A "guerra de movimento" |
A "guerra de posições" |
A partir desses eventos, o pensador marxista italiano Antônio Gramsci adaptou os conceitos de “guerra de movimento” e “guerra de posições” para definir a estratégia das revoluções socialistas no Oriente e no Ocidente. No primeiro, em países como a Rússia, o Estado era tudo, e “a sociedade civil era primitiva e gelatinosa”. Neste caso, a conquista do poder se daria pela “guerra de movimento”, por meio da derrubada violenta da velha ordem. Mas nos países ocidentais, “havia uma justa relação entre Estado e sociedade civil e, diante dos abalos do Estado, podia-se divisar imediatamente uma robusta estrutura de sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma cadeia de fortalezas e casamatas”. Nesse caso, a estratégia adequada era a “guerra de posições”, a conquista da hegemonia na sociedade civil como precondição para a conquista do poder político.
Fiz essa longa digressão para falar um pouco da trajetória do ditador líbio Muammar al-Gaddafi. Ele chegou ao poder em 1969 por meio de um golpe militar contra a monarquia pró-ocidental do rei Ídris. Nos anos 1950, o monarca autorizara a instalação de bases americanas e britânicas no país; em 1959, foram descobertas jazidas de petróleo na Líbia. O regime chefiado por Gaddafi, uma combinação de nacionalismo árabe nasserista com islamismo, nacionalizou as empresas e bancos, retirou as bases militares anglo-americanas e expulsou estrangeiros, principalmente os judeus. O toque da shari’a, a lei islâmica, ficou por conta do fechamento de boates e da proibição de bebidas alcoólicas e jogos de azar.
O coronel Gaddafi, inicialmente nasserista |
Durante os primeiros 25 anos de seu reinado, Gaddafi seguiu a estratégia da “guerra de movimento”: patrocinou grupos anti-israelenses e antiamericanos, como a Al-Fatah, o Setembro Negro e os Panteras Negras. Teve participação nos eventos das Olimpíadas de Munique de 1972, que resultaram no assassinato de 11 atletas israelenses pelo Setembro Negro. Gaddafi também teve um papel decisivo na decisão da Opep em 1973 de boicotar a exportação de petróleo aos países ocidentais depois da Guerra do Yom Kippur, o que gerou a primeira crise de energia dos anos 1970. Patrocinou ataques terroristas contra instalações militares americanas na Europa, o que levou os EUA a bombardearem as cidades líbias de Trípoli e Benghazi em 1986 (episódio em que morreram 130 pessoas, entre elas uma filha de Gaddafi). O ápice da ação de Gaddafi foi o atentado terrorista de Lockerbie, em 1992, quando agentes líbios colocaram uma bomba num avião de passageiros americano da Pam Am, fazendo-o explodir sobre a Escócia. Morreram 270 pessoas. Como Gaddafi se recusava a extraditar os dois líbios acusados pelo atentado, o Conselho de Segurança da ONU impôs um embargo comercial e aéreo contra a Líbia. O país e seu líder viraram párias internacionais.
Avião americano derrubado por terroristas líbios em Lockerbie |
A partir daí, Gaddafi fez uma inflexão mudou sua estratégia para a “guerra de posição”. Depois de ter apoiado o Irã contra o Iraque na guerra de 1980-1988, Trípoli rompeu relações com Teerã em 1993, denunciando o fundamentalismo islâmico. Gaddafi aceitou entregar os acusados e a pagar indenizações (US$ 2,7 bilhões) aos familiares do atentado de Lockerbie. As sanções da ONU foram suspensas em 1999. O ditador também suprimiu seu programa de armas de destruição em massa. Os EUA responderam tirando a Líbia da lista de “estados terroristas”. Internamente, Gaddafi promoveu reformas econômicas de cunho neoliberal para atrair investimentos estrangeiros. Logo, o “o cão louco do Oriente Médio” (Reagan) virou amiguinho de infância do Ocidente. Silvio Berlusconi é um dos que lhe fazem corte.
Como profeta do "apelo islâmico" |
Mas a estratégia da “guerra de posição” de Gaddafi é bem mais sofisticada. Com os dólares do petróleo, ele financia a World Islamic Call Society (Wics), entidade que promove ações econômicas, humanitárias, educativas e, principalmente, religiosas, nos países da África. Países como Mali, Níger, Burkina Fasso, Chade, Senegal, Benin, Gana, Uganda, entre outros, já receberam professores, escolas do Alcorão, mesquitas, hospitais, remédios, roupas etc. Gaddafi persegue o sonho de unificação política do continente africano sob a bandeira do islamismo e hegemonia líbia. A intenção da Wics é a islamização e a arabização dos países africanos. Sua finalidade faria corar os aiatolás iranianos: “difundir o árabe, língua do glorioso Alcorão, pedindo a todos os estado que o adotem como língua oficial e fazer pressão sobre os Estados islâmicos para que adotem o sagrado Alcorão como fonte do direito e modifiquem as leis existentes para que estejam de acordo com os princípios do Islã". Na Líbia já vigora a shari’a, embora não sejam aplicadas as penas corporais como na Arábia Saudita. Depois de Gaddafi virou persona grata nas chancelarias ocidentais, não se tem notícia de essas ações causem preocupações em Washington.
Agora Gaddafi começa a ser desafiado por protestos populares contra sua ditadura - a mais recente manifestação do que parece ser a "primavera dos povos árabes e muçulmanos". Manifestantes saem às ruas de Benghazi, a segunda cidade líbia em importância. Ninguém sabe o que pode acontecer. Mas é irônico pensar que o líder que trocou a “guerra de movimento” pela “guerra de posição” possa acabar tendo o mesmo destino das monarquias na Primeira Guerra Mundial.
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