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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O RESGATE DA SOBERANIA I


Desde o início, a política externa do governo Lula conduzida pelo chanceler Celso Amorim tornou-se um dos alvos prediletos da direita tupiniquim. A grande mídia vocaliza raivosamente essas críticas: diplomatas aposentados da era FHC, jornalistas e escribas transformados em cães de guarda do Consenso de Washington escrevem nos jornalões e revistões e vão às televisões para, com zelo de bedéis e verve de pastores no púlpito, baixar o sarrafo na diplomacia do Itamaraty. Eles acusam a dupla Lula/Amorim de conduzir uma política externa “ideologizada”, mas no fundo o que eles consideram o pecado mortal dessa política é a rejeição da aliança preferencial com os Estados Unidos para privilegiar o “fracassado” Mercosul e do bloco dos países do Sul. Tudo isso, no entender desses críticos, apenas para conquistar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Mas os escribas são “espertos”; não fustigam diretamente o afastamento do Brasil da órbita americana; eles preferem estigmatizar o que consideram excrescências dessa diplomacia: a “aliança com ditadores” (Chávez, Castro e Ahmadinejad), o populismo boliviariano do Itamaraty (relações privilegiadas do Brasil com os governos esquerdistas da Venezuela, Bolívia e Equador) e o que classificam como “pretensão” do Brasil de querer ter voz no concerto das nações e querer mudar a geografia econômica mundial. Como se não bastasse, os críticos dizem que Lula/Amorim/Marco Aurélio Garcia se esmeram em trapalhadas diplomáticas, como a posição intransigente do Brasil ao golpe de Honduras, que obrigou a embaixada brasileira de Tegucigalpa a abrigar, por meses, o presidente deposto, Ernesto Zelaya.

Para não cansar o eventual leitor, vamos por partes, como diria Jack, o Estripador.

Em primeiro lugar, vale a pena ver o que fazia a diplomacia brasileira quando FHC apitava. Não vamos tratar da subserviência da diplomacia dos "punhos de renda" do chanceler que tirava os sapatos para entrar nos Estados Unidos. Isso é mero reflexo. Ao longo de seus dois mandatos (1995-1998 e 1999-2002), FHC buscou adaptar os objetivos do Brasil à nova ordem internacional unipolar surgida depois do colapso da URSS, ou seja, aos interesses dos EUA. A idéia era facilitar a inserção do país ao processo de globalização econômica e, assim, ascender ao CS da ONU por consenso. Para isso, aderimos a tratados assimétricos como o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) e o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR). Houve inclusive um episódio vexaminoso, a tentativa de entregar a base aeroespacial de Alcântara, no Maranhão, para os americanos. Um tratado enviado por FHC ao Congresso em 2000 foi considerado um atentado à soberania nacional. O texto original da mensagem proibia a transferência de tecnologia americana ao Brasil e vedava o uso de recursos provenientes do aluguel da base para a construção de VLS (Veículo Lançador de Satélites). O texto previa ainda que contêineres entrariam no Brasil lacrados e só poderiam ser abertos por representantes dos EUA, sem fiscalização das autoridades brasileiras. Além disso, o acesso a equipamentos, lançadores, foguetes e áreas físicas também ficava restrito aos americanos. Felizmente, o projeto foi esquecido.

O passo decisivo, contudo, seria a adesão do Brasil à Alca – Área de Livre Comércio das Américas – prevista para entrar em vigor em 2005. A proposta americana – tida como “irrecusável” pelos áulicos do neoliberalismo – envolvia não apenas a remoção de barreiras tarifárias e não-tarifárias ao comércio dentro das Américas – o que, por si só, já seria problemático – como a fixação de regras para temas de importância estratégica como investimentos, compras governamentais, serviços e propriedade intelectual, entre outros. Além disso, como elencou o economista
Paulo Nogueira Baptista Jr., a liberalização proposta por Washington seria acompanhada por “importantes ressalvas e exceções”, que favoreceriam “setores pouco competitivos da economia norte-americana” e preservariam “os instrumentos de defesa comercial a que os EUA costumam recorrer”. Além disso, diz Baptista Jr., as vantagens potenciais da economia brasileira no mercado dos EUA estariam concentradas em produtos protegidos por poderosos lobbies americanos (aço, têxteis, calçados, suco de laranja, por exemplo). “E os EUA relutavam em colocar na pauta componentes cruciais do seu arsenal protecionista, como a legislação antidumping e a política de defesa da agricultura, sob o argumento de que esses temas deveriam ser tratados preferencialmente no âmbito da OMC. Ao mesmo tempo, queriam que a Alca fosse além das normas da OMC em assuntos do seu interesse como, por exemplo, serviços, investimentos, compras governamentais e patentes”.

A Alca, tal como concebida pelo governo e interesses empresariais norte-americanos, prossegue Baptista Jr., acarretaria “formidável perda de autonomia na condução de aspectos essenciais da política econômica” brasileira. Com a Alca, o Brasil ficaria comprometido “a manter o seu mercado interno sempre aberto para as exportações dos EUA e de outros países do continente americano”. As empresas brasileiras se veriam “expostas à vigorosa concorrência das grandes corporações norte-americanas com todo o seu poder tecnológico, financeiro e comercial”. O Brasil teria que “abrir mão de uma série de instrumentos de política governamental, tornando-se ipso facto incapaz de implementar um projeto nacional de desenvolvimento”. Ficariam “definitivamente fora do nosso alcance muitos instrumentos e políticas governamentais a que recorreram sistematicamente os países hoje desenvolvidos, inclusive os EUA, ao longo do seu processo histórico de desenvolvimento”.

Como candidato, Lula havia dito que a Alca não constituía “uma proposta de integração, mas uma política de anexação”. Mas, como presidente, tinha que preservar o relacionamento do Brasil com os EUA. Assim, inicialmente, ele não afastou o país das negociações. Mas a posição de defender os interesses brasileiros ficou claro com a nomeação do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães – demitido pelo chanceler Celso Lafer por criticar a Alca – como secretário-geral (o “número dois”) do Itamaraty. Essa nova postura seria explicitada já em setembro de 2003, na Rodada Doha da OMC. Foi na 5ª. Conferência Ministerial da OMC em Cancun, quando o Brasil liderou a formação do G-21, grupo de países como China, Índia, África do Sul, México e Indonésia, entre outros – que representava mais de 55% da população mundial e 69% da produção agrícola – para se contrapor à agenda imposta pelos países industrializados (Estados Unidos e União Europeia). Estes queriam impor novas aberturas comerciais aos países emergentes sem abrir mão de seus subsídios agrícolas. Criou-se um impasse e a conferência fracassou, mas nós não tivemos que engolir outro acordo contrário aos nossos interesses, como em 1994, quando o Gatt se transformou em OMC. “A diplomacia brasileira foi a grande vencedora de Cancun ao impedir que o comércio agrícola prosseguisse dando cobertura aos interesses da UE e dos EUA”, disse o prof. Amado Cevo.

Depois disso, ainda com muitas rodadas de negociações para não confrontar diretamente os EUA, o projeto da Alca acabou indo para as calendas gregas. Mas esse resultado “alvissareiro” para os brasileiros não foi produto de uma posição ideológica do governo Lula, mas da contradição de interesses entre Brasil e Estados Unidos e o predomínio dos interesses brasileiros. “Não vamos aceitar modelos que vêm prontos; tudo tem que ser negociado. O que acontecia antes era uma falsa negociação. As coisas vinham vindo e, no máximo, eram postergadas. A principal barreira, os subsídios, os EUA não discutiam”, disse Celso Amorim na época.

A pá de cal na Alca foi decisão da OMC favorável ao Brasil na questão dos subsídios aos produtores americanos de algodão, que causavam perdas comerciais ao País da ordem de US$ 500 milhões. Foi outra vitória da postura do Itamaraty, que manteve a defesa vigorosa dos interesses nacionais, sem precisar entrar em choque frontal, "ideologizado", com os Estados Unidos.
Somente por evitar que o Brasil entrasse na Alca e se inviabilizasse de vez como país desenvolvido o chanceler Celso Amorim já mereceria uma estátua. Mas tem mais... muito mais.  

2 comentários:

  1. Cláudio, parabéns por mais esta interessante matéria. Realmente é impressionante os avanços da diplomacia brasileira no cenário internacional obtidos pela gestão Lula/Celso Amorim do que o então comparado FHC/Celso Lafer.

    Independentemente de qualquer inclinação partidária, PT/PSDB, o que é de se lamentar e o comportamento de alguns militantes e/ou simpatizantes do PSDB que parecem querer insugir-se contra o óbvio. Parecem querer se colocarem como senhores da prevalência. Isto permite, ainda que pareça ingenuidade, invocar o dito popular - Pior cego é aquele que não quer ver.

    Abraços,

    Adinaldo

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  2. Pior ainda: não quer ver e quer sair atirando...

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