

Desse modo, o capitalismo transformou-se e legitimou-se como um projeto igualitário: por meio de uma crescente interação autopoética e de uma auto-organização espontânea, chegou até mesmo a usurpar a linguagem da extrema esquerda da autogestão dos trabalhadores e do slogan anticapitalista e fez dele um slogan capitalista.

Uma inteira seqüência de eventos histórico-ideológicos foi assim se criando, na qual o socialismo aparece conservador, hierárquico, administrativo, tanto que a lição de sessenta e oito é “Adeus, socialismo!”, e a verdadeira revolução é aquela do capitalismo digital. Esse capitalismo é a conseqüência lógica, a ‘verdade’ da revolução de 1968. Os protestos anticapitalistas dos anos 60 integraram a crítica habitual da exploração socioeconômica com argumentos de critica cultural: a alienação da vida diária, a comercialização dos bens de consumo, a falta de autenticidade de uma sociedade de massa na qual ‘vestem-se máscaras’ e sujeitam-se às opressões sexuais e de outras naturezas.

A aposta de Michael Hardt e Toni Negri é que esse novo espírito já é por si só comunista: como Marx, celebram o potencial revolucionário ‘desterritorializante’ do capitalismo; como Marx, individualizam a contradição dentro do capitalismo, na discrepância existente entre esse potencial e a forma do capital (a apropriação da parte da propriedade privada do excedente). Em breve, reabilitam o velho conceito marxista de tensão entre forças produtivas e relações da produção: o capitalismo já produz ‘os germes da futura forma de vida nova’, produz incessantemente o novo ‘denominador comum’, de modo que em uma explosão revolucionária, esse Novo deve ser desvinculado pela velha forma social.
Não surpreende que Negri recentemente esteja sempre apreciando mais o capitalismo digital ‘pós-moderno’, afirmando que ele já é comunista, e que precisará somente pouco, um empurrãozinho, um gesto puramente formal, para que se torne isso abertamente. A estratégia de base do capitalismo atual consiste em cobrir a sua própria abundância, achando um novo modo para incluir outra vez a multidão produtiva independente.
A ironia é que Negri refere-se aqui ao processo que os mesmos ideólogos do capitalismo atual ‘pós-moderno’ celebram à medida que passam da produção material à simbólica, da lógica centrista-hierárquica à lógica da auto-organização autopoética, da colaboração multicêntrica e assim por diante. Negri que é, em efeito, fiel a Marx: o que se esforça por demonstrar é que Marx tinha razão, que a ascensão do ‘intelecto geral’ é incompatível, em longo prazo, com o capitalismo. Os ideólogos do capitalismo pós-moderno estão fazendo uma afirmação diametralmente oposta: é a própria teoria marxista (e a prática marxista) que fica no âmbito dos constrangimentos da lógica hierárquica centralizada a controle do governo, e, portanto, não pode enfrentar os efeitos sociais da nova revolução informacional.
Tony Negri |

Há boas razões empíricas para confirmação desta afirmação: ainda uma vez, o paradoxo histórico é que a desintegração do comunismo é o exemplo mais convincente da validade da tradição dialética marxista entre força de produção e relação de produção, na qual o marxismo deposita confiança na sua tentativa de derrubar o capitalismo. A prejudicar definitivamente os regimes comunistas está a sua própria incapacidade de adaptar-se à nova lógica sustentada pela ‘revolução informacional’: tentaram pilotar esta revolução com um projeto qualquer em larga escala de planejamento estatal centralizado. O absurdo, portanto, é que o que Negri exalta como uma oportunidade irrepetível para derrubar o capitalismo, os ideólogos da ‘revolução informacional’ o exaltam como a ascensão do novo capitalismo ‘privado de atritos’.
Mas a passagem a um outro espírito do capitalismo foi realmente tudo o que aconteceu nos eventos de 68, de forma que todo o entusiasmo eufórico pela liberdade, em realidade, não era outra coisa senão um meio de substituir uma forma de domínio por uma outra? Recordemos as palavras de desafio lançadas por Lacan aos estudantes: “Como revolucionários, vocês são loucos que pedem um novo patrão. E o terão”.


[...]
Enfim, a grande pergunta: se, como afirma Alain Badiou, o Maio de 1968 foi um final de uma época, que marcou (junto com a Revolução Cultural chinesa) o consumar-se definitivo de uma grande sucessão de revoluções políticas iniciadas com a Revolução de Outubro, hoje onde as colocamos? Estamos entre aqueles que ainda contam – e com uma alternativa radical – com um capitalismo hegemônico democrático e parlamentar, forçados a alienarmo-nos e a agir em vários ‘sítios de resistência’ ou podemos ainda conceber uma intervenção política mais radical?

Slavoj Žižek (*), As estruturas não caminham pela rua
(*) Filósofo e psicanalista esloveno marxista-lacaniano que busca resgatar a radicalidade perdida
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