(trecho de um artigo publicado no jornal Valor Econômico de 27 de abril de 2011 sob o título O direito humano à guerra)
Hugo Grotius |
Uma bela reflexão do professor José Luís Fiori sobre o suposto "direito de intervenção numanitária" das nações ditas civilizadas.
"Hugo Grotius (1583- 1645), pai do direito internacional moderno, foi herdeiro da tradição humanista e cosmopolita da filosofia estóica, que formulou, pela primeira vez, a ideia de uma sociedade internacional solidária e submetida a leis universais. Mesmo sendo cristão e teólogo, Grotius desenvolveu a tese de que essas leis universais faziam parte de um ‘direito natural comum a todos os povos... tão imutável que não poderia ser mudado nem pelo próprio Deus’. Para o jurista holandês, o direito à segurança e à paz faziam parte desses direitos fundamentais dos homens e das nações. Apesar disso, Grotius considerava que o recurso à guerra também era um direito natural dos povos que viviam dentro de um sistema internacional composto por múltiplos estados, desde que a guerra visasse "assegurar a conservação da vida e do corpo e a aquisição das coisas úteis à existência". Mas apesar disso, Grotius não concebeu nem defendeu a possibilidade de que se propusesse como objetivo a defesa ou promoção internacional dos próprios direitos humanos. Em parte, porque ele era católico e conhecia a decisão do Concílio de Constança (1414- 1418. O mesmo que condenou como herético o reformador John Wycliffe e mandou Jan Hus à fogueira, observações minhas) que fixara a doutrina da ilegitimidade da ‘conversão forçada’, e de todo tipo de guerra visando a conversão de outros povos, como tinha sido o caso das Cruzadas, nos séculos anteriores.
Depois do Concílio de Constança, o conceito de ‘guerra justa’ ficou restrito - para os católicos, e para quase todos os europeus - as guerras que respondessem a uma agressão, e que fossem caracterizadas como um ato jurídico, destinado a reconstituir o status quo ante. Grotius não desenvolveu o argumento, mas se pode deduzir, do seu ponto de vista, que os direitos humanos, como a fé religiosa, são uma luta e uma conquista de cada homem, e da cada povo em particular. Sobretudo, porque ele foi um dos primeiros a se dar conta que num sistema internacional formado por múltiplos estados, era inevitável que coexistissem várias ‘inocências subjetivas’, frente a uma mesma ‘justiça objetiva’. Não havendo forma de arbitrar – ‘objetivamente’ - sobre a razão ou legitimidade de uma guerra declarada entre dois povos que reivindicassem uma interpretação diferente, dos mesmos direitos fundamentais, dos homens e das nações. Nesse sentido, a própria ideia de uma guerra em nome dos ‘direitos humanos’, contém uma contradição conceitual, e é por isso que todas elas acabam se transformando, inevitavelmente, numa ‘guerra de conversão’, ou numa nova forma de Cruzada.
Em última instância, esse também é o motivo pelo qual a discussão sobre Direitos Humanos, no campo internacional, se transformou - depois do fim da Guerra Fria - num terreno cercado de boas intenções, mas minado pelo oportunismo e pela hipocrisia. Porque existe, de fato, uma fronteira muito tênue e imprecisa entre a defesa do princípio geral, como projeto e como utopia, e a arrogância de alguns estados e governos que se auto-atribuem o "direito natural" de arbitrar e difundir, pela força, a tábua ocidental dos direitos humanos. Para compreender a complexidade e a fluidez dessa fronteira, basta ler um outro grande filósofo iluminista e cosmopolita, o alemão Immanuel Kant, dividido entre a sua utopia de uma ‘paz perpétua’, e o seu desejo de converter o ‘gênero humano’ à ‘ética internacional civilizada’. Para Kant, ‘no grau de cultura em que ainda se encontra o gênero humano, a guerra é um meio inevitável para estender a civilização, e só depois que a cultura tenha se desenvolvido (Deus sabe quando), será saudável e possível uma paz perpétua’. (Começo verossímil da história humana, 1796)."
(trecho de um artigo publicado no jornal Valor Econômico de 27 de abril de 2011 sob o título O direito humano à guerra)
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