Há 25 anos, morria em Genebra o escritor argentino Jorge Luis Borges, um dos maiores gênios literários de língua espanhola – jamais contemplado com um Nobel de Literatura. Sua obra, segundo Bella Jozsef, abrange o “caos que governa o mundo e o caráter de irrealidade em toda a literatura”. Abaixo, selecionei trechos de contos de dois de seus livros (Ficções e o Aleph).
“Ser imortal é insignificante; com exceção do homem, todas as criaturas osão, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível é saber-se imortal. Tenho notado que, apesar das religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a veneração que tributam ao primeiro século prova que só crêem nele, já que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou a castigá-lo. Mais razoável me parece a roda de certas religiões do Industão; nessa roda, que não tem princípio nem fim, cada vida é efeito da anterior e gera a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto… Doutrinada num exercício de séculos, a república de homens imortais atingira a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que em um prazo infinito ocorrem a todo homem todas as coisas. Por suas passadas ou futuras virtudes, todo homem é credor de toda bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar, os números pares e os números ímpares tendem ao equilíbrio, assim também se anulam e se corrigem o talento e a estupidez, e talvez o rústico poema de Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto das Éclogas ou por uma sentença de Heráclito. O pensamento mais fugaz obedece a um desenho invisível e pode coroar, ou inaugurar, uma forma secreta. Sei dos que praticavam o mal para que nos séculos futuros resultasse o bem, ou tivesse resultado nos já pretéritos… Encarados assim, todos os nossos atos são justos, mas também são indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível seria não compor, sequer uma vez, a Odisséia. Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma fatigante maneira de dizer que não sou.”
Jorge Luis Borges, O Imortal, in O Aleph (1949)
Judas, de Leonardo da Vinci |
[...]
O Beijo de Judas, de Caravaggio |
“O asceta, para maior glória de Deus, envilece e mortifica a carne; Judas fez o mesmo com o espírito. Renunciou à honra, ao bem, à paz, ao reino dos céus, como outros, menos heroicamente, ao prazer. Premeditou com lucidez terrível suas culpas. Do adultério costumam participar a ternura e a abnegação; do homicídio, a coragem; das profanações e da blasfêmia, certo fulgor satânico. Judas elegeu aquelas culpas que não são visitadas por nenhuma virtude: o abuso de confiança (João 12:6) e a delação. Trabalhou com gigantesca humildade, creu-se indigno de ser bom. Paulo escreveu: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor (1 Coríntios 1:31); Judas buscou o inferno, porque a felicidade do Senhor lhe bastava. Pensou que a felicidade, como o bem, é um atributo divino que não devem usurpar os homens. Ele estava no mundo e o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu.”
Jorge Luis Borges, Três versões de Judas, in Ficções (1944)
“Devo a conjunção de um espelho e de uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar. O espelho inquietava o fundo de um corredor numa quinta da Rua Gaona, em Ramo Mejía; a enciclopédia falazmente se chama The Anglo-American Cyclopedia (New York, 1917) e é uma reimpressão literal, mas também tardia, da Encyclopedia Britannica de 1902. O acontecimento ocorreu faz uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo naquela noite e demorou-nos uma vasta polêmica sobre a elaboração de um romance na primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições, que permitissem a poucos leitores - a muito poucos leitores - a adivinhação de uma realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. Descobrimos (na noite alta esta descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número de homens. Perguntei-lhe a origem dessa memorável sentença e ele me respondeu que The Anglo-American Cyclopedia a consignava, em seu artigo sobre Uqbar. A quinta (que havíamos alugado mobiliada) possuía um exemplar dessa obra. Nas últimas páginas do volume XLVI achamos um artigo sobre Upsala; nas primeiras do XLVII, um sobre Ural-Altaic Languages, mas nem uma palavra a respeito de Uqbar. Bioy, um pouco perturbado, consultou os volumes do índice. Esgotou em vão todas as lições imagináveis: Ukbar, Ucbar, Ooqbar, Ouqbahr... Antes de sair, explicou-me que era uma região do Iraque ou da Ásia menor. Confesso que assenti com certo mal-estar. Conjeturei que esse país indocumentado e esse heresiarca anônimo eram uma ficção improvisada pela modéstia de Bioy para justificar um frase. O exame estéril de um dos Atlas de Justus Perthes fortaleceu minha dúvida.
Jorge Luis Borges, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, in Ficções (1944)
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