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terça-feira, 1 de novembro de 2011

OS MERCADOS CONTRA A DEMOCRACIA

 
Péricles, o pai da democracia
  “Chama-se democracia, porque não são os poucos, mas os muitos que governam. Se consultarmos nossas leis, elas prescrevem uma justiça igual para todos a despeito de suas diferenças individuais”

Péricles, Oração Fúnebre (registrada – possivelmente escrita – por Tucídides, em História da Guerra do Peloponeso)

“A justiça democrática consiste na igualdade segundo o número e não segundo o mérito. De tal noção de justiça resulta que a soberania estará necessariamente no povo e que a opinião da maioria deverá ser o fim a conseguir e deverá ser a justiça. (…) Como resultado disso, nas democracias, os pobres são mais poderosos do que os ricos: são em maior número e a autoridade soberana está na maioria. Esse é, pois, um sinal de liberdade que todos os democratas colocam como marca do regime (…).”


“A democracia surgiu da ideia de que, se os homens são iguais em qualquer aspecto, são absolutamente iguais entre si.”
Aristóteles, A Política
Os gregos antigos inventaram a democracia; os romanos, a ideia de império europeu. Em meados do século XX, depois de terem se massacrado em conflitos sangrentos, franceses e alemães modernos criaram a União Europeia, achando que estavam realizando a síntese dialética dos legados de Atenas e Roma. No entanto, desde que a União Europeia se viabilizou como instituição, um ovo da serpente ameaçava a democracia europeia: a prática de os burocratas de Bruxelas deciderem, com base em critérios supostamente "técnicos" e sem consulta prévia, sobre assuntos que afetam a vida de milhões de europeus. Partem da suposição de que, num mundo complexo e globalizado, o cidadão comum não tem discernimento para decidir sobre coisas realmente importantes, principalmente assuntos de natureza econômica. Mas o que é a democracia senão a ideia de que o cidadão comum, que geralmente não é especialista em coisa alguma, é o substrato da soberania popular?     

O referendo convocado pelo governo da Grécia para saber se os cidadãos aceitam o pacote de ajuda europeu revela que estamos em face de um verdadeira tentativa de golpe de estado financeiro e não apenas de um "déficit democrático". O texto do economista Michael Hudson, escrito em junho, é um magnífico diagnóstico dessa situação: 

Golpe de estado financeiro ameaça democracia na Europa

Michael Hudson (*)

[...] O sistema fiscal grego operava como um tubo sugador de recitas para pagar os bancos alemães e franceses que compravam títulos públicos gregos (com suculentas e crescentes taxas de juros). Os banqueiros estão se movendo agora para formalizar esse papel, uma condição oficial para ir cobrando os títulos gregos à medida que eles vão vencendo e esticar assim a corda financeira de curto prazo sob a qual a Grécia está operando agora. Os atuais portadores desses títulos obterão enormes lucros se este plano tiver êxito.


[...]


Lançar a Grécia em uma guerra de classes para salvar a banca privada alemã e francesa


A condição necessária para que arranque o novo pacote “reformado” de empréstimos é que a Grécia entre numa guerra de classes aumentando seus impostos e rebaixando seu gasto social – incluindo as pensões do setor privado – e liquide e ponha em leilão terras públicas, enclaves turísticos, ilhas, portos, água e sistemas de esgoto. Isso aumentará o custo de vida e o custo para fazer negócios, atingindo a já limitada competitividade das exportações do país. Os banqueiros apresentam isso farisaicamente como um “resgate” das finanças gregas.

O que realmente foi resgatado há um ano, em maio de 2010, além de outros investidores estrangeiros, foram os bancos franceses, detentores de um bilhão de euros em títulos gregos e os bancos alemães, detentores de outros 23 bilhões. O problema era como conseguir que os gregos apoiassem a iniciativa. O recém eleito primeiro ministro socialista George Papandreu parecia capaz de entregar a seu eleitorado as linhas seguidas pelos neoliberais partidos socialdemocratas e trabalhistas em toda a Europa: privatizar as infraestruturas básicas e comprometer receitas futuras para pagar os banqueiros.


Nunca houve melhor ocasião que esta para servir-se da corda financeira e despojar de propriedades e apertar o garrote fiscal. Os banqueiros, por sua parte, estavam prontos a conceder empréstimos para financiar compras privadas de loterias e jogos públicos, sistemas de telefonia, portos, sistemas de transporte e outras oportunidades de monopólio. E no que diz respeito às próprias classes ricas gregas, o pacote de créditos da União Europeia conseguiria manter o país na eurozona o suficiente para permitir que retirassem seu dinheiro do país, antes que chegue o momento em que a Grécia se veja forçada a abandonar o euro e voltar a uma dracma rapidamente desvalorizada. Até que não chegue a esse ponto de regresso a uma moeda própria em queda, a Grécia tem que seguir a política báltica e irlandesa de “desvalorização interna”, isto é: de deflação salarial e corte de gastos públicos – exceto para pagar o setor financeiro – a fim de rebaixar o emprego e, assim, os níveis salariais.


O que realmente resulta desvalorizado nos programas de austeridade ou de desvalorização monetária é o preço do trabalho. Ou seja, o principal custo interno, posto que há um preço mundial comum para combustíveis e minerais, bens de consumo, alimentos e até crédito. Se os salários não podem ser reduzidos pela via da desvalorização interna (com um desemprego que, começando pelo setor público, induza quedas salariais), a desvalorização da moeda fará o trabalho até o fim.


É assim que a guerra dos países credores contra os países devedores na Europa torna-se uma guerra de classes. Mas para impor tamanha reforma neoliberal, é preciso que a pressão externa passe ao largo dos parlamentos nacionais democraticamente eleitos. Pois não é de se esperar que os eleitores de todos os países acabem sendo tão passivos como os da Letônia e da Irlanda quando se age manifestamente contra os seus interesses.


[...]

Os gregos se negaram a render-se resignadamente. As greves iniciadas pelos sindicatos do setor público logo se converteram em um movimento nacional, o “Eu não pago”: os gregos passaram a se negar a pagar em postos de pedágio nas estradas ou em outros postos de acesso público. A polícia e os fiscais se abstiveram de obrigar a população a pagar. O nascente consenso populista levou o primeiro ministro de Luxemburgo, Jean-Claude Junker a lançar uma ameaça similar aquela que o britânico Gordon Brown levantou contra a Islândia: se a Grécia não cumprir as exigências dos ministros das finanças europeus, será bloqueado o crédito que o FMI acertou para junho. Isso, por sua vez, bloquearia os pagamentos do governo grego aos banqueiros estrangeiros e aos fundos abutres que vêm comprando uma dívida grega cada vez mais depreciada.


[...]


O que está em questão na Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal e no resto da Europa


O que está em questão é se Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal e o resto da Europa terminarão por destruir o reformismo democrático e derivar para uma oligarquia financeira. O objetivo financeiro é evitar os parlamentos para exigir um “consenso” que dê prioridade aos credores estrangeiros a custo do conjunto da economia. Exige-se dos parlamentos que abdiquem de seu poder político legislativo. O significado do “mercado livre”, neste momento, é planificação central nas mãos dos banqueiros centrais. Essa é a nova via rumo à servidão pela dívida a que estão levando os “mercados livres” financeirizados: mercados “livres” para que os privatizadores cobrem preços monopolistas por serviços básicos “livres” de regulações de preços e de regulações antioligopólicas, “livres” de limitações ao crédito para proteger os devedores e, sobretudo, “livres” de interferências por parte dos parlamentos eleitos. Em uma perversão da linguagem, chama-se de “alternativa” à servidão ao processo de fixação de preços para os monopólios naturais – transporte, comunicação, loterias – retirados do domínio público. Na verdade, é o caminho da servidão pela dívida rumo a um verdadeiro neofeudalismo financeirizado, que é o que está se desenhando no horizonte do futuro. Essa é a filosofia econômica do nosso tempo.


[...]

A moral da história é: quando se trata de salvar os banqueiros, ignoram-se as regras a fim de servir a uma “justiça mais alta”, que é a de evitar que os bancos e seus sócios das altas finanças percam dinheiro. O que contrasta vivamente com a política do FMI para os trabalhadores e os “contribuintes”. A luta de classes regressou ao mundo dos negócios: vingativa e, desta vez, com os banqueiros como vencedores.

[...]

E essa ofensiva não é comandada por Estados nacionais como tais, mas sim por uma classe financeira cosmopolita. As finanças sempre foram mais cosmopolitas do que nacionalistas, e sempre procuraram impor suas prioridades e seu poder legislador sobre as democracias parlamentares.

A estratégia financeira, como é a de qualquer monopólio, busca bloquear o poder público regulador ou fiscalizador. Desde a perspectiva financeira, a função ideal do Estado é robustecer e proteger o capital financeiro e o “milagre do juro composto”, que faz com que as fortunas sigam se multiplicando exponencialmente, de modo mais rápido do que a economia pode crescer, até que começa a abocanhar pedaços da economia real, fazendo com ela o mesmo que os credores predatórios e os rentistas fizeram com o Império Romano.


Essa dinâmica financeira é o que ameaça quebrar a Europa de nossos dias. Mas a classe financeira ganhou poder o suficiente para inverter o tabuleiro ideológico e insistir com certo êxito que o que ameaça a unidade Europa são as populações nacionais que atuam resistindo às exigências cosmopolitas do capital financeiro para impor políticas de austeridade aos trabalhadores. Pretende-se que dívidas que já se tornaram impagáveis passem para a contabilidade pública: sem necessidade de batalha militar alguma, cabe dizer; ao menos, os banhos de sangue são coisa do passado.


Do ponto de vista das populações irlandesa e grega (às quais talvez não tardem a se somar a portuguesa e a espanhola), os governos nacionais parlamentares irão se mobilizar para impor os termos de uma rendição incondicional aos planificadores financeiros. Quase poderia se dizer que o ideal é reduzir os parlamentos a regimes títeres locais ao serviço de uma classe financeira cosmopolita que se serve da alavancagem creditícia para se apropriar dos restos do domínio público que costumavam ser chamados de “bens comuns”. Deste modo, estamos entrando em um mundo pós-medieval de fechamentos: um novo movimento impulsionado por uma lei financeira revogadora da lei comum civil e depredadora do bem comum.


[...]


De acordo com minhas próprias recordações, o idealismo socialista logo depois da II Guerra Mundial via os estados nacionais como instrumentos bélicos. Esta ideologia pacifista eclipsou a ideologia socialista originária de fins do século XIX, que buscava reformar os Estados para tirar o poder legislativo e o poder fiscal das mãos das classes que os dominavam desde que as invasões vikings estabeleceram na Europa o privilégio feudal, a posse absenteísta de terras, o controle financeiro dos monopólios comerciais e, logo em seguida, de modo crescente, o privilégio bancário de criação da moeda.


Como observou recentemente meu colega da Universidade de Missouri, em Kansas, o professor William Black, no blog econômico da UMKC:


Um dos grandes paradoxos é que os governos da periferia, geralmente orientados para a centro-esquerda, adotaram tão entusiasticamente as receitas ultradireitistas aferradas à ideia de que a austeridade é uma resposta apropriada a uma grande recessão. A razão pela qual partidos de esquerda abraçam recomendações de economistas de ultradireita, cujos dogmas antirregulatórios contribuíram para causar a crise é um dos grandes mistérios da vida. Suas políticas são autodestrutivas economicamente e suicidas politicamente."


A Grécia e a Irlanda se converteram na pedra de toque para saber se as economias serão sacrificadas para pagar umas dívidas que não podem ser pagas. A ameaça que está no horizonte é um intervalo no qual o caminho para a quebra e a austeridade permanente trará consigo o crescente despojo de terras e empresas públicas subtraídas do domínio comum, o crescente desvio de mais e mais receitas dos consumidores para pagar o serviço da dívida, o aumento dos impostos para que os governos paguem aos portadores de títulos públicos e uma crescente proporção das receitas empresariais para pagar banqueiros.


Se isso não é uma guerra, o que é?

(*) Michael Hudson é ex-economista de Wall Street e atualmente um Pesquisador destacado na Universidade do Missouri, Kansas City (UMKC), e presidente do Instituto para o estudo das tendências de longo prazo da economia (Institute for the Study of Long-Term Economic Trends ISLET).

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