JFK e a estonteante Marilyn Monroe |
Tradicionalmente, os escândalos sexuais de líderes políticos costumam ter maior repercussão em países anglo-saxônicos, onde o puritanismo calvinista ainda cobra seu dízimo de moralismo exacerbado. Nem sempre foi assim, no entanto: toda a mídia americana sabia que John Kennedy era priápico, mas seus casos rumorosos, como o envolvimento com Marilyn Monroe, jamais foram parar nas páginas dos jornais, a não ser depois de sua morte. Mas desde que o furor puritano renasceu sob a máscara do comportamento “politicamente correto”, há uns 30 anos, acostumamo-nos a ver políticos americanos e britânicos serem crucificados simplesmente por terem “pulado a cerca”. O senador Gary Hard e o ex-presidente Bill Clinton, ambos democratas, foram os exemplos mais paradigmáticos, embora também houvesse casos de políticos ultraconservadores moralistas apanhados com a, digamos, boca na botija - muitas vezes com pessoas do mesmo sexo.
Anne Pingeot e Mazzarine, segunda família de Mitterrand |
Já nos países latinos, o público costuma fechar os olhos para as “escapadas” de seus dirigentes. O presidente francês François Mitterrand (1981-1995) é o caso mais notório: ele tinha uma filha com uma amante de longa data; os franceses sabiam disso o tempo todo e ninguém jamais se importou. Quando Mitterrand morreu, as duas famílias compareceram civilizadamente ao funeral e não houve escândalo. Por isso, chega a ser estranho que o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi – cuja carreira foi marcada por uma sucessão de ilegalidades, corrupção, obstrução da Justiça, intimidação de jornalistas e abuso do poder, esteja sendo colocado nas cordas justamente por exacerbação de comportamento machista e patriarcal. No domingo, cerca de um milhão de pessoas, a grande maioria mulheres, foram às ruas de mais de 200 cidades italianas para exigir a renúncia do Cavaliere, acusado de promover bacanais com prostitutas, inclusive menores de idade - ele está sendo processado por supostamente ter tido relações sexuais com Ruby, uma menina de 17 anos.
Curiosamente, uma das observações mais argutas sobre a manifestações de domingo partiu da deputada Giulia Bongiorno, do partido Futuro e Liberdade, grupo dissidente de Gianfranco Fini: “Não estou aqui para criticar as festas hard, mas para denunciar que se converteram em um sistema de seleção da classe dirigente. Quem cala pode converter-se em cúmplice. Este não é um protesto de moralistas, como disseram nesses dias com o intento de diminuir o comparecimento. Eles têm medo de nós”.
Savonarola |
Esse comentário da parlamentar parece ser uma resposta aos guardiões do premiê, como Giulianno Ferrara, diretor de Il Foglio e conselheiro político de Berlusconi. Ele atribui o repúdio moral a Berlusconi a um suposto puritanismo que aspiraria a converter a Itália em uma “República da virtude”. Ferrara comparou esse puritanismo à Inquisição espanhola, mas poderia ter se lembrado de seu conterrâneo Girolamo Savonarola, frade dominicano que transformou Florença numa teocracia no século XV.
Algumas manifestações da oposição a Berlusconi, de fato, são ambiguas o suficiente para deixar margem a esse tipo de crítica. A líder sindical Susanna Camussoda (CGIL), por exemplo, disse que “o problema é mais cultural do que político: o bombardeio televisivo contra a dignidade da mulher produziu uma mutação antropológica na Itália”. Clamar contra o "bombardeio televisivo contra a dignidade da mulher" cheira à sacristia e à censura das "senhoras de Santana".
Felizmente a maioria dos líderes dos protestos parecem ter se dado conta da armadilha moralista e tentam direcioná as manifestações para além da crítica a Berlusconi. O manifesto Existem outras mulheres, que já reuniu 100 mil assinaturas, por exemplo, diz que a questão central da Itália hoje é “a ausência de educação, de cultura, de consciência, de dignidade. A falta de uma alternativa convincente. Este é o dano produzido pelos 15 anos que temos atravessado, este é o delito político cometido: o vazio, o vôo em queda livre à Idade Média católica, a Itália reduzida a um bordel”.
Shukri Said, da associação Migrare, vai mais longe: “Vivemos num país de joelhos, com uma classe dirigente apodrecida, feita de fantoches sem credibilidade. Estes homens tentam nos dizer agora que corromper a menores com dinheiro é só um fato privado. Que pressionar a polícia para soltar uma menor é o normal, e que os atacamos por que somos puritanos. Isso sim é relativismo, e não o que preocupa o papa. O berlusconismo é uma patologia porque considera que tudo é comprável." Finalmente, a pediatra Mariolina, uma anônima militante do Partido Democrático - pálido sucessor do Partido Comunista Italiano - põe o dedo na ferida: "Fracassamos como cidadãos, deixamos nossos filhos sem futuro", disse ela ao jornal espanhol El País. Tenho raiva e uma tristeza infinita. Tudo isso seria útil se nos revelasse que existe outro país por aí afora. Mas duvido muito. Este país não se indigna. Há muitas mães que trabalham como mulas e ensinam a seus filhos valores e dignidade, mas elas não protestam. O que estamos passando não é culpa de Berlusconi e suas televisões; é sobretudo culpa nossa, que delegamos poder a uma classe política que não sabe nos representar e não fazemos nada".
Al Capone |
Berlusconi e le sue ragazze |
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