Thomas Mann |
"Entre todos os tipos de seres humanos que a cidade grande oferecia à minha observação, um deles, especial e determinado, cuja mera existência no mundo burguês oferece bastante alimento à fantasia, chamava particularmente a atenção do adolescente em formação. Era aquele tipo de pessoas designadas como mulheres públicas ou de vida fácil, ou simplesmente como "criaturas", ou, em palavras mais nobres, sacerdotisas de Vênus, ninfas ou Frinéias. Morando juntas em casas de tolerância, ou andando à noite por determinadas ruas, com aquiescência ou tolerância da autoridades, alugam seu corpo a homens ávidos de prazer aptos a pagar por ele.
A mim sempre me parecia que esse arranjo, encarado como, na minha opinião, devem ser encaradas as coisas, isto é, com um olhar limpo e não condicionado por convenções: esse fenômeno sobrevivia em nossa época tão moralista como um resquício colorido e aventuresco de épocas mais brilhantes, e sempre surtia em mim um efeito estimulante, sim, tornava-me feliz pelo simples fato de existir."
A linguagem do povo chama de 'passaros da morte' ou mochos o tipo de pequenas corujas que, segundo dizem, à noite batem contra a vidraça do quarto dos moribundos atraindo a alma amedrontada com o chamado 'venha! venha!'. Não admira que esse rótulo sirva também a essa suspeita irmandade, quando, passando debaixo dos lampiões, convidam os homens ao prazer, de maneira insolente e disfarçada. [...] Assim, tocando-nos com o braço, passam por nós na calçada; os olhos nos quais se refletem os lampiões espreitam-nos de lado, os lábios se retorcem num sorriso cálido e incedente, e, enquanto nos sussurram o rápido e disfarçado chamado dos pássaros da morte, indicam num breve aceno da cabeça um lugar incerto e promissor, onde, se o ousado obedecesse ao aceno ou à senha, encontraria um prazer imenso, nunca experimentado antes. [...]
Tais pessoas, diga-se de passagem, nunca deveriam falar. Sorrindo silenciosas, com olhares e acenos, impressionam; mas, assim que abrem a boca, correm grande perigo de nos deixarem outra vez lúcidos, perdendo sua aura. Pois a palavra é inimiga do mistério, cruel traição da vulgaridade."
Thomas Mann, Confissões do impostor Felix Krull
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