Trechos da conferência pronunciada pelo filósofo britânico Bertrand Russell; essa conferência depois viraria livro polêmico, Por que não sou cristão). Notem que esse texto é de 1927!
Depois, leiam este o artigo da grande repórter Eliane Brum publicado nesta semana na revista Época.
POR QUE NÃO SOU CRISTÃO
Bertrand Russell
"[...] O problema moral
Vamos versar agora os problemas morais. Quanto a mim há um sério defeito na moral de Cristo, que é a sua crença no inferno. Não posso admitir que uma pessoa profundamente humana possa acreditar num castigo eterno.
Ora Cristo, tal como o descrevem os Evangelhos, acreditava nesse castigo e descobrem-se muitas frases que testemunham um furor vingativo contra aqueles que não aceitavam a sua doutrina ― atitude que pode estar de harmonia com um pregador mas que prejudicará a reputação dum ser a quem se atribui uma perfeição extraordinária. Se comparardes Jesus a Sócrates, por exemplo, verificareis que o filósofo era suave e cortês para quem se recusava a escutá-lo. Ao que penso, é muito mais próprio dum sage adoptar essa linha de conduta do que deixar-se dominar pela indignação. Recordem-se as palavras de Sócrates no momento da sua morte e aquelas que correntemente dirigia aos que estavam em desacordo consigo.
Nos Evangelhos ouvireis Cristo exprimir-se deste modo: "Serpentes, raça de víboras, como podereis escapar ao castigo do inferno?"[12] Isto era dirigido às pessoas que não apreciavam as suas palavras. Infelizmente, são muitas as imprecações do mesmo estilo, no que se refere ao inferno, nesses textos sagrados. Especialmente, cito aquele que se aplica ao pecado cometido contra o Espírito Santo: "Todo aquele que fala contra o Espírito Santo, não terá perdão neste mundo ou no outro". Este texto tem provocado no mundo um número indizível de tormentos. Não aceito que um ser possuindo um grama de bondade natural fosse capaz de instaurar no mundo crenças e terrores deste género.
Cristo diz ainda: "O Filho do homem enviará os seus anjos que arrancarão do seu reino todos os escândalos e aqueles que cometerem o mal, lançando-os na fornalha de fogo, onde haverá choros e ranger de dentes". E obstina-se em falar de choros e ranger de dentes, versículo após versículo, parecendo evidente aos leitores que Cristo considerava tudo isso sem qualquer desgosto. Se tal não correspondesse à verdade, essas palavras não apareceriam tantas vezes. Por certo que estais recordados do episódio das ovelhas e das cabras. Aquando o segundo advento, Jesus separará as ovelhas das cabras e dirá a estas: "Afastai-vos de mim, malditas, e ide para o fogo eterno". E prossegue: "Se o teu pé é para ti uma oportunidade de pecado, corta-o; porque é melhor entrares na vida eterna coxo, do que, tendo os dois pés, seres lançado no fogo do inferno, o fogo que nunca será extinto; onde os vermes não morrem e o fogo jamais é extinto".
As repetições não cessam. Devo dizer que considero toda esta doutrina, segundo a qual o fogo do inferno é a punição do pecado, como a doutrina da crueldade, doutrina que introduziu a crueldade no mundo e tem justificado séculos de torturas. O Cristo dos Evangelhos, tal como os seus Apóstolos o apresentam, deve ser considerado como parcialmente responsável por esses acontecimentos.
Entre outros casos de menor importância há o dos porcos de Gadarena. Não é das atitudes mais gentis introduzir demónios nestes animais e fazê-los precipitar no mar, do alto de uma colina. Não era Jesus todo poderoso e não podia simplesmente afastar os demônios? Mas preferiu alojá-los nos porcos.
Há também a curiosa história da figueira que não tem deixado de me intrigar. Sabeis o que aconteceu com a figueira. "E, ao outro dia, como saíssem de Bethânia, teve fome; e vendo ao longe uma figueira coberta de folhas avançou para ver se encontrava algum fruto. Aproximou-se então da árvore mas encontrou apenas folhas porque não era ainda a estação dos figos. E Jesus disse então para ela: que jamais alguém coma do teu fruto... e Pedro disse para Jesus: Mestre, olhai! A figueira que haveis amaldiçoado secou".
Esta é uma história muito curiosa, visto não ser a época própria dos figos e não ser possível responsabilizá-la. Penso que em matéria de sabedoria ou de virtude, Cristo não está tão alto como outras figuras históricas. Nesses aspectos colocarei acima dele Buda ou Sócrates.
O temor, base da religião
A religião é fundamentada primeiramente e sobretudo no temor. Por um lado é o terror perante o desconhecido, por outro o desejo de sentir uma espécie de irmão mais velho que esteja ao nosso lado quando nos sentimos receosos ou em dificuldades. O temor é a base deste problema ― temor do misterioso, temor do malogro, temor da morte. E o temor engendra a crueldade, razão por que a vemos de mãos dadas com a religião. O temor está na base de uma e de outra. Neste mundo, começámos a compreender as coisas, a dominá-las um pouco com a ajuda da ciência ― que vai abrindo caminho pouco a pouco apesar da oposição da religião cristã, das Igrejas em geral e de todas as superstições. A ciência pode ajudar-nos a vencer esse covarde terror em que a humanidade tem vivido durante tantas gerações; a ciência pode ensinar-nos, e penso que o nosso próprio coração nos pode também ajudar, a não mais procurar apoios imaginários à nossa volta, a não mais forjar aliados nos céus, mas a concentrar todos os nossos esforços aqui na terra, a fim de fazer deste mundo um lugar onde se possa viver agradavelmente, ao contrário do que têm feito todas as Igrejas através dos séculos.
O que devemos fazer
Devemo-nos manter de pé com os nossos próprios meios e olhar francamente para o mundo ― ver os seus aspectos bons, seus aspectos maus, suas belezas e suas fealdades; olhar para o mundo tal qual ele é, sem pavor. Conquistar o mundo pela inteligência e não nos deixarmos subjugar como escravos do terror. Todo o conceito de Deus é tirado do velho despotismo oriental. É uma concepção absolutamente indigna de homens livres. Quando sei de pessoas que se curvam nas igrejas confessando-se miseráveis pecadoras, e tudo o mais, tenho isso como desprezível, incompatível com o respeito que devemos a nós próprios. Devemos, ao contrário, olhar o mundo francamente e no seu rosto. Devemos melhorar este mundo e, se ele não é tão bom quanto desejávamos, que ele seja melhor do que o construído no passado pelos outros. Um mundo à nossa medida exige saber, bondade e coragem; não exige uma intensa nostalgia do passado, nem o acorrentar da livre inteligência aos entraves impostos pelas fórmulas que os antigos ignorantes inventaram. O que uma perspectiva do futuro desligada do terror exige é uma visão clara das realidades. O que exige a esperança no futuro não é o refluxo constante a um passado morto, que, estamos certos, será em muito ultrapassado pelo futuro que a nossa inteligência é capaz de criar."
Pelo direito de ser ateu
A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico
Por Eliane Brum, da Revista Época.
A parábola do taxista e a intolerância. Reflexão a partir de uma conversa no trânsito de São Paulo. A expansão da fé evangélica está mudando “o homem cordial”?
O diálogo aconteceu entre uma jornalista e um taxista na última sexta-feira. Ela entrou no táxi do ponto do Shopping Villa Lobos, em São Paulo, por volta das 19h30. Como estava escuro demais para ler o jornal, como ela sempre faz, puxou conversa com o motorista de táxi, como ela nunca faz. Falaram do trânsito (inevitável em São Paulo) que, naquela sexta-feira chuvosa e às vésperas de um feriadão, contra todos os prognósticos, estava bom. Depois, outro taxista emparelhou o carro na Pedroso de Moraes para pedir um “Bom Ar” emprestado ao colega, porque tinha carregado um passageiro “com cheiro de jaula”. Continuaram, e ela comentou que trabalharia no feriado. Ele perguntou o que ela fazia. “Sou jornalista”, ela disse. E ele: “Eu quero muito melhorar o meu português. Estudei, mas escrevo tudo errado”. Ele era jovem, menos de 30 anos. “O melhor jeito de melhorar o português é lendo”, ela sugeriu. “Eu estou lendo mais agora, já li quatro livros neste ano. Para quem não lia nada...”, ele contou. “O importante é ler o que você gosta”, ela estimulou. “O que eu quero agora é ler a Bíblia”. Foi neste ponto que o diálogo conquistou o direito a seguir com travessões.
- Você é evangélico? – ela perguntou.
- Sou! – ele respondeu, animado.
- De que igreja?
- Tenho ido na Novidade de Vida. Mas já fui na Bola de Neve.
- Da Novidade de Vida eu nunca tinha ouvido falar, mas já li matérias sobre a Bola de Neve. É bacana a Novidade de Vida?
- Tou gostando muito. A Bola de Neve também é bem legal. De vez em quando eu vou lá.
- Legal.
- De que religião você é?
- Eu não tenho religião. Sou ateia.
- Deus me livre! Vai lá na Bola de Neve.
- Não, eu não sou religiosa. Sou ateia.
- Deus me livre!
- Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha.
- (riso nervoso).
- Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por não ter uma fé?
- Por que as boas ações não salvam.
- Não?
- Só Jesus salva. Se você não aceitar Jesus, não será salva.
- Mas eu não quero ser salva.
- Deus me livre!
- Eu não acredito em salvação. Acredito em viver cada dia da melhor forma possível.
- Acho que você é espírita.
- Não, já disse a você. Sou ateia.
- É que Jesus não te pegou ainda. Mas ele vai pegar.
- Olha, sinceramente, acho difícil que Jesus vá me pegar. Mas sabe o que eu acho curioso? Que eu não queira tirar a sua fé, mas você queira tirar a minha não fé. Eu não acho que você seja pior do que eu por ser evangélico, mas você parece achar que é melhor do que eu porque é evangélico. Não era Jesus que pregava a tolerância?
- É, talvez seja melhor a gente mudar de assunto...
O taxista estava confuso. A passageira era ateia, mas parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida. Mas ele fora doutrinado para acreditar que um ateu é uma espécie de Satanás. Como resolver esse impasse? (Talvez ele tenha lembrado, naquele momento, que o pastor avisara que o diabo assumia formas muito sedutoras para roubar a alma dos crentes. Mas, como não dá para ler pensamentos, só é possível afirmar que o taxista parecia viver um embate interno: ele não conseguia se convencer de que a mulher que agora falava sobre o cartão do banco que tinha perdido era a personificação do mal.)
Chegaram ao destino depois de mais algumas conversas corriqueiras. Ao se despedir, ela agradeceu a corrida e desejou a ele um bom fim de semana e uma boa noite. Ele retribuiu. E então, não conseguiu conter-se:
- Veja se aparece lá na igreja! – gritou, quando ela abria a porta.
- Veja se vira ateu! – ela retribuiu, bem humorada, antes de fechá-la.
Ainda deu tempo de ouvir uma risada nervosa.
A parábola do taxista me faz pensar em como a vida dos ateus poderá ser dura num Brasil cada vez mais evangélico – ou cada vez mais neopentecostal, já que é esta a característica das igrejas evangélicas que mais crescem. O catolicismo – no mundo contemporâneo, bem sublinhado – mantém uma relação de tolerância com o ateísmo. Por várias razões. Entre elas, a de que é possível ser católico – e não praticante. O fato de você não frequentar a igreja nem pagar o dízimo não chama maior atenção no Brasil católico nem condena ninguém ao inferno. Outra razão importante é que o catolicismo está disseminado na cultura, entrelaçado a uma forma de ver o mundo que influencia inclusive os ateus. Ser ateu num país de maioria católica nunca ameaçou a convivência entre os vizinhos. Ou entre taxistas e passageiros.
Já com os evangélicos neopentecostais, caso das inúmeras igrejas que se multiplicam com nomes cada vez mais imaginativos pelas esquinas das grandes e das pequenas cidades, pelos sertões e pela floresta amazônica, o caso é diferente. E não faço aqui nenhum juízo de valor sobre a fé católica ou a dos neopentecostais. Cada um tem o direito de professar a fé que quiser – assim como a sua não fé. Meu interesse é tentar compreender como essa porção cada vez mais numerosa do país está mudando o modo de ver o mundo e o modo de se relacionar com a cultura. Está mudando a forma de ser brasileiro.
Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais – e não falo aqui nenhuma novidade – são constituídas no modo capitalista. Regidas, portanto, pelas leis de mercado. Por isso, nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É possível, como o taxista exemplifica muito bem, pular de uma para outra, como um consumidor diante de vitrines que tentam seduzi-lo a entrar na loja pelo brilho de suas ofertas. Essa dificuldade de “fidelizar um fiel”, ao gerir a igreja como um modelo de negócio, obriga as neopentecostais a uma disputa de mercado cada vez mais agressiva e também a buscar fatias ainda inexploradas. É preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas – e elas estão sempre de portas abertas – para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações em dinheiro ou em espécie. O templo é um shopping da fé, com as vantagens e as desvantagens que isso implica.
É também por essa razão que a Igreja Católica, que em períodos de sua longa história atraiu fiéis com ossos de santos e passes para o céu, vive hoje o dilema de ser ameaçada pela vulgaridade das relações capitalistas numa fé de mercado. Dilema que procura resolver de uma maneira bastante inteligente, ao manter a salvo a tradição que tem lhe garantido poder e influência há dois mil anos, mas ao mesmo tempo estimular sua versão de mercado, encarnada pelos carismáticos. Como uma espécie de vanguarda, que contém o avanço das tropas “inimigas” lá na frente sem comprometer a integridade do exército que se mantém mais atrás, padres pop star como Marcelo Rossi e movimentos como a Canção Nova têm sido estratégicos para reduzir a sangria de fiéis para as neopentecostais. Não fosse esse tipo de abordagem mais agressiva e possivelmente já existiria uma porção ainda maior de evangélicos no país.
Tudo indica que a parábola do taxista se tornará cada vez mais frequente nas ruas do Brasil – em novas e ferozes versões. Afinal, não há nada mais ameaçador para o mercado do que quem está fora do mercado por convicção. E quem está fora do mercado da fé? Os ateus. É possível convencer um católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é bem mais difícil – quando não impossível – converter um ateu. Para quem não acredita na existência de Deus, qualquer produto religioso, seja ele material, como um travesseiro que cura doenças, ou subjetivo, como o conforto da vida eterna, não tem qualquer apelo. Seria como vender gelo para um esquimó.
Tenho muitos amigos ateus. E eles me contam que têm evitado se apresentar dessa maneira porque a reação é cada vez mais hostil. Por enquanto, a reação é como a do taxista: “Deus me livre!”. Mas percebem que o cerco se aperta e, a qualquer momento, temem que alguém possa empunhar um punhado de dentes de alho diante deles ou iniciar um exorcismo ali mesmo, no sinal fechado ou na padaria da esquina. Acuados, têm preferido declarar-se “agnósticos”. Com sorte, parte dos crentes pode ficar em dúvida e pensar que é alguma igreja nova.
Já conhecia a “Bola de Neve” (ou “Bola de Neve Church, para os íntimos”, como diz o seu site), mas nunca tinha ouvido falar da “Novidade de Vida”. Busquei o site da igreja na internet. Na página de abertura, me deparei com uma preleção intitulada: “O perigo da tolerância”. O texto fala sobre as famílias, afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não tolerar o que não venha de Deus. Tolerar “coisas erradas” é o mesmo que “criar demônios de estimação”. Entre as muitas frases exemplares, uma se destaca: “Hoje em dia, o mal da sociedade tem sido a Tolerância (em negrito e em maiúscula)”. Deus me livre!, um ateu talvez tenha vontade de dizer. Mas nem esse conforto lhe resta.
Ainda que o crescimento evangélico no Brasil venha sendo investigado tanto pela academia como pelo jornalismo, é pouco para a profundidade das mudanças que tem trazido à vida cotidiana do país. As transformações no modo de ser brasileiro talvez sejam maiores do que possa parecer à primeira vista. Talvez estejam alterando o “homem cordial” – não no sentido estrito conferido por Sérgio Buarque de Holanda, mas no sentido atribuído pelo senso comum.
Me arriscaria a dizer que a liberdade de credo – e, portanto, também de não credo – determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia. Não deixa de ser curioso que, no século XXI, ser ateu volte a ter um conteúdo revolucionário. Mas, depois que Sarah Sheeva, uma das filhas de Pepeu Gomes e Baby do Brasil, passou a pastorear mulheres virgens – ou com vontade de voltar a ser – em busca de príncipes encantados, na “Igreja Celular Internacional”, nada mais me surpreende.
Se Deus existe, que nos livre de sermos obrigados a acreditar nele.
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