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segunda-feira, 13 de junho de 2011

O ÚLTIMO INTELECTUAL ENGAJADO

A guerra civil espanhola (1936-1939), que forjou o antifascismo
Com a morte de Jorge Semprún Maura desaparece o último representante de uma espécie hoje quase extinta, o intelectual engajado – espécie essa nascida na França (onde mais?) na época do Affaire Dreyfus (1894-1905). Os maiores expoentes dessa estirpe foram André Malraux, Ernest Hemingway, George Orwell, John dos Passos, Albert Camus e Jean-Paul Sartre. Sim, porque houve um tempo e que os intelectuais não se consideravam dignos de seu papel se não fossem também “homens de ação” – aqueles que não se conformavam em apenas interpretar o mundo, mas insistiam em transformá-lo, participando ativamente das lutas de seu tempo. A maior parte desses intelectuais teve seu “batismo de fogo” no conflito que foi considerado o ensaio geral da Segunda Guerra Mundial, a Guerra Civil espanhola (1936-1939). Todos eles se engajaram ao lado dos republicanos espanhois (comunistas, socialistas e anarquistas) contra os fascistas do general Francisco Franco. Depois, esses intelectuais seguiram caminhos políticos diversos, mas sempre se mantiveram fieis à causa antifascista.

Jorge Semprún, escritor e político

Jorge Semprún nasceu em Madri em 1923, mas viveu a maior parte de sua vida na França. Ele foi descrito como “o mais espanhol dos escritores franceses e o mais francês dos escritores espanhois”. Filho de um político liberal republicano que fora obrigado a se exilar na França, Semprún entrou para a Resistência Francesa em 1942, depois de ter ingressado no Partido Comunista Espanhol (PCE). Preso pela Gestapo no ano seguinte, foi internado no campo de concentração de Buchenwald, onde participou ativamente da resistência. Seus melhores livros (A Longa Viagem, Um Belo Domingo, A escrita ou a vida) são reflexões dolorosas dessa experiência-limite dos campos. Se no estreante A Longa Viagem Semprún é um tanto romântico ao contrapor a liberdade moral do prisioneiro à prisão moral do soldado do campo, em Um Belo Domingo ele revela a “escolha de Sofia” dos resistentes como ele, que eram recrutados pelas SS para trabalhar no Arbeitsstatisk (departamento de estatística) de Buchenwald – o que significava poder de escolha sobre quem deveria morrer e quem deveria sobreviver. Por um lado, essa era uma oportunidade para preservar os quadros da resistência; mas por outro significava participar do macabro mecanismo de terror e morte montado pelos nazistas. 

Ao ser libertado, Semprún continuou atuando como militante e depois liderança do Partido Comunista Espanhol, sob o pseudônimo de Federico Sánchez. Em 1964, ele e Fernando Claudín – autor de uma obra notável sobre a III Internacional – foram expulsos do partido por defenderem uma linha reformista, rejeitando a luta armada. Linha, aliás, que seria adotada pelo PCE 13 anos depois, sem nenhuma autocrítica, no processo de redemocratização da Espanha. Essa ruptura política posteriormente levaria Semprún a se tornar um dos maiores críticos do stalinismo, do totalitarismo soviético e das idiossincrasias dos PCs.

O ajuste de contas com seu passado, longo e tortuoso, foi brilhantemente descrito no livro Autobiografia de Federico Sánchez (1977). O desmonte de mitos stalinistas como Dolores Ibarruri (La Pasionaria) e Santiago Carrillo é devastador. Para mim, pessoalmente, esse livro foi fundamental para consolidar a ruptura com a ortodoxia marxista e adotar posições de esquerda democrática. O ajuste de contas de Semprún o levaria a abraçar as políticas neoliberais do PSOE - um fenômeno comum na Europa dos anos 1980 e 1990. Mas ele jamais perdeu a dimensão humanista e iluminista, tampouco se bandeou para a direita, como alguns "novos filósofos" franceses.

Semprún se tornaria mais conhecido pelos filmes dos quais foi roteirista: Z (1967), A Confissão (1970) e Sessão Especial de Justiça (1974), do diretor grego Konstantin Costa-Gravas); A Guerra Acabou (1966) e Stavisky, o grande jogador (1974), do francês Alain Resnais e Las Rutas del Sur (1978), de Joseph Losey. Um de seus grandes sucessos literários foi A Segunda Morte de Ramón Mercader, sobre o assassino de Leon Trotsky. Em 1988, Semprún foi nomeado ministro da Cultura do governo socialista de Felipe González, da Espanha. Sua experiência governamental foi narrada no livro Saudações de Federico Sánchez, no qual ele desnuda o homem-forte do governo de Felipe González, Alfonso Guerra, uma espécie de José Dirceu avant la lettre.


A meu ver, a descrição mais densa da experiência de Jorge Semprún de ter vivido o invivível dos campos da morte está nas páginas de A Escrita ou a Vida:

Os fornos crematórios do campo de Buchenwald

“Pode-se imaginar Léon Blum, naquelas noites. De primavera, provavelmente: janelas abertas para o ar fresco da primavera que chegara, para os eflúvios da natureza. Momentos de nostalgia, de vazio na alma, na dilacerante incerteza da vida nova. E de repente, levado pelo vento, o estranho cheiro. Adocicado, insinuante, com relentos acres, propriamente repugnantes. O cheiro insólito, que se revelaria ser do forno crematório.

Estranho cheiro. Na verdade, obsessivo. [...]

Haverá sobreviventes, com certeza. Eu, por exemplo. Eis-me aqui, sobrevivente de serviço, oportunamente surgido diante daqueles três oficiais de uma missão aliada para contar-lhes a fumaça do crematório, o cheiro de carne queimada sobre o Ettersberg, as chamadas sob a neve, as corvéias mortais, o esgotamento da vida, a esperança inesgotável, a selvageria do animal humano, a grandeza do homem, a nudez fraterna e devastada do olhar dos companheiros”.

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