
O texto que apresento abaixo
é uma resenha do veterano comunista português Miguel Urbano Rodrigues, de 2009,
sobre o livro Stálin – História e crítica
de uma lenda negra, do marxista italiano Domenico Losurdo. Escrever com
isenção sobre Stálin e o período dramático que ele viveu não é tarefa fácil,
principalmente em tempos politicamente corretos e incorretos. Como bom
historiador, Losurdo se propõe a analisar o personagem à luz de documentos
históricos, sem ceder às tentações ou preconceitos ideológicas. E, como
demonstra a resenha, ele o consegue em larga medida. O personagem que emerge do
livro é um dirigente multifacetado, misto de gênio político e tirano, mas
jamais alguém redutível a esquemas preconcebidos. Podemos gostar ou não gostar
de Koba – aliás, quase ninguém gosta.
Mas não se pode deixar de analisá-lo dentro de um contexto histórico, apoiado
em fatos documentados, não em considerações metafísicas. Um relato histórico não
faz de Stálin um líder inocente, ou prisioneiro das férreas “leis da História”.
Mas é preciso deixar de lado os estereótipos e “fazer a história a contrapelo”,
como ensinava Walter Benjamin. Ou ainda, como pregava o filósofo iluminista
Immanuel Kant, Sapere aude! (ousar pensar). Às vezes é difícil, mas é
fundamental.
PS.: Amigos e companheiros
poderão pensar que virei stalinista. Não é verdade; apenas reafirmo o gosto
pela provocação...
Stálin, história e crítica de uma lenda negra – um
livro de Domenico Losurdo
Por Miguel Urbano Rodrigues
Há meses que me sento diante
do computador para escrever este artigo. Mas o projeto foi adiado dia após dia.
Quando Domenico Losurdo me
ofereceu Stalin – Storia e critica de una
leggenda nera, já lera criticas sobre a obra. Mas não a imaginava.
Qualquer texto sobre pessoas
que deixaram marcas profundas na história, quando escrito sem o suficiente
distanciamento temporal, cria sempre grandes problemas ao autor.
Vivi essa situação este ano
ao publicar um desambicioso artigo – Apontamentos sobre Trotsky – O mito e a
realidade. Em Portugal, alguns camaradas que admiro acusaram-me de trotskista;
no Brasil, onde o artigo, mais divulgado, desencadeou polêmicas, professores
das Universidades de Campinas e do Rio Grande do Sul dedicaram-me trabalhos
acadêmicos, definindo-me como stalinista ortodoxo.
Domenico Losurdo aborda no
seu Stálin aspectos muito polêmicos da intervenção na História do homem que na
prática dirigiu a União Soviética durante quase três décadas. Não conheço obra
comparável pela ausência de paixão e pela densidade e profundidade da reflexão
sobre o tema.
Stálin foi um revolucionário
que liderou a luta épica da União Soviética contra a barbárie nazi. Por si só
esse combate em defesa do seu povo e da humanidade garante-lhe um lugar no
panteão da História.
Sinto, contudo, a necessidade
de acrescentar que nunca senti atração por Stálin. Não admiro o homem. A sua
personalidade aparece-me inseparável de atos e comportamentos sociais que
reprovo e repudio.
A contradição não me impede
de escrever este artigo, estimula-me a assumir o desafio.
A DEMONIZAÇÃO DE STÁLIN
A demonização de Stálin
principiou nos anos 20, adquiriu proporções mundiais com o XX Congresso do
PCUS, foi retomada durante a Perestroika e prosseguiu após o desaparecimento da
União Soviética, embora com características diferentes. Ao proclamar “o fim do
comunismo”, a intelligentsia
burguesa, empenhada em demonstrar a inviabilidade do socialismo, diversificou a
ofensiva, atribuindo a Marx, Engels e Lênin grandes responsabilidades pelo
“fracasso inevitável da utopia socialista”. Stálin foi sobretudo visado como
criador e executor de uma técnica de governança ditatorial, monstruosa. A palavra
stalinismo entrou no léxico político como sinônimo de um sistema de poder
absoluto que teria negado o marxismo ao impor “o socialismo real” mediante
métodos criminosos.
Não são apenas acadêmicos
anticomunistas que satanizam Stálin. Dirigentes de partidos comunistas e
historiadores marxistas, alguns de prestígio mundial, emprestaram credibilidade
à condenação sem apelo de Stálin.
Eric Hobsbawm, o grande
historiador britânico que foi, na juventude, membro do Partido Comunista
inglês, esboça no seu livro A Era dos Extremos - Breve História do Século XX um
retrato totalmente negativo do estadista que anos antes fora por ele elogiado
como revolucionário merecedor da admiração da humanidade.
O peso do anátema é tão forte
que a Fundação Rosa Luxemburgo atribuiu em Janeiro passado um prêmio ao
historiador alemão Christoph Junke pelo seu livro Der lange Schatten des
Stalinismus, uma catilinária impiedosa sobre um “fenômeno histórico” que é
também “uma teoria e uma prática política” que exorciza.
DA ESPERANÇA À REALIDADE
Sobre Stálin e a sua época
foram escritos centenas de livros. Dos que li nenhum me impressionou tanto como
este. A esmagadora maioria condena o homem e a obra; uma minoria de
incondicionais faz a apologia do dirigente comunista e defende sem restrições a
sua intervenção na história. Um abismo separa os críticos como o polonês Isaac
Deutscher (trotskista) dos epígonos como o belga Ludo Martens (maoísta), dois
autores cujos livros foram publicados em português, no Brasil.
Losurdo, filósofo e historiador,
ao iluminar uma época e o homem que foi o timoneiro da URSS durante quase
trinta anos encaminha o leitor para uma reflexão complexa, inesperada e
difícil. Não assume o papel de juiz.
O conhecimento profundo da
história da Revolução Russa e das lutas que lhe marcaram o rumo após a morte de
Lenine permitiram-lhe situar Stálin nesse vendaval sob uma perspectiva
inovadora. Procura, como filósofo, compreender. Não absolve nem condena.
Acompanhando a trajetória de
Stálin pela mão de Losurdo, o leitor é levado a conclusões incompatíveis com a
lenda negra criada em torno da personagem. Mas Losurdo não reescreve a
história, não tenta interpretá-la. Como investigador, fixa a atenção em períodos
decisivos, procede a uma seleção de fatos e acontecimentos e situa Stálin nos
cenários em que atuou.
Quase todas as revoluções
devoram os seus filhos. A que se impôs em Outubro de 1917 não foi exceção à
regra. Mas, quando ela triunfou, eram inimagináveis as crises e conflitos que
desembocaram na execução da maioria das personagens mais brilhantes da grande
geração de bolcheviques que se propunha a construir o socialismo na Rússia
atrasada e famélica.
O tempo era de esperança. Ao
encerrar o I Congresso da Internacional Comunista, Lênin sintetizou a sua
confiança no futuro numa frase: “A vitória da revolução comunista em todo o
mundo está assegurada. Aproxima-se a fundação da república soviética
internacional”.
A previsão foi rapidamente
desmentida pela História.
O dissipar das ilusões e a
sua superação quase coincidiram com a doença e a morte de Lênin. Após a derrota
da revolução alemã, o autor de O Estado e a Revolução teve a percepção de que o
capitalismo iria sobreviver por muito tempo e que era necessário defender a
todo o custo a jovem revolução russa. Trotsky não acreditava na viabilidade do
“socialismo num só pais” e, desaparecido Lênin, acusou de covardia e
oportunismo quantos tinham renunciado à ideia da revolução mundial.
Losurdo lembra que Stálin foi
o primeiro dirigente soviético a afirmar que por um longo período histórico a
humanidade continuaria dividida não somente em diferentes sistemas sociais, mas
também em diferentes identidades linguísticas, culturais e nacionais.
Enquanto Trotsky dirigia
ainda apelos à insurreição ao proletariado da Finlândia, da Polônia, das
repúblicas bálticas, e das grandes potências capitalistas, Stálin criticava as
teses sobre a exportação da revolução. Na sua opinião, a correlação de forças
na Europa justificava a defesa do princípio da coexistência pacífica entre
países com diferentes sistemas sociais.
Numa época em que muitos
comunistas continuavam a sonhar com “o ascetismo universal”, Stálin lembrava
que o marxismo é inimigo do igualitarismo e insistia num ponto central: “seria
estúpido pensar que o socialismo pode ser construído com base na miséria e em
privações, com base na redução das necessidades pessoais e na queda do padrão
de vida dos homens ao nível dos pobres”.
Nos capítulos em que estuda
as divergências de fundo que opuseram Trotsky e Stálin, Domenico Losurdo
abstém-se mais uma vez de críticas e elogios. Situa o choque no grande painel
da URSS pós-Lênin e resume as posições de ambos, recorrendo a múltiplas
citações.
São particularmente interessantes
as páginas em que são confrontadas as posições de Trotsky e Stálin sobre os
temas da organização jurídica da sociedade, da família, da propriedade e
sobretudo do Estado.
A questão central da extinção
do Estado, prevista por Marx, e exaustivamente analisada por Lênin, antes e
depois da tomada do poder, merece-lhe uma atenção especial.
Às críticas de Trotsky –
então no exílio – à Constituição Soviética de 1936, Stálin responde que as
lições de Marx e Engels não devem ser transformadas em dogma e numa nova
escolástica.
O Estado Soviético, ao invés
de caminhar para a extinção, fortalece-se cada vez mais. Segundo ele, o papel
fundamental do Estado na URSS “consiste num trabalho pacífico de organização
econômica e no trabalho cultural e educativo”. A antiga função repressiva fora
“substituída pela função de salvaguarda da propriedade socialista da ação dos
ladrões e dos esbanjadores do patrimônio do povo”.
Losurdo sublinha que, na
prática, o Estado soviético se desviou dessa função e lembra que em 1938
“imperava o terror e se ampliava monstruosamente o Gulag”.
Mas a permanência do Estado
repressivo não responde à pergunta: até que ponto é válida a tese de Marx sobre
o definhamento e a extinção do Estado? Deve ou não manter-se o Estado numa
sociedade comunista?
Losurdo recorda que na
posição assumida por Stálin são identificáveis muitas contradições, mas
sublinha que, ao contrariar uma tese clássica de Marx, o secretário-geral do
PCUS atuava num terreno minado o que o expunha à acusação de “traidor” lançada
por Trotsky.
A partir do início dos anos
30, Stálin, na sua luta contra a oposição, acusa os seus membros, globalmente,
de “agentes do inimigo”.
Exagerava. Mas Trotsky,
principalmente, oferecia-lhe argumentos que contribuíam para a credibilidade
das acusações que lhe eram dirigidas. Quando rádios da Prússia Oriental
começaram a transmitir para a URSS textos trotskistas, Stálin tirou benefícios
dessa iniciativa. E quando Trotsky, nas vésperas da II Guerra Mundial, em 22 de Abril de 19 39,
deu o seu apoio aos que pretendiam “libertar a Ucrânia soviética do jugo
stalinista”, intensificou-se a perseguição a quadros suspeitos de ideias
trotskistas.
A OUTRA “GUERRA CIVIL”
Ao contrário do que se afirma
na História oficial da Revolução Russa editada pelo PCUS, o grupo dirigente que
assumiu o poder em Outubro de 1917 estava já dividido no tocante a problemas
fundamentais da política interna e internacional.
Os debates sobre os
sindicatos, o papel do campesinato, a economia, as relações com as potências
capitalistas, a questão das nacionalidades foram sempre polêmicos no Politburo
e no Comitê Central. Somente o carisma e o imenso prestígio de Lênin retardaram
os conflitos sobre a orientação do Partido que se produziram após a sua morte.
Losurdo conclui que o
Relatório Secreto de Kruchóv ao XX Congresso apresenta desse período histórico
uma visão distorcida e fantasiada.
A tese de Kruchóv, segundo a
qual cabe a Stálin a responsabilidade pelo assassínio em 1934 de Serguei Kírov,
porque o jovem dirigente estaria implicado numa vasta conspiração contra ele, é
rebatida por Losurdo com o apoio de documentação recentemente divulgada. Na
realidade Kírov tinha uma grande admiração por Stálin, que depositava nele uma
confiança total.
As conspirações para afastar
Stálin do poder foram muito reais, mas as versões delas apresentadas no
Ocidente por sovietólogos anticomunistas contribuem na opinião do filósofo
marxista italiano para falsificar a história. E atingiram esse objetivo.
Domenico Losurdo está
consciente de pisar um terreno perigoso na sua tentativa de iluminar um Stálin
diferente do ditador cruel, megalômano e vingativo, cujo perfil aparece
esboçado no Relatório Secreto ao XX Congresso. Essa imagem, com o aval de
Kruchóv, foi exportada para todo o mundo e acabou por ser aceite no Ocidente
como verdadeira até por muitos dirigentes de Partidos Comunistas.
Os capítulos do livro de
Losurdo que suscitaram mais polêmica em Itália e noutros países são por isso
mesmo os dedicados às lutas no Partido que precederam os Processos de Moscou.
De alguma maneira, a carta de
Lenine ao Congresso do PCUS – lida por Krupskaia, mas somente publicada anos
depois – estimulou em dirigentes do Partido a tendência para lutar contra
Stálin. Trotsky começou a conspirar com Kamenev e Zinoviev logo após a morte de
Lênin.
Losurdo define o conflito
ideológico da época como uma “guerra civil” que foi permanente no Partido até
aos últimos processos do ano 38. Na primeira fase da luta pelo poder, Stálin
conseguiu isolar Trotsky dos velhos bolcheviques, desencadeando contra ele uma
campanha em que foi recordado o seu passado menchevique e as polêmicas mantidas
com Lênin.
O escritor italiano Curzio
Malaparte, num livro que foi best seller – Técnica do Golpe de Estado –
publicado em França em 1931, foi um dos primeiros intelectuais europeus a
escrever no Ocidente sobre os acontecimentos mal conhecidos que, no ano 27,
precederam a prisão de Trotsky, a sua expulsão do Partido e o confinamento em Alma Ata , no Casaquistão.
Uma documentação importante
confirma que Kamenev e Zinoviev, que se opunham à política de Stálin mas, sem o
enfrentarem no Politburo, participaram pessoalmente dessa primeira conspiração.
O objetivo era o afastamento de Stálin, mas o projeto fracassou e o
secretário-geral recuperou mais uma vez Kamenev e Zinoviev, isolando Trotsky.
Bukhárin, sempre
imprevisível, fora até então – segundo Losurdo – como diretor do Izvestia, um
aliado firme de Stálin, mas, a partir da extinção da NEP e do inicio da
coletivização das terras, empreendida em ritmo acelerado e com recurso a
métodos cruéis, chegou à conclusão de que a estratégia adotada pelo PCUS
conduziria o país a um desastre. O dirigente, que em Brest Litovsk tinha
liderado no Partido a ala esquerdista, deslocou-se para a direita numa brusca
guinada, convicto de que a revolução somente poderia sobreviver se mudasse de
rumo, adotando uma orientação democrático-burguesa, o que significaria uma
regressão histórica.
Rogowin, um historiador
trotskista citado por Losurdo, afirma que Stálin tomou então a iniciativa de
desencadear “uma guerra civil preventiva” contra aqueles que pretendiam
derrubá-lo. Nesse período de conspirações labirínticas, o envolvimento de
destacados dirigentes em manobras de bastidores foi permanente, delas
participando alguns membros da velha guarda bolchevique. A abertura dos
arquivos soviéticos veio esclarecer que alguns mudaram com frequência de campo.
Rogowin, polemizando muito
mais tarde com Solzhenytsin, afirma que, longe de ser a expressão de “um acesso
de violência irracional e insensata”, o sanguinário terror desencadeado por
Stálin foi na realidade a única maneira pela qual ele conseguiu quebrar a
resistência daquilo a que chama “as verdadeiras forças comunistas”.
Nos processos de Moscou os
ex-dirigentes bolcheviques aparecem todos como traidores. Mas a palavra é
brutal e a generalização deforma a história. Antonov Ovsenko, Preobrajensky,
Karl Radek, Rakovsky, Bukhárin, Kamenev, Zinoviev, entre outros, dedicaram as
suas vidas a um projeto radical de transformação da sociedade cuja meta era o
socialismo, rumo ao comunismo.
Domenico Losurdo, escorado
por fontes credíveis, procura compreendê-los descendo às raízes de
comportamentos contraditórios que expressavam simultaneamente as dúvidas, as
opções ideológicas e a fidelidade ao ideal comunista desses revolucionários.
Nas páginas dedicadas ao
vespeiro de lutas internas dos anos 20 e 30, a chamada conspiração dos militares merece
atenção especial. Losurdo não deixa para o leitor as conclusões; neste caso não
se limita a colocar os dados sobre a mesa.
Na torrencial bibliografia
ocidental sobre o assunto, o marechal Tukachevsky, herói da guerra civil, é
sempre apresentado como vítima inocente do terror stalinista, arquétipo do
revolucionário puro, triturado por uma engrenagem perversa.
Losurdo afirma que já em
1920, durante a guerra na Polônia, Tukachevsky tinha deixado transparecer uma ambição
militarista preocupante ao impor a marcha sobre Varsóvia que teve um desfecho
desastroso. Mas Stálin confiava nele e promoveu-o a marechal após as vitórias
alcançadas em 36 contra o Japão na Mongólia.
Transcorridos 70 anos,
continua a ser polêrmica a questão dos contactos secretos que Tukachevsky teria
mantido com potências estrangeiras. Mas historiadores que lhe atribuem a
aspiração de se transformar no “Bonaparte da Revolução Bolchevique” acumularam
provas que o comprometem.
O tchecoslovaco Benés, em
1937, informou os franceses desses contatos e Churchill, após a II Guerra
Mundial, admitiu que a grande depuração no corpo de oficiais da URSS atingiu
elementos filo alemães e, citando o nome de Tukachevsky, afirmou que Stálin
tinha uma dívida de gratidão para com o presidente Bénes. O embaixador dos EUA
em Moscou, Joseph Davies, alude também a uma “conspiração dos militares”. O
próprio Trotsky, não obstante o seu ódio a Stálin, afirma evasivamente, num
comentário à execução de Tukachevsky e outros oficiais, que “tudo depende
daquilo que se entenda por conspiração”.
Na sua reflexão sobre a
prolongada luta travada na direção do PCUS após a morte de Lênin, Losurdo
emprega repetidamente a expressão “as três guerras civis” para caracterizar a
amplitude que assumiram. A última findou com a execução de Bukhárin.
O filósofo italiano lembra no
seu livro que Bukhárin, após a extinção da NEP, decisão a que se opôs, começou,
em reuniões privadas, a chamar a Stálin “o representante do neotrotskismo” e
“intrigante sem princípios”. Foi o começo da viragem que, paradoxalmente, mais
uma vez o aproximou de Trotsky, que lhe inspirava temor e admiração.
AS ORIGENS DO STALINISMO
A deformação da história real
da Rússia começou no Ocidente logo após o derrubamento da autocracia czarista.
A tese segundo a qual a Revolução de Fevereiro teria sido uma revolução quase
sem violência e a de Outubro uma sangrenta tragédia é um mito forjado nos
países capitalistas. Na realidade morreu muito mais gente na primeira do que
nas jornadas que precederam o assalto ao Palácio de Inverno e nos dias
posteriores.
Losurdo, no capítulo em que
estuda as “origens do stalinismo”, recorda que Stálin, contrariamente a
Trotsky, defendia a compatibilidade de um “nacionalismo sadio”, do “sentimento
nacional e da ideia de pátria” com a fidelidade ao internacionalismo
proletário. Quando o Reich nazi invadiu a URSS afirmou insistentemente que o
caminho para o universal passava através da luta dos povos que não aceitavam a
condição de escravos ao serviço do povo de senhores imaginado por Hitler.
Stálin é acusado de defender
um conceito de estado e uma política de nacionalidades cuja aplicação refletiu
contradições antagônicas. Mas vivia-se uma época em que contradições
simultaneamente transparentes e incompatíveis eram comuns na formulação da
teoria revolucionária. Rosa Luxemburgo criticou duramente o partido bolchevique
por ter liquidado a democracia tal como a concebia, mas simultaneamente
exortava-o a reprimir com punho de ferro qualquer tendência separatista de
“povos sem história”, incluindo o da sua Polônia natal. Stálin, pelo contrário,
defendia a necessidade de um respeito enorme pelas mais de cinquenta nacionalidades
da Rússia e considerava que a preservação das suas línguas e culturas lhe
aparecia como indissociável do progresso da Rússia revolucionária.
Essas ideias, condensadas num
livro elogiado por Lênin, não encontraram porém tradução na praxis, sobretudo a
partir dos anos em que exerceu como secretário-geral do PCUS um poder pessoal
quase absoluto.
Mas, paradoxalmente, nos
últimos anos da vida, Stalin reassume a defesa das nacionalidades ao combater
como utópica a ideia de “uma língua única para a humanidade quando o socialismo
triunfar em nível mundial”. Sublinhando que a língua não é uma super estrutura,
afirma que os idiomas não foram criados por uma classe social, mas “por todas
as classes da sociedade graças aos esforços de centenas de gerações”.
No seu denso ensaio, cuja
riqueza concetual e documental é incompatível com sínteses breves, Losurdo fixa
as origens daquilo a que se chamou o stalinismo, numa época marcada por
tensões, conspirações e fome, do inicio da coletivização das terras.
Citando a Fenomenologia do
Espírito, de Hegel, e o que o filósofo alemão pensava da “liberdade absoluta” e
do “terror”, sustenta que "o “stalinismo” não é o resultado “nem da sede
de poder de um indivíduo, nem de uma ideologia, mas do estado de exceção permanente
que se implanta na Rússia a partir de 1914” .
A maioria dos historiadores
ocidentais sérios, lembra, coincidem em que no início dos anos 30, Stálin não
era ainda um autocrata. Segundo Werth não existia nesse tempo o culto da
personalidade e persistia a tradição da ditadura do proletariado.
Em 1925, em plena NEP , Stálin
expressava opiniões como esta: “hoje não é mais possível dirigir com métodos
militares”; “agora não se exerce a máxima pressão, mas a máxima flexibilidade,
seja na política seja na organização”... Então considerava um erro “identificar
o Partido com o Estado” e repetia que “o socialismo é a passagem (da fase) em
que existe a ditadura do proletariado à sociedade sem estado”.
Foi a decisão de
industrializar o país rapidamente que provocou a viragem estratégica que
desencadeou a repressão sobre os camponeses. Cercada por potências hostis, sem
acesso ao capital internacional, a URSS, para financiar a industrialização,
recorreu aos excedentes gerados por uma agricultura atrasada. O projeto da
coletivização da terra, pela maneira violenta como foi concretizado, produziu
rasgões não apenas no tecido social como na direção do Partido. Atingiu o
objetivo, mas o preço político e social foi altíssimo.
Mas terá sido somente a
partir de 37, com o Grande Terror – expressão utilizada por Losurdo – que a
ditadura do proletariado cedeu o lugar à autocracia.
Nas Obras Completas de Stalin
são, porém numerosas as páginas em que ele repete que a ditadura do
proletariado teria assumido um caráter muito diferente se a Guerra Mundial,
anunciada com antecedência, não o tivesse encaminhado para uma política de
concentração do poder. Seria sincero ao escrever que a concebeu como
transitória? Nunca o saberemos.
O que está comprovado por uma
abundante documentação é a convicção que Stálin tinha de que após a derrota do
III Reich hitleriano se abriria à aliança com os EUA e a Inglaterra um grande
futuro. Acreditou numa era de boas relações com o Ocidente capitalista.
Não previa então para a
Europa Oriental o tipo de regimes que ali instalou com mão de ferro. Entendia
que a Polônia não deveria optar pela via da ditadura do proletariado. “Não é
obrigada a isso, não é necessário”. E, falando com dirigentes comunistas
búlgaros, surpreendeu-os ao afirmar: “é possível realizar o socialismo de um
modo novo, sem a ditadura do proletariado”. E, quando mantinha ainda uma
relação cordial com Tito, disse-lhe: “Nos nossos dias o socialismo é possível
inclusive sob a monarquia inglesa”.
O americano Robert Conquest,
o historiador de ultra direita a que Losurdo atribui essas palavras, sublinha
que elas demonstram que “Stalin estava repensando ativamente a validez
universal do modelo soviético de revolução e socialismo”.
O que não suscita dúvidas é
que a Guerra Fria fez ruir eventuais planos sobre uma mudança de estratégia e
pôs termo à meditação ideológica sobre os modelos de socialismo. O degelo
tornou-se uma impossibilidade.
SOBRE A POPULARIDADE DE
STÁLIN E OS GULAG
Losurdo dedica muitas páginas
ao tema da popularidade de Stálin. Baseado em fontes de múltiplas tendências,
chama a atenção para uma realidade desconhecida no Ocidente. Mesmo durante o
biênio do Grande Terror, 37-38,
a base social de apoio à política de Stálin amplia-se.
Verifica-se, escreve Losurdo,
“uma interação paradoxal e trágica”. Em consequência, por um lado, do forte
desenvolvimento econômico e cultural e por outro do medo suscitado pela
repressão, “dezenas de milhares de stakanovistas tornaram-se diretores de fábricas
e uma análoga e rapidíssima mobilidade social ocorreu nas forças armadas”.
Nas vésperas da guerra, o
chefe dos tradutores do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reich, de
visita a Moscou, ao passar pela Praça Vermelha resumiu nestas palavras a atmosfera
de tranquilidade existente na capital: “Quem esteve em Moscou e não viu Lênin,
disse-me um membro da Embaixada, não vale nada para a população rural russa”.
Nas campanhas anticomunistas,
os textos sobre os Gulag siberianos criados por Stálin e os relatos sobre o
sofrimento dos deportados funcionam como artilharia pesada. Muitos livros têm
sido dedicados ao tema, desde o romance que valeu o Nobel a Solzhenytsin.
Losurdo aborda a questão de
frente, situando-se numa perspectiva pouco habitual.
Estudou a fundo a
documentação soviética existente nos arquivos. Como ser humano e revolucionário
inspiram-lhe sentimentos de repulsa e indignação os campos de trabalhos
forçados, em qualquer país e quaisquer que sejam os seus objetivos.
Essa posição não o impede de
denunciar a falsificação das estatísticas ocidentais que inflacionam
desmesuradamente a população dos Gulag, multiplicando o número de pessoas que
passaram por eles e os que ali morreram. Simultaneamente rejeita os paralelos
estabelecidos entre os campos de extermínio nazi e os campos de trabalho
soviéticos. O universo concentracionário siberiano era um mundo de
contradições. Na URSS – salienta Losurdo – a lei punia com rigor as violações
rotineiras dos regulamentos. O próprio Vichinsky, quando Procurador-Geral da
União, denunciou publicamente as condições intoleráveis de alguns Gulag onde os
homens eram tratados como “animais selvagens”.
Losurdo recorda que nos
campos soviéticos havia bibliotecas para os deportados, e a direção promovia
espetáculos, concertos e conferências e que os prisioneiros em muitos Gulag estavam
autorizados a publicar jornais murais.
A partir do início da
agressão alemã, as condições de vida suavizaram-se em quase todos os campos de
trabalho soviéticos. Milhares de prisioneiros foram beneficiados por uma série
de anistias e reintegrados na sociedade ou nas forças armadas.
Losurdo, numa critica frontal
à hipocrisia dos intelectuais anticomunistas que reescrevem a história,
falsificando-a, procede a um breve inventário dos horrores de campos de
concentração criados por potências ocidentais cujos dirigentes se apresentam
como campeões dos direitos humanos, horrores ocultados por um manto de
silêncio.
A Austrália, por exemplo, ao
longo de quase todo o século XIX, foi a Sibéria oficial da Inglaterra imperial.
Os textos que reproduz esboçam dos campos de concentração australianos um
panorama só comparável ao dos criados pelas SS de Himmler. Os aborígenes,
aliás, ainda eram caçados no país no início do século passado como animais.
E que pensar dos campos de
internamento instalados por Roosevelt para cidadãos de origem japonesa –
incluindo crianças – cujo único crime era a origem étnica? Durante a guerra,
muitos prisioneiros alemães foram submetidos nos EUA a torturas medievais, como
a destruição dos testículos.
É do domínio público que na
primeira metade do século XX os linchamentos de negros eram ainda rotineiros em
Estados do Sul do país. Ho Chi Min descreve esses espetáculos macabros,
tolerados pelas autoridades. Assistiu, angustiado, a um deles.
Nas histórias da Inglaterra
não há praticamente referências aos campos de trabalho militarizados instalados
na Índia durante o Império. Mas eles existiram e foram cenário de crimes
repugnantes.
O apagamento da memória
histórica dos horrores dos campos de concentração criados pela França na
Argélia é igualmente uma realidade na pátria de Victor Hugo.
Na Alemanha ignora-se o
genocídio planeado dos Herreros e dos Hotentotes na Namíbia quando aquele país
era uma colônia do Império dos Hohenzollern. Foram chacinados como animais em
campos especiais pelo exército colonial do Kaiser Guilherme II.
Do genocídio dos indígenas
também pouco se fala no Canadá; mas esse silêncio não apaga o fato de que o
objetivo dos campos da morte do país foi o extermínio deliberado de tribos
inteiras de índios num autêntico holocausto.
A evocação desses crimes
esquecidos pelos defensores ocidentais dos direitos humanos ocupa muitas
páginas no livro de Losurdo.
Poderia ter acrescentado uma
referência ao campo do Tarrafal em Cabo Verde e aos campos de concentração, como o
de São Nicolau, que Salazar instalou em Angola.
STÁLIN E OS JUDEUS
A satanização de Stalin no
Ocidente não é somente uma constante nas campanhas anticomunistas.
Historiadores europeus e estadounidenses de prestígio identificados com a
ideologia neoliberal cultivaram nas últimas décadas uma perversa modalidade de
irracionalismo no esforço para diabolizar Stálin.
A receita é primária: Stálin
e Hitler seriam "monstros gêmeos".
Losurdo na desmontagem do
paralelo e das imaginárias afinidades entre o dirigente soviético e o führer
nazi analisa textos de autores como a destacada escritora sionista
estadounidense Hannah Arendt para ridicularizar a argumentação inspirada por um
anticomunismo cavernícola.
Arendt, entre outras
inverdades, apresenta Stálin como um anti-semita fanático. Atribui-lhe uma
"política canibalesca"contra os judeus, baseada num ódio racial
feroz.
O historiador Robert
Conquest, porta-voz da extrema-direita norte-americana, comentando a repressão
na Ucrânia durante a coletivização afirma que Stálin transformou aquela
república soviética num "imenso Bergen Belsen" (um campo de
extermínio alemão).
Losurdo lembra que Conquest,
num dos seus livros, editado no âmbito de uma operação político cultural anticomunista,
responsabiliza a URSS por "infâmias iguais em tudo às cometidas pelo
Terceiro Reich".
Cabe recordar que sucessivos
presidentes dos EUA manifestaram grande apreço por Conquest como historiador e
perfilharam a tese do Golodomor (o chamado holocausto ucraniano),
transformando-a numa poderosa arma na Guerra-Fria. Reagan utilizou-a como
instrumento ideológico no período que precedeu o desmembramento da URSS.
Losurdo, ao refutar as
acusações de anti-semitismo feitas a Stálin, recorda que após o final da
guerra, antes da partilha da Palestina, o dirigente soviético adotou "uma
política fundamentalmente filo hebraica". A URSS foi, aliás, o primeiro
país a reconhecer o Estado de Israel. Numa mensagem dirigida de Paris a Ben
Gurion, o seu ministro dos Assuntos Estrangeiros, salienta que os delegados
soviéticos atuaram como "advogados de Israel" na Conferência da ONU
sobre a questão palestina.
Os arquivos do Foreign Office
e do Departamento de Estado acumulam, aliás, documentação que confirma uma
realidade hoje incomoda por muitos motivos: "a União Soviética contribuiu
de maneira essencial – como escreve Losurdo – para a criação e fortalecimento
do Estado hebraico",
Losurdo, recorrendo a
citações de autores insuspeitos, lembra que Stalin fustigava o anti-semitismo
com expressões como "chauvinismo racial" e "canibalismo".
Muitos dos bolcheviques mais
destacados da velha guarda eram judeus. Zhdanov, um dirigente no qual Stálin
depositou uma confiança irrestrita, também era judeu. E durante décadas
milhares de elementos de origem hebraica ocuparam funções da maior
responsabilidade no Estado Soviético.
Hitler, nas suas catilinárias
antissemitas, atribuía aos judeus um papel decisivo na preparação da Revolução
de Outubro. Utilizando uma linguagem desbragada, aludia a uma "horda
terrorista hebraica" de "asiáticos circuncidados" e afirmava que
sangue judeu corria nas veias de Lênin. E dizia que Stálin era um judeu, não
pelo sangue mas pelo espírito.
A política pró Israel de
Stalin somente deu uma guinada de 180 graus, assumindo uma orientação
antissionista, quando os diplomatas de Tel Aviv, após a visita de Golda Meier a
Moscou, iniciaram contatos secretos com a comunidade hebraica da URSS com o
objetivo de estimular a emigração para Israel dos judeus soviéticos.
"Cada hebreu – teria
dito então Stálin, segundo Roy Medvedev – é um nacionalista, é um agente da
espionagem americana".
Losurdo aborda com cautela o
tema da alegada "conspiração" dos médicos judeus de Stálin à qual
escritores e jornalistas ocidentais dedicaram milhares de páginas. Transcorrido
mais de meio século, o fuzilamento de alguns desses médicos continua a suscitar
polêmicas apaixonadas dentro e fora da Rússia. O filósofo italiano, comentando
versões contraditórias, evita uma conclusão, sublinhando que não foram somente
dirigentes soviéticos a emprestar credibilidade à teoria do complô. O diplomata
britânico sir Joe Gascoigne admitiu na época que os médicos do Kremlin eram
"culpados de traição".
COMUNISMO, ANTÍTESE DO
FASCISMO
A intensidade, as proporções
e a sofisticação da campanha anticomunista na qual um dos objetivos era a destruição
da imagem positiva projetada no mundo pela União Soviética produziram no
Ocidente efeitos prolongados e complexos que se manifestam ainda, transcorridas
quase duas décadas desde a reimplantação do capitalismo na pátria de Lênin.
A ofensiva prosseguiu. Os
teóricos do capitalismo, criadores de slogans como "O império do mal"
e outros similares, compreenderam que o esforço para desacreditar a URSS era
insuficiente se não concentrassem as suas críticas na ideologia do sistema.
Marx, Engels e Lênin tornaram-se então alvos preferências dos intelectuais e de
políticos empenhados em apresentar o socialismo como um projeto fracassado não
apenas utópico, mas monstruoso.
Qualquer cientista político
minimamente estudioso sabe que não existiu até hoje um único regime comunista.
Mas, simulando ignorar a evidência – o comunismo é uma fase superior do
socialismo –, os ideólogos da burguesia insistem em chamar comunistas aos
países que desenvolveram experiências socialistas, entre os quais a URSS.
A maioria dos Partidos
Comunistas – o Português, o da Grécia e o Akel cipriota são na Europa exceções
ao revisionismo – não soube reagir positivamente a essa ofensiva ideológica.
Muitos dirigentes, por ela contaminados, não somente participaram das campanhas
de satanização da URSS como renegaram os valores da Revolução de Outubro,
levando a capitulação ao extremo de aderir a calúnias anticomunistas.
Registo que não faltam
militantes de partidos revolucionários que, por temor, não ousam hoje
assumir-se publicamente como marxistas e comunistas.
Foi no âmbito dessa ofensiva
ideológica que acadêmicos de grandes universidades europeias e norte-americanas
forjaram a tese segundo a qual fascismo e comunismo seriam, afinal, variantes
de uma mesma concepção monstruosa da política. Entre os muitos livros publicado
sobre o tema, alguns, como Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt, foram
best-seller mundiais que disseminaram a mentira e a calúnia com verniz de
verdade.
Domenico Losurdo, nos
capítulos dedicados à psicopatologia e à moral das leituras ocidentais da era
de Stálin e à aberração das comparações entre este e Hitler, desce às origens e
motivações da estratégia anticomunista.
Relembra que esse trabalho
tem raízes antigas. O presidente Wilson, por exemplo, era um fanático
anticomunista. Na sua opinião, a Revolução de Outubro foi fundamentalmente um
complô alemão e Lênin e outros dirigentes bolcheviques teriam estado durante
anos ao serviço da Alemanha imperial.
Losurdo, que emprega a
expressão Grande Terror com maiúsculas para designar o biénio 37-38 dos
Processos de Moscou, esboça com frontalidade o quadro sombrio da repressão na
URSS em diferentes fases da era de Stálin.
Alerta, porém, para a
hipocrisia de eminentes historiadores ocidentais que branqueiam ou omitem
crimes contra a humanidade praticados pelos governos e forças armadas de países
capitalistas enquanto se esforçam para mobilizar as consciências contra os
cometidos pelos "monstros comunistas".
Recorda – apenas um exemplo –
que o fuzilamento de oficiais polacos pelos soviéticos em Katyn foi um crime
indesculpável. Sublinha, porém, que esse massacre abjeto tem sido utilizado
exaustivamente pela propaganda ocidental no cinema, na televisão, na imprensa,
em livros – como prova do caráter bárbaro, desumano do regime soviético.
Num brevíssimo inventário de
alguns crimes ocidentais que não figuram ou são suavizados nos manuais de
História, Losurdo cita entre outros:
• A morte por fome e maus-tratos de dois dos três milhões de
prisioneiros soviéticos capturados pelos alemães na Frente Leste.
• A chacina pelos britânicos de milhares de mulheres e crianças
no campo de concentração de Kamiti, no Quênia, após a rebelião dos Mau Mau.
• O bombardeamento genocida de Dresden pelos ingleses quando a
guerra estava no final e o apoio de Churchill, Roosevelt e Truman aos
bombardeamentos terroristas de cidades alemãs sem objetivos militares com o
objetivo de aterrorizar as populações.
• A execução na Sicília por ordem do general Patton de soldados
italianos que se tinham rendido ao exército americano.
• O genocídio nas Filipinas no começo do século XX durante a
revolta contra a ocupação norte-americana.
• O extermínio total da população aborígene da Tasmânia.
• A recusa de fazer prisioneiros muçulmanos durante a campanha
do Sudão no final do século XIX na qual Churchill participou como oficial de
cavalaria.
• A execução em Taejon em Julho de 1950 de 1.700 coreanos que
antes do fuzilamento foram obrigados a escavar a fossa onde foram sepultados.
• O extermínio, pelo Exército dos EUA, do total dos moradores
de dezenas de aldeias no Vietnã e no Laos.
• A ordem de Nixon no inicio dos anos 70 para que fossem
lançadas nas áreas rurais do Camboja mais bombas de quantas haviam explodido
nas cidades japonesas durante toda a segunda guerra mundial.
• E o mais trágico e abjeto dos crimes contra a humanidade: o
lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945.
O ÓDIO NÃO FAZ HISTÓRIA
Para os ingleses é muito
constrangedor hoje reconhecer que os seus líderes derramaram elogios sobre
Mussolini e Hitler antes da Guerra Mundial.
Churchill declarou em 1933
que via "o gênio romano personalizado em Mussolini, o maior legislador
vivo, que mostrou a muitas nações como se pode resistir a chegar ao
socialismo"…
Quatro anos depois, em 1937,
escreveu que Hitler era um político "extremamente competente", com um
"sorriso que desarmava "e um "sutil magnetismo pessoal".
Lloyd George, o ex
primeiro-ministro liberal, foi ainda mais apologético ao definir o führer como "um
grande homem".
Paradoxalmente, os mesmos
dirigentes das grandes potências ocidentais cujos anátemas contra a URSS e
Stálin continuam a ser peças de fundo nas campanhas anticomunistas reconheceram
publicamente a decisiva importância da contribuição soviética para a derrota do
Reich nazi e manifestaram grande apreço pela pessoa do secretário-geral do
PCUS.
Roosevelt, já muito doente,
não escondeu a impressão positiva que na Conferência de Teerã lhe causara a
personalidade de Stálin, definindo-o como um estadista de grande talento e
cultura.
Na correspondência de
Churchill hoje publicada são numerosas as referências altamente elogiosas a
Stálin. Identificou nele um dos mais dotados estadistas do século XX.
Isso não o impediu de dar o
dito por não dito e de se orgulhar de ser o pai da Guerra Fria ao esboçar no
famoso discurso de Fulton os perigos daquilo a que chamou a "Cortina de
Ferro".
Obviamente o Relatório
Secreto de Kruchóv trouxe um poderoso estímulo à campanha de demonização de
Stálin.
A abertura dos arquivos
soviéticos e as memórias de marechais que desempenharam um grande papel na
derrota militar do III Reich constituem o mais eficaz dos desmentidos a
afirmações caricaturais desse Relatório que apresenta de Stálin a imagem de um
dirigente que caíra em depressão com a invasão alemã e sem influência direta na
condução da guerra patriótica.
A tese provocatória dos
“monstros gêmeos”, difundida por Hannah Arendt e outros escritores
anticomunistas não passa de uma grotesca operação de marketing político. Mas
continua a ser tempero utilizado nas campanhas de satanização de Stálin.
Losurdo chama a atenção para
o protagonismo que Arendt mais uma vez assumiu nessa ofensiva, na tentativa de
forçar um paralelo entre a Alemanha nazi e a URSS stalinista.
A escritora sionista pretende
iluminar "a origem do totalitarismo", mas na realidade o seu ensaio
agride a História, configurando aquilo a que Lukács chama o assalto à razão.
A obsessão dos ideólogos do
neoliberalismo em lançar pontes entre Hitler e Stalin é tão irracional que
assume facetas de paranoia.
Losurdo pulveriza a tese e
lembra com fundamento que pelo pensamento e pela sua intervenção na Historia
foram precisamente duas personalidades antagónicas.
Enquanto Hitler fez do
racismo um cimento do Estado nazi, Stálin condenou-o como forma de canibalismo
social e ameaça à paz. Stálin investiu sempre contra o mito da superioridade
dos arianos puros, sobretudo os alemães, sobre os demais povos.
Sob a sua direção, a União
Soviética assumiu um papel decisivo na descolonização e foi graças à
solidariedade do Partido sob a sua direção, apoio ideológico e ajuda material
que as lutas de libertação nacional se desenvolveram vitoriosamente na África,
na Ásia e na América Latina.
Até Friedrich Hayek, o
economista austríaco que é considerado o pai do neoliberalismo ortodoxo,
reconhece que, sem a Revolução Russa, o chamado estado social não teria sido
possível na Europa.
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