Foi em nome desses valores que se desenvolveu o movimento social depois de 1995, em detrimento dos intelectuais apologistas do liberalismo, como Alain Touraine. Na realidade, mais do que nunca, os franceses, confrontados com os distúrbios da mundialização, ligam-se ao Estado regulador. Desde seu retorno, em 1997, a esquerda se defronta com essa pressão.


A experiência da esquerda no poder entre 1981 e 1993 foi, portanto, a da renúncia. Não houve uma política de esquerda. Duas explicações, pouco satisfatórias, são freqüentemente sugeridas para explicar essa atitude. De um lado, a da traição (a esquerda traiu seu eleitorado); de outro, a do "interesse geral": a esquerda deve governar para todos os cidadãos, sejam eles de direita sejam de esquerda.


Não se comentarão, evidentemente, essas duas explicações. É suficiente lembrar que a esquerda não passou de forma alguma para o campo da direita e que continua a se apoiar num eleitorado socialmente à esquerda.

Uma outra explicação, mais séria, consiste em evocar os problemas internacionais para explicar a mudança de estratégia da esquerda. Uma ruptura com o sistema liberal mundializado, dizem, teria significado uma declaração de guerra ao sistema financeiro internacional. Era necessário, então, ser capaz de resistir a seus ataques: assumir o protecionismo e as penúrias, as dificuldades encontradas no mercado internacional, os ataques contra a moeda. Entre 1981 e 1983 a esquerda não tentou uma política de retomada? Ora, a moeda foi atacada, a França estigmatizada pela Alemanha, Inglaterra e EUA.


Esses entraves externos são reais, mas não existem independentemente da capacidade da França de avaliá-los. O que sempre se esquece é que o argumento da interdependência tem uma dupla face: os parceiros são igualmente dependentes da França. O investimento estrangeiro na França pode também ser uma arma nas mãos da França. A França não conseguiu, a respeito do audiovisual, impor aos europeus uma atitude comum em face da invasão audiovisual norte-americana? De fato, a esquerda escolheu, desde o início, não travar a batalha. Quais são as razões profundas que esclarecem essa escolha?

IV
Pode-se, rapidamente, adiantar algumas sugestões para responder a essa pergunta. O que está em questão é, sem dúvida, a tradição cultural da esquerda, sua concepção de política, sua base social e a composição de suas elites dirigentes.

a) Tradicionalmente, a luta da esquerda é menos articulada à transformação social do que à conquista do poder. Não há correlação direta entre poder político e transformação das relações sociais. Conquistar um não significa mudar o outro. A mudança, portanto, só se realiza se as relações sociais se transformam. Uma vez conquistado o poder, as elites da esquerda procuraram, sobretudo, desmobilizar os movimentos sociais e fazer do poder político problema de especialistas da política.

b) A esquerda (como a direita) tem uma concepção instrumental da política. A prática política fica totalmente separada do movimento social. Para os partidos de esquerda, tudo se passa como se os movimentos sociais só fossem úteis quando eles estão na oposição. Ora, para impor um programa de transformação, é preciso se apoiar num movimento social mobilizado e dinâmico. Mas esses movimentos amedrontam a esquerda – simplesmente porque são uma crítica permanente do poder instituído.

c) A base social da esquerda se transformou. Houve uma união entre o antigo proletariado operário e as novas camadas assalariadas que progressivamente se tornaram majoritárias. A concepção de mundo dessas camadas não é revolucionária, é evolucionista. Essas camadas procuram acima de tudo a integração social e não a ruptura. O Partido Socialista considera então que seu eleitorado central não o seguiria numa estratégia de ruptura.

Thatcher e Kohl: mais identidade que diferenças 

Ora, enquanto essas novas camadas médias emergiam, o processo de desindustrialização resultante da política liberal conduziu à marginalização progressiva uma parte das camadas operárias. Tendencialmente excluídas, as velhas camadas operárias abandonaram progressivamente o Partido Comunista, voltando-se para a Frente Nacional, cujo discurso radical aparecia como a única resposta à sua situação. A verdadeira batalha, no futuro, se fará pela reconquista dessas camadas, pela esquerda.

d) O problema das elites mereceria um estudo específico. Digamos somente que as elites de esquerda são cada vez mais dependentes do Estado. O Estado financia os partidos e os sindicatos. Se, assim que chegam ao poder, as elites da direita colocam o Estado a serviço do capital, as elites de esquerda se colocam tradicionalmente a serviço do Estado, portanto, a serviço da reprodução do sistema. A questão da transformação da sociedade torna-se, assim, uma questão perigosa.

Poder-se-iam acrescentar outros elementos para explicar a timidez da esquerda no poder. O certo é que não se trata somente de uma questão de “projeto” ou de desaparecimento da “utopia” transformadora. Trata-se, também, e talvez sobretudo, de um problema social e cultural profundo: quais são as bases sociais da esquerda neste final de século? São elas portadoras de uma verdadeira alternativa civilizadora ao capitalismo mundializado? Sem dúvida, não é fácil responder a essas duas questões, tantas foram as perturbações sociais profundas destes últimos vinte anos, como também a derrota de experiência “socialista” fez explodir as categorias intelectuais da esquerda, tanto a socialista como a comunista. É preciso reinventar tudo."

Sami Naïr, A esquerda e o poder: a experiência francesa (1981-1997)

Artigo apresentado no seminário "Socialismo, liberalismo e mundialização", no Programa de Pós-Graduaçâo em Sociologia da FCL/UNESP/Aiaraquara, agosto de 1997

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