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segunda-feira, 2 de agosto de 2010

UM LEGADO INCÔMODO - PARA QUEM?

Quando surgiu, em 1980, o PT se pretendia um partido de ruptura absoluta não apenas com a herança trabalhista de Getúlio Vargas como também com o passado stalinista da esquerda ortodoxa formada na escola do Partido Comunista Brasileiro (PCB, o "partidão").  Em relação à herança varguista, o PT encampava as teorias sobre o populismo criadas por alguns intelectuais da USP (hoje abrigados no PSDB): tratava-se de um governo autoritário, desmobilizador das massas, que atrelou os sindicatos ao Estado e criou a CLT inspirada na Carta del Lavoro do fascismo. Vargas representava o nacionalismo ultrapassado, que hostilizava o dinâmico capital estrangeiro - afinal, nessa visão, o polo automobilístico do ABC foi obra de multinacionais como a Volks, a Ford e a Scania. Já em relação à tradição da esquerda, o PT - onde se digladiavam egressos da extrema esquerda, da igreja progressista e "novos" sindicalistas - rejeitava a subordinação do movimento operário aos interesses de um Estado socialista - fosse ele a URSS, a China ou a Albânia - e as concepções de regimes de partido único, típicos do stalinismo. Quanto a esse último ponto, não havia o que objetar, embora o PT, às vezes, pretendesse reinventar a roda desqualificando as lutas populares e nacionalistas anteriores ao seu surgimento.  

Racha do PMDB em 1987, o PSDB foi a contraparte "cheirosa" do PT. Comungando a oposição à herança trabalhista-getulista, PT e PSDB pareciam então ser as duas faces da mesma moeda, a social-democracia brasileira: o primeiro, mais radical e de base operária, e o segundo, mais pragmático e de classe média. Só que os petistas tinham um partido de massas, como a social-democracia europeia, enquanto que os tucanos só tinham cardeais. Para Luís Werneck Vianna, intelectual do Iuperj oriundo do "partidão", isso era um mero detalhe:  PT e PSDB eram partidos "paulistas" forjados na redemocratização para dar voz aos setores sociais nascidos com a modernização industrial de São Paulo. Suas origens eram "privadas", as relações capital-trabalho, não o Estado. Além desse berço comum, o desprezo de petistas e tucanos pelo varguismo vinha também do fato de que ambos traziam no DNA a luta contra a ditadura militar. E Vargas conduzira parte de seu projeto político sob a ditadura do Estado Novo (1937-1945) - uma máquina de tortura e repressão que os militares copiariam. O fato de ele ter sido eleito democraticamente em 1950 e de ter se suicidado em 1954 para evitar um golpe da direita que queria impedir as reformas não muda essa realidade.
Quando chegou ao poder, em 1995, FHC estava decidido a "enterrar a era Vargas" e tudo o que ela representava: populismo, nacionalismo, estatismo. Ele quase conseguiu: privatizou a Vale do Rio Doce, o sistema Telebrás e a Embraer, num processo muitas vezes espúrio que ficou conhecido como "privataria". A Petrobras e o Banco do Brasil escaparam por pouco. Por sua vez, Lula, quando finalmente chegou ao poder, em 2003, num primeiro momento ficou paralisado pela herança fernandista - a necessidade de manter a estabilidade da moeda e de não provocar fuga de capitais. Essa postura paralisou o governo em seu início e levou muitos analistas a afirmar que o PT no poder seria igual ao PSDB, talvez com mais "cesta básica". A intransigência na área monetária e as trapalhadas iniciais do Fome Zero pareciam confirmar tal prognóstico.
 
Esse temor somente se dissiparia no segundo mandato, quando Lula, graças ao mensalão (astúcia da História?) ficaria livre de sua poderosa entourage - principalmente Antônio Palocci e José Dirceu - e passaria a conduzir diretamente o governo. Foi quando finalmente o "lulismo" adquiriu identidade própria. Aí, ganharam corpo os programas sociais, os investimentos em infraestrutura (PAC), o aumento real do salário, o crescimento do empregos - agora num quadro de crescimento sustentado. A ideia de empresas estatais estratégicas se fortaleceu depois que a Petrobras obteve a autossuficiência e descobriu petróleo no pré-sal. Finalmente a crise econômica internacional em 2009 reforçou ainda mais a opção "keynesiana" do governo; embora atingida, a economia brasileira se recuperou rapidamente graças à ação do Estado para estimular o consumo das classes populares. Agora até Werneck Vianna diz que Lula resgatou a era Vargas. "O Lula é um Getúlio", admitiu Vianna numa entrevista, embora o vezo pecebista o leve a dizer que o presidente meramente concluiu a "modernização conservadora" de Vargas. Mas o próprio Lula hoje admite ser herdeiro do projeto nacional-desenvolvimentista. Seus ícones - Vargas, Juscelino e Jango - passaram a integrar o panteão do lulismo.

Heranças à parte, hoje está muito claro que, nestes últimos 20 anos, houve dois projetos distintos para o Brasil. De um lado, o projeto desenvolvimentista de Lula. Segundo caracterização de João Sicsú, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os balizadores econômicos desse projeto são a manutenção da inflação em níveis moderados, a administração fiscal para equilibrar as contas públicas associado a programas de obras de infraestrutura e políticas anticíclicas, a redução da vulnerabilidade externa e algum nível de administração cambial, a ampliação do crédito e o aumento do investimento público e privado. Os objetivos econômico-sociais desse projeto são a geração de milhões de empregos com carteira assinada, melhoria da distribuição de renda e recuperação real do salário mínimo.

De outro, temos o projeto do PSDB-DEM, encampado pela grande mídia e pelos organismos financeiros internacionais, que, na falta de nome melhor designaremos como "neoliberal", implantado pelos dois governos FHC (1995-2002). Para ele a estabilidade econômica é sinônimo exclusivo de estabilidade monetária. Ele também busca abertura financeira ao exterior, escora-se na âncora cambial, vê o equilíbrio fiscal como panaceia e promove a privatização de empresas públicas sem considerar os interesses estratégicos do país . 

Os resultados já podem ser medidos: a taxa de crescimento do PIB a partir de 2006 se tornou mais elevada. "O crescimento a partir daquele ano trouxe uma característica de qualidade e durabilidade temporal: a taxa de crescimento do investimento se tornou, pelo menos, o dobro da taxa de crescimento de toda a economia", diz Sicsú. O crédito se ampliou drasticamente, de 23% do PIB em 2003 para 46% em 2009. E a expansão do emprego com carteira assinada deu um salto gigantesco: enquanto nos oito anos de FHC foram criados 1.260.000 empregos com carteira assinada, de 2003 a 2010 foram criados mais de 10 milhões de empregos formais. O salário mínimo ficou em média em US$ 150, enquanto que sob FHC a média era US$ 55; a média dos benefícios pagos entre 1995-2002 foi de R$ 18 milhões mensais, enquanto que de 2003 a 2009 a média subiu para R$ 24 bilhões mensais.

Portanto, não é apenas a extensão do Bolsa Família que diferencia os dois projetos. 
Faltou falar da política externa, que se tornou alvo preferencial da direita, a ponto de, pela primeira vez, entrar fortemente na campanha eleitoral. Mas isso já é outra história - ou outra postagem...    

Um comentário:

  1. Claudio Camargo, muito interessante esta matéria a qual voce invoca a era Vargas, pincela Stalin na lógica do "Partidão", referencia Juscelino e Jango e faz o comparativo histórico dos projetos de governo PSDB/PT, Lula/FHC, e, demonstra com muita clareza o quão sao distintos. Aguardo o "capítulo II - Política externa"

    Adinaldo

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