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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A VITIMIZAÇÃO QUE LEGITIMA A CENSURA


Gisele Bünchen
A Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal pediu ao Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) a suspensão de uma peça publicitária da fabricante de lingerie Hope na qual a modelo Gisele Bünchen aparece primeiro usando roupas normais e depois apenas vestindo lingerie para contar ao marido que bateu o carro. "Você é brasileira, use seu charme", diz a peça. Para a secretaria, o anúncio “reforça o estereótipo equivocado da mulher como objeto sexual de seu marido e ignora os grandes avanços alcançados para desconstruir práticas e pensamentos sexistas”.

Por trás desse palavrório pseudo-progressista está a tentativa pura e simples de censura. Não está aqui em discussão o conteúdo da peça publicitária ("a massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa", dizia George Orwell), mas a tentativa de proibir veiculações de propaganda sob alegação de “proteção” à mulher. Aconteceu a mesma coisa ano passado com uma propaganda da cerveja Devassa com a participação de Paris Hilton. Como se mulheres emancipadas não fossem capazes de ignorar, xingar ou achar engraçada ou ridícula uma peça publicitária na qual aparecem como “objeto sexual”. Não, elas são coitadinhas que precisam ser protegidas contra os malvados machistas. Na falta de uma política que combata os problemas reais que as mulheres enfrentam – a violência doméstica, a discriminação profissional e o assédio sexual no trabalho – o governo vem com essa patasquada censória e moralista. 


O pano de fundo de tudo isso chama-se "cultura da reclamação", que é o estágio inicial da "cultura da vitimização". Por meio desta, supostos porta-vozes de segmentos da população – religiosos, étnicos, nacionais, raciais, mulheres, homossexuais etc. –, declaram-nos vitimados. Segundo o prof. Teixeira Coelho, a conseqüência disso é a confusão entre a discriminação cotidiana sofrida pelo indivíduo ou grupo no universo da cidadania e a alegada discriminação cultural ou estética contra eles exercida por meios de expressão. “Faz parte da cultura da lamentação a demanda da abolição dos cânones de gosto, dos critérios de qualidade e competência e dos juízos de valor: um certo filme ou romance é bom porque seu autor é, foi ou teria sido vítima de uma opressão racial, sexual ou religiosa e não por este ou aquele fator específico e intrínseco à produção cultural. Esta cultura levou a uma outra, a do politicamente correto, descrita por (Robert) Hughes como a cultura da ênfase no ego, uma cultura da cidadania infantilizada segundo a qual os direitos pairam acima dos deveres e destes estão desligados.” Em outras palavras, o problema, para essa postura, não é a realidade, mas o discurso. 



Essas diferentes “culturas” fazem parte de um fenômeno maior, o chamado multiculturalismo, que ganhou corpo nos anos 1970 como uma resposta “progressista” à situação de discriminação da massa de imigrantes nos países ocidentais, cujas origens estão na antropologia estrutural de Lévi-Strauss. O multiculturalismo nasceu como uma ideia generosa, com o objetivo de fazer com que as minorias étnicas e religiosas se sentissem mais valorizadas e respeitadas em países estranhos aos seus, tornando-se capazes de se integrar à sociedade em que viviam. O multiculturalismo afirmava a especificidade cultural dessas minorias e dava dignidade à diferença. Num primeiro momento, essa política atingiu seus objetivos; os países ocidentais se tornaram um ambiente mais aberto, diversificado e cosmopolita.

Ayaan Harsi Ali
Mas logo o multiculturalismo mostrou sua outra face e transformou-se em seu oposto, trocando a integração pela segregação; não apenas permitiu, como estimulou a separação de grupos étnicos e culturais, rejeitando qualquer forma de integração. Em nome da tolerância e da diferença, reproduziu-se a prática colonialista: criaram-se verdadeiros “bantustões” – os enclaves negros criados na África do Sul pelo apartheid –, só que com sinal trocado. As sociedades dominadas pelo multiculturalismo, supostamente mais civilizadas, tornaram-se mais hostis, fragmentadas e intolerantes.

Veja-se o exemplo de Ayaan Harsi Ali, a imigrante somali que virou deputada europeia na Holanda. Ela se viu acusada de fazer causa comum com a direita por denunciar as tradições religiosas reacionárias de seu clã islâmico, confortavelmente garantidas na Holanda pelas leis politicamente corretas do país. Segundo uma ótica pseudo-progressista, ela tinha que aceitá-las porque eram parte integrante da “sua cultura”. O subtexto é que os direitos humanos são um artigo exclusivo de ocidentais brancos e cristãos.  

Chinua Achebe
Não por acaso, um dos maiores escritores vivos, o nigeriano Chinua Achebe, autor, entre outros, de O Mundo se Despedaça, traça um vigoroso retrado das mazelas da herança colonial na África sem recorrer ao recurso fácil e enganoso da vitimização.   

A liberdade de expressão está ameaçada por esse comportamento culturalmente policialesco que se multiplica em vários países democráticos com sentimento de culpa pelo passivo colonial. E nós, sem essa herança maldita, copiamos esse comportamento. Essa combinação entre o politicamente correto e o separatismo étnico-religioso está destruindo os laços cívicos da sociedade civil e reproduzindo subrepticiamente os valores do colonizador. Grupos religiosos transformam-se em grupos de pressão; boicotes e campanhas políticas estão contaminando a atividade política; a cultura divide-se em sistemas de crenças que eliminam o discurso civil e impossibilitam o debate racional. A prática política está sendo ser abandonada em favor de atitudes midiáticas. É a uma mistura das distopias de Orwell e Huxley. 









 

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A CASA GRANDE ESTÁ INDÓCIL


Um argentino sai em defesa de Lula, que a oligarquia tupiniquim não engoliu, não engole e jamais engolirá

Escravocratas contra Lula

Por Martín Granovsky, no Página 12

"Isso não pode! Não pode ser! Assim não dá!"

Podem pronunciar “sians po”. É, mais ou menos, a fonética de ciências políticas. Basta dizer Sciences Po para aludir ao encaixe perfeito de duas estruturas, a Fundação Nacional de Ciências Políticas da França e o Instituto de Estudos Políticos de Paris.

Não é difícil pronunciar Sians Po. O difícil é entender, a esta altura do século 21, como as ideias escravocratas continuam permeando a gente das elites sul-americanas.

Hoje à tarde, Ruchard Descoings, diretor do Sciences Po, entregará pela primeira vez o doutorado Honoris Causa a um latino-americano: o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio “Lula” da Silva. Falará Descoings e falará Lula, claro.

Para bem explicar sua iniciativa, o diretor convocou uma reunião em seu escritório da rua Saint Guillaume, muito perto da igreja de Saint Germain des Pres, em um prédio de onde se pode ver as árvores com suas folhas amareladas. Enfiar-se na cozinha é sempre interessante. Se alguém passa por Paris para participar de duas atividades acadêmicas, uma sobre a situação política argentina e outra sobre as relações entre Argentina e Brasil, não fica mal entrar na cozinha do Sciences Po.

Pareceu o mesmo à historiadora Diana Quattrocchi Woisson, que dirige em Paris o Observatório sobre a Argentina Contemporânea, é diretora do Instituto das Américas e teve a ideia de organizar as duas atividades acadêmicas sobre Argentina e Brasil, das quais também participou o economista e historiador Mario Rapoport, um dos fundadores do Plano Fenix faz 10 anos.


Naturalmente, para escutar Descoings foram chamados vários colegas brasileiros. O professor Descoings quis ser amável e didático. O Sciences Po tem uma cátedra sobre o Mercosul, os estudantes brasileiros vem cada vez mais à França, Lula não saiu da elite tradicional do Brasil, mas chegou ao nível máximo de responsabilidade e aplicou planos de alta eficiência social.

Um dos colegas perguntou se era o caso de se premiar a quem se orgulhava de nunca ter lido um livro. O professor manteve sua calma e deu um olhar de assombrado. Quiçá sabia que esta declaração de Lula não consta em atas, embora seja certo que Lula não tem um título universitário. Também é certo que quando assumiu a presidência, em primeiro de janeiro de 2003, levantou o diploma que é dado aos presidentes do Brasil e disse: “Uma pena que minha mãe morreu. Ela sempre quis que eu tivesse um diploma e nunca imaginou que o primeiro seria de presidente da República”. E chorou.


“Por que premiam a um presidente que tolerou a corrupção?”, foi a pergunta seguinte.

O professor sorriu e disse: “Veja, Sciences Po não é a Igreja Católica. Não entra em análises morais, nem tira conclusões apressadas. Deixa para o julgamento da História este assunto e outros muito importantes, como a eletrificação das favelas em todo o Brasil e as políticas sociais”. E acrescentou, citando o Le Monde: “Que país pode medir moralmente a outro, nos dias de hoje? Se não queremos falar sobre estes dias, recordemos como um alto funcionário de outro país renunciou por ter plagiado a tese de doutorado de um estudante”. Falava de Karl-Theodor zu Guttenberg, ministro da Defesa da Alemanha até que se soube do plágio.

Disse também: “Não desculpamos, nem julgamos. Simplesmente não damos lições de moral a outros países”.


Outro colega perguntou se era bom premiar a alguém que uma vez chamou de “irmão” a Muamar Khadafi.

Com as devidas desculpas, que foram expressas ao professor e aos colegas, a impaciência argentina me levou a perguntar onde Gaddafi tinha comprado suas armas e qual país refinava seu petróleo, além de comprá-lo. O professor deve ter agradecido que a pergunta não citava, com nome e sobrenome, a França e a Itália.


Descoings aproveitou para destacar em Lula “o homem de ação que modificou o curso das coisas” e disse que a concepção da Sciences Po não é de um ser humano dividido entre “uns ou outros”, mas como “uns e outros”. Enfatizou muito o et, e em francês.

A Sciences Po vê o que a nossa oligarquia não vê 
Diana Quattrocchi, como latino-americana que estudou e fez doutorado em Paris depois de sair de uma prisão da ditadura argentina graças à pressão da Anistia Internacional, disse que estava orgulhosa de que a Sciences Po dava um título Honoris Causa a um presidente da região e perguntou sobre os motivos geopolíticos.

“Todo o mundo se pergunta”, disse Descoings. “E temos de escutar a todos. O mundo nem sequer sabe se a Europa existirá no ano que vem”.


No Sciences Po, Descoings introduziu estímulos para que possam ingressar estudantes que, se supõe, tem desvantagem para conseguir aprovação no exame. O que se chama de discriminação positiva ou ação afirmativa e se parece, por exemplo, com a obrigação argentina de que um terço das candidaturas legislativas deve ser de mulheres.

Outro colega brasileiro perguntou, com ironia, se o Honoris Causa de Lula era parte da política de ação afirmativa do Sciences Po.

Descoings o observou com atenção antes de responder. “As elites não são apenas escolares ou sociais”, disse. “Os que avaliam quem são os melhores, também. Caso contrário, estaríamos diante de um caso de elitismo social. Lula é um torneiro mecânico que chegou à presidência, mas pelo que entendi foi votado por milhões de brasileiros em eleições democráticas”.

Como Cristina Fernández de Kirchner e Dilma Rousseff na Assembleia Geral das Nações Unidas, Lula vem insistindo que a reforma do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial está atrasada. Diz que estes organismos, assim como funcionam, “não servem para nada”. O grupo BRICs (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul) ofereceu ajuda à Europa. A China tem os níveis de reservas mais altos do mundo. Em um artigo publicado no El Pais, de Madrid, os ex-primeiros ministros Felipe González e Gordon Brown pediram maior autonomia para o FMI. Querem que seja o auditor independente dos países do G-20, integrado pelos mais ricos e também, da América do Sul, pela Argentina e Brasil. Ou seja, querem o contrário do que pensam os BRICs.

As elites brasileiras têm nostalgia dessa época 

Em meio a esta discussão Lula chegará à França. Convém que saiba que, antes de receber o doutorado Honoris Causa da Sciences Po, deve pedir desculpas aos elitistas de seu país. Um trabalhador metalúrgico não pode ser presidente. Se por alguma casualidade chegou ao Planalto, agora deveria exercer o recato. No Brasil, a Casa Grande das fazendas estava reservada aos proprietários de terra e escravos. Assim, Lula, silêncio por favor. Os da Casa Grande estão irritados.





terça-feira, 27 de setembro de 2011

A BARBÁRIE SAUDITA NÃO DÁ IBOPE. SE FOSSE O IRÃ...


Elas bem que tentaram, mas foram impedidasde dirigir

Um tribunal da Arábia Saudita condenou uma mulher a receber dez chibatadas por desrespeitar a lei interna que proíbe mulheres de dirigirem, informa a rede britânica BBC. A condenada, identificada apenas por Shema, foi considerada culpada por dirigir na cidade de Jeddah em julho deste ano.
De acordo com a BBC, nos últimos meses, diversas sauditas apareceram dirigindo pelas ruas do país numa tentativa de pressionar a monarquia a mudar a regra, ainda sem sucesso. Duas outras mulheres devem comparecer à corte ainda neste ano por dirigirem.

George Orwell não ficaria surpreso com isso
A Arábia Saudita é uma das piores ditaduras da face da Terra. Trata-se de uma teocracia fundamentalista sunita que viola sistematicamente os direitos humanos, mas pouca gente se importa com isso. O país tem uma polícia religiosa, a Muttawa, que é responsável por reprimir credos e costumes que violem a lei islâmica. Seus agentes prendem e torturam pessoas que façam proselitismo de religiões não-oficiais. E o Estado saudita admite a tortura e as violações de direitos humanos como prática normal. Realiza amputação de mãos, chibatadas e decapitações em praça pública. Quase ninguém fica indignado, em parte porque poucos sabem disso. Se fosse o Irã, que também é uma teocracia mas está do "lado errado" do xadrez geopolítico, já estaria sendo bombardeado pela OTAN.  

As mulheres sauditas são consideradas, por lei, menores de idade. Não podem andar sozinhas, falar com homens que não sejam da família, exibir o corpo, abrir conta em banco ou ter passaporte. Para tudo, precisam da permissão de um homem (pai, irmão, marido e até do filho).

As chibatadas são aplicadas em público
“Em novembro de 2007, uma jovem de 19 anos, estuprada por sete homens, foi condenada a 200 chicotadas e seis meses de prisão por estar num carro com um amigo. Isso gerou protestos até do governo americano." (O Globo, 31/05/2009). Pressionado, o rei Abdullah perdoou. Mas e os casos que não vieram e não vêm à tona?

A Arábia Saudita pratica uma interpretação fundamentalista do Islã sunita, conhecida como wahhabismo. A religião dita cada aspecto da vida: a forma como as mulheres se vestem, como os homens se portam, o que comem.

Tudo isso é ignorado pela grande mídia porque os sauditas são os maiores produtores de petróleo do mundo e, sobretudo porque são um dos maiores aliados árabes dos EUA no Oriente Médio.

Por isso, quando o rei saudita anuncia que permitirá o direito das mulheres votarem e serem votadas a partir de 2015, grande parte da mídia colonizada fica embasbacada, falando em "reformas" e abertura democrática. Esquecem-se, inclusive, de lembrar que na Arábia Saudita as únicas eleições permitidas são para os conselhos consultivos municipais, sem nenhum poder.   

Quosque tandem?(Até quando)?

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

AS AVENTURAS DO ILUMINISMO

Uma belíssima narrativa desses tempos sombrios e venturosos e de sua herança Iluminista, pelo grande jornalista Mauro Santayana:

Em busca da razão perdida - Mauro Santayana

Sandro Boticelli, O Nascimento de Vênus, obra-prima do Renascimento 

O presente sempre angustiou os homens, desde que há registros históricos, e sempre houve os que temiam o futuro, tanto quanto os que nele punham a esperança da espécie. Da mesma forma, não faltaram, e ainda não faltam, os que sonham com o retorno à improvável Idade do Ouro, que permanece arraigada na alma dos homens, e encontra a sua versão mais radical dentro das fronteiras do paraíso bíblico.


Sofrer e sonhar, esperar e temer, lutar e resistir, são as condições que o ato de viver nos impõe. A vida não é projeto dos deuses, nem condenação cósmica. A vida é feita pelos homens, e só por eles, e a história, com seus acertos e desatinos, não é bruxa, nem fada: ela é decidida, em cada minuto, pela vontade dos homens e pelos fatos que essa vontade determina.

O que torna mais pesada a angústia de nosso tempo é a magnitude dos problemas sociais. O mundo inflou nestes últimos 200 anos, com o consumo exacerbado dos bens não renováveis, pelo menos de acordo com os nossos conhecimentos atuais, e suas conseqüências. Uma coisa é resultado da outra: as descobertas científicas tornaram mais fácil a exploração da natureza e o aumento da população, mediante o aprimoramento da medicina, melhor nutrição, mais conforto. Infelizmente, tais conquistas da inteligência não se fizeram universais. A fome e as endemias convivem com a ostentação e o luxo dos muito ricos. Embora em certas regiões do mundo a miséria seja estatisticamente maior, não há cidade imune da qual o sofrimento insuportável tenha sido expulso. Enquanto um só ser humano não tiver direito ao pão de seu dia, à dignidade de um teto para a noite, ao respeito de seu semelhante, o mundo continuará sendo inóspito.

Jules Michelet

Assim como, no século XVIII, alguns pensadores discutiam o envelhecimento das idéias do Renascimento (embora o termo só viesse a ser criado por Michelet bem depois, em meados do século XIX), há algumas décadas que o Iluminismo vem sendo analisado por autores importantes. Alguns pensadores marxistas encontram, em seus postulados, os germes do totalitarismo, ao mesmo tempo em que os nazistas e os fascistas continuam a atribuir à Revolução Francesa (que foi a sua expressão política), a origem das idéias, que consideram desprezíveis, como as da igualdade, da liberdade e da imperfeita democracia moderna.


Seria bom que retornássemos ao Iluminismo, e examinássemos seus acertos e suas falhas. Conseqüência natural do Renascimento, o Iluminismo foi um dos grandes momentos da inteligência dos homens. Ele se iniciara no século XVII, e estava associado ao crescimento da burguesia como classe emergente e aspirante ao domínio político dos Estados europeus. Antes que os franceses lhe dessem o grande impulso com a publicação da Enciclopédia, obra titânica do esforço pessoal de Diderot, o Iluminismo já crescia com os ingleses Milton, Locke, Hobbes, que associaram suas inquietações humanísticas aos projetos políticos, sem os quais a filosofia é inútil diversão da mente.

Se fosse possível resumir o sumo da razão do Iluminismo, talvez a encontrássemos ainda no século XVII, com a frase linear de Spinoza, quando, em seu Tratactus Theologico-Politicus, diz que, ao examinar a vida, o comportamento e as crenças humanas, é necessário non ridere, non lugere, neque detestare, sed intelligere. Não devemos rir, nem lamentar ou detestar, mas entender. O Iluminismo, ao separar a inteligência da fé e distinguir a ciência - ou seja, o conhecimento - da religião, foi a busca do entendimento, o retorno à filosofia prática dos grandes gregos.

Niccolò Machiaveli

A inteligência, tanto no Renascimento, quanto no Iluminismo, esteve a serviço da política, em seu melhor e em seu pior sentido. É provável que a exaustão da inteligência, que encontrou o momento alto na Idade Moderna com a Enciclopédia e os excelsos pensadores do século XVIII, seja responsável pela assustadora crise dos Estados contemporâneos. No Renascimento, os príncipes se cercavam de intelectuais, os uomini d’ingegnio, como foram Dante e Da Vinci, da mesma forma que buscavam seus chefes militares, os condottieri, entre eles, Castruccio Castracani, um dos modelos de Maquiavel, e os lendários Sforza. Durante o Iluminismo, os pensadores não estiveram perto do trono, porque eles estavam, como servidores da razão, contra o Estado absolutista, principalmente na França dos últimos luízes.

Para entender a anemia política dos Estados de nosso tempo, é necessário examinar o desengajamento da maioria dos intelectuais de hoje, sem esquecer que a própria inteligência se encontra em crise.

As grandes revoluções humanas não surgem espontaneamente. Elas, de certa forma, existem como possibilidade desde o início da História, mas são contidas pelas forças reacionárias. As idéias que as suscitam permanecem latentes, na obra de um ou outro pensador, seja nos ensaios, no teatro, nas narrativas épicas ou na poesia. Em alguns momentos, ganham força, mediante a discussão e o debate, e triunfam, mesmo que, algumas vezes, de forma efêmera.

As idéias, sem embargo de sua energia própria, dependem da ação. Os intelectuais, dizia, sem muita justiça, um dos precursores do Iluminismo, Erasmo de Rotterdam, são naturalmente medrosos. Isso só é válido para uma minoria, e de menor dimensão. A regra tem sido outra. Foram numerosos os homens de pensamento que tombaram em pleno combate, nas prisões ou nas terríveis condições da clandestinidade. Sem ir longe no passado, o século XX foi exemplar nessa necessidade da inteligência em se fazer ação, como ocorreu na na memorável resistência contra os nazistas, os fascistas e os franquistas – e na luta pela autodeterminação dos povos contra o totalitarismo imperialista. A política é a práxis da razão, e, sem ela, o pensamento permanece encapsulado na teoria, ou, seja, na contemplação.

O grande motor do século XIX, o do fulgor do Iluminismo, foi L’Enciclopédie, Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers. Tratou-se de uma empresa, que nasceu com o interesse comercial de editores franceses - chefiados pelo maior deles, na época, Le Breton - empenhados na tradução da Cyclopaedia, dicionário universal inglês de Ephraim Chambers. Le Breton convidou D’Alembert e Diderot para a tarefa. Ambos entenderam que não bastava a tradução de um dicionário que, circulando desde 1728, já se encontrava perempto, e se limitava a uma erudição de natureza clássica, distanciada das inquietações práticas de 1747. Se o dicionário de Chambers tratava das artes e das ciências, Diderot acrescentou, para a sua enciclopédia, os verbetes sobre os ofícios profissionais. Dedicou grande parte às ilustrações, que, sobretudo no caso dos ofícios, contribuíram para que a obra servisse como manual de instruções.

D'Alambert

Perseguida pela Igreja, uma vez que era essencialmente materialista, e incluída no Índex; mal vista pela monarquia, por reivindicar as liberdades políticas, a Enciclopédia passou por inúmeras dificuldades e chegou a ser proibida. Diderot foi preso por algum tempo, D’Alembert desistiu de ser o co-editor, a partir do volume oitavo, e os últimos tomos foram impressos e distribuídos clandestinamente. O custo era altíssimo. Quando relembramos que a composição, tipo por tipo, era manual, e as chapas, armadas uma a uma, em operação demorada, podemos imaginar o dinheiro necessário apenas para o trabalho tipográfico. Mais de dois mil gráficos trabalharam durante os vinte e um anos de edição, transcorridos entre o primeiro e o último dos 28 volumes, 11 deles só de ilustrações.

Denis Diderot

A Enciclopédia foi empreendimento revolucionário, e disso Diderot tinha plena consciência. A publicação serviu para derrubar os pilares do poder feudal de uma nobreza ociosa e parasitária, que consumia a maior parte dos recursos obtidos com o trabalho dos franceses; serviu como fermento da Revolução Francesa e a derrocada da monarquia; combateu a Igreja, que, sócia privilegiada da opressão e monitora do pensamento, ameaçava os intelectuais com os dogmas e mantinha os néscios submissos, mediante a ameaça do inferno. Como as luzes vinham de várias fontes, Diderot escolheu para o subtítulo da obra a trilogia do inglês Francis Bacon, que assim resumia as operações da mente: Memória, Razão e Imaginação.


Diderot foi mais do que seu diretor intelectual. Coube-lhe buscar os subscritores – o que representava para cada um deles a aplicação de uma pequena fortuna – entre os ricos mais esclarecidos, os pioneiros da indústria e do comércio e alguns banqueiros, como o mais eminente financista de Paris, Jacques Necker, que viria a ser a figura chave na Queda da Bastilha. Durante muito tempo, os enciclopedistas foram acolhidos no salão de Madame Necker, onde as novas idéias eram livremente debatidas.


O autor de A Religiosa agiu, ao mesmo tempo, como pensador, militante político e ativo empreendedor. Usando recursos que hoje encontramos na internet, como a remissão dos assuntos a outros verbetes, a inclusão das fontes de informação e referências bibliográficas, o que hoje chamamos de hyperlink. O texto incitava à ampliação crítica da informação, com o fantástico resultado que a História registra. E a empreitada fascinou todos os que a ela se associaram. O caso mais notável desse empenho foi o de Louis de Jacourt, um intelectual muito rico e de grande saber, que se formara em teologia, em Genebra, ciências naturais em Cambridge e medicina, em Leiden, na Holanda. Jacourt, sozinho, redigiu um quarto de todos os verbetes da Enciclopédia, sem cobrar um centavo pelo seu trabalho. Ao contrário, contratou vários assessores, que o ajudaram na exaustiva pesquisa daqueles tempos, e lhes pagou com seu próprio dinheiro.


Mesmo quando sua distribuição teve que ser clandestina, a Enciclopédia era discutida em todos os salões. Suas idéias estimularam o aparecimento de novos pensadores, que se somaras à elite da razão daquele tempo, formada por homens muitos deles nobres, como foram como Montesquieu, Grimm e Holbach. Eles se somaram a livres pensadores, como Voltaire, D’Alembert, Condorcet, Daubeton, Rousseau, Turgot e Quesnay, e a mulheres como Mme. D’Epinay, Sophie Volland, Mme Necker – e a notável proteção financeira a Diderot, de Catarina, a imperatriz da Rússia, para abrir o caminho do século seguinte.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

UMA TERRA, DOIS POVOS


Palestinos festejam o discurso de Abbas na ONU 
No dia em que os palestinos solicitam à ONU o reconhecimento do Estado palestino, nada melhor do que publicar um texto de Martin Buber (1878-1965), teólogo e filósofo judeu respeitadíssimo, expoente do sionismo mas acima de tudo um humanista, defensor da transformação de Israel em um Estado binacional árabe-judaico, autor de Caminhos da Utopia e Uma Terra, dois povos, entre outros.

“Quando nós, os judeus, retornamos à Terra Santa depois de muitas centenas de anos, agimos como se essa terra estivesse vazia, sem habitantes. Pior ainda: agimos como se o povo que estava ali não nos afetasse, como se não fosse preciso lidar com ele, como se aquele povo não nos enxergasse. Mas eles nos enxergam. Ainda assim, não prestamos atenção a isso. Não admitimos que existe apenas um caminho: formar uma parceria séria com esse povo, o envolvendo de forma sincera na construção da nossa terra, cedendo uma parte de nosso trabalho e também compartilhando os frutos desse trabalho. Ao invés disso, temos jovens na comunidade judaica que gostam de pensar que são iguais a Sansão. Eles acham que colocar minas no caminho de veículos de inocentes e indefesos não-judeus é algo parecido com as façanhas do antigo herói.

Martin Buber
Creio que não haja ninguém entre nós que enxergue algum desses assassinos como um Sansão contemporâneo. Por quê? Porque o verdadeiro Sansão lutou frente a frente contra um grupo bem armado e que era maioria. Mais ainda: porque o terrorismo não é uma forma legítima de travar a guerra. E nossa atitude em relação aos árabes? Quase todos nós sabemos distinguir entre os terroristas árabes e o povo árabe. Mas não esperem que os árabes sejam capazes de distinguir entre nossos assassinos e o povo judeu por muito mais tempo. Nesse contexto, como chegar a um entendimento com os árabes? É verdade que há aqueles entre nós que consideram tal entendimento desnecessário e até prejudicial. Mas só os políticos que mais se iludem podem imaginar que nossa comunidade existirá para sempre sem o entendimento e a cooperação com os árabes.”
(este texto é de 1946)
[...]


“Lançamos mão das posições chave da economia do país sem compensar a população árabe, o que quer dizer que não lhes concedemos uma quota, quer no capital, quer no trabalho relativo à nossa atividade econômica. Pagando aos proprietários mais abastados o preço de terras adquiridas ou pagar rendas aos locatários de outras não é o mesmo que compensar todo o povo de um país. Como consequência, muitos dos árabes mais avisados entenderam o avanço dos assentamentos judaicos como uma espécie de conjura para privar as gerações futuras do seu povo da terra necessária para a sua existência e desenvolvimento. Somente mediante uma política econômica vigorosa e abrangente, dirigida à organização e desenvolvimento de interesses comuns teria sido possível contrariar esse ponto de vista e as respectivas consequências. Foi isso o que não fizemos.”

Este texto, escrito também por volta do fim dos anos 1940 e início dos anos 1950, poderia ter sido escrito hoje. Não é à toa que Martin Buber é muito pouco lembrado hoje em dia em Israel. 

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

QUAL SERÁ O PRÓXIMO QUE ESCAPOU DE NUREMBERG?

Depois do livro que revelou que a estilista francesa Coco Chanel era espiã nazista, descobre-se que Hugo Boss apoiava o regime implantado na Alemanha por Adolf Hitler. Quem mais faltou no tribunal de Nuremberg?
Anúncio de 1933 da Hugo Boss oferece uniformes para nazistas


Abaixo, reproduzo notícia publicada pelo site operamundi:

"Hugo Boss admite que criador da grife apoiou nazismo


A grife de roupas alemã Hugo Boss admitiu que o criador da marca, Hugo Ferninand Boss, apoiou o líder nazista Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Além disso, a empresa pediu desculpas às pessoas que foram maltratadas em uma fábrica que produzia uniformes militares.


A revelação do passado nazista da Hugo Boss foi feita pelo historiador Roman Koester, que acabou de lançar o livro Hugo Boss, 1924-45, autorizado pela companhia alemã. Logo após a divulgação das informações, a grife emitiu um comunicado se desculpando e ressaltando seu "mais profundo pesar com aqueles que sofreram danos durante trabalhos forçados na empresa de Hugo Ferdinand Boss".

Boss integrou o Partido Nacional Socialista em 1931 e os pedidos por uniformes do partido salvaram sua fábrica da falência, revela a publicação de Koester. De acordo com o pesquisador, a fábrica empregou 140 trabalhadores forçados, em sua maioria mulheres. Outros 40 prisioneiros de guerra franceses trabalharam para a companhia de outubro de 1940 a abril de 1941.


Koester afirmou que os documentos investigados, em sua maioria disponibilizados pela própria empresa, demonstram que o fundador da Hugo Boss era um nazi convencido: "Não somente apoiou o partido, já que conquistou diversos contratos para a produção de uniformes militares, mas estava totalmente integrado com o movimento político".


O historiador disse que a ideologia do Terceiro Reich foi "assimilada profundamente pelo proprieitário da empresa, tanto que as condições de trabalho dos próprios trabalhadores eram trágicas". Após a Segunda Guerra Mundial, Hugo Ferdinand Boss foi processado e multado por sua participação no nazismo. O estilista morreu em 1948."
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Coco Chanel (1883-1971) teria espionado para os nazistas, de acordo com Hal Vaughan, autor do livro Dormindo com o Inimigo - a Guerra Secreta de Coco Chanel(Companhia das Letras). Ela teria se aliado aos alemães durante a ocupação da França, a partir de 1940, mantendo seus privilégios como a suíte no hotel Ritz. Seu elo de ligação com os nazistas era o barão Hans Günther von Dincklage, que fora um agente da Gestapo e não apenas um playboy, como se pensava. Segundo Vaughan, Coco Chanel "tornara-se rica, fazia-se apreciar entre os mais ricos e com eles partilhava o ódio aos judeus, aos sindicatos, aos maçons, aos socialistas e ao comunismo. Desde 1933 que considerava que Hitler um grande europeu”.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

OS 35 ANOS DO ASSASSINATO DE ORLANDO LETELIER


Orlando Letelier

Carro de Letelier destruído por bomba
Há 35 anos, em plena capital americana, Washington, o diplomata chileno exilado Marcos Orlando Letelier Del Solar foi morto quando uma bomba destruiu seu carro no Sheridan Circle. Letelier fora chanceler e ministro da Defesa do presidente socialista Salvador Allende, deposto por um golpe militar em 11 de setembro de 1973. O atentado, que também matou a secretária de Letelier, Ronni Moffit, foi obra da DINA, a temível polícia política criada pelo ditador chileno Augusto Pinochet, e de um agente da CIA recrutado pela DINA.

Michael Townley
Várias pessoas foram processadas e condenadas pelo atentado: Michael Townley, agente da CIA que trabalhava para a DINA, o general Manuel Contreras, chefe da DINA, e o brigadeiro Pedro Espinoza, também dirigente da polícia política pinochetista. Em 1978, Townley foi condenado a 25 anos de prisão nos EUA. Cuumpriu 62 meses e foi libertado, tendo sido inscrito no Programa Federal de Proteção à Testemunha dos EUA. Ele conseguiu evitar a deportação para a Argentina, para ser julgado pelo assassinato do general Carlos Prats. Contreras e Espinoza foram condenados em 1993 no Chile, mas Pinochet, que morreu em 2006, nunca foi processado pelo caso, embora todos os envolvidos o apontassem como o autor intelectual do assassinato de Orlando Letelier.



O general legalista Carlos Prats
 Michael Townley talvez seja o mais sinistro de desses tenebrosos personagens. Ele já havia participado de outros dois atos terroristas contra chilenos no exterior: o assassinato do general Carlos Prats em Buenos Aires, em 1974, e o atentado contra o brigadeiro Bernardo Leighton, em Roma, em 1975. Carlos Prats, antecessor de Pinochet no comando do Exército do Chile, era um general legalista que estava exilado na Argentina quando foi morto por um carro bomba. Segundo o general Contreras, Townley viajou para a Argentina com um passaporte falso feito pela CIA e, na operação, teve apoio de agentes da CIA, da DINA e de grupos paramilitares da extrema-direta argentina, como a Triple A (Aliança Anticomunista Argentina).

Para tentar matar o brigadeiro Leighton, dissidente da junta militar chilena, Townley se encontrou com Stefano Delle Chiaie, fundador do grupo neofascista Avanguardia Nazionale e membro da Gládio, organização anticomunista montada pela OTAN na Europa ocidental, e com Albert Spaggiari, ativista francês da OAS (Organização do Exército Secreto, de extrema-direita), e Enrique Arranciaba, agente da DINA.

Prisão de Letelier no Chile em 1973
Letelier, advogado de formação, trabalhou na Codelco (Departamento de Cobre do Chile), e ingressou no Partido Socialista em 1959. Trabalhou no BIRD e foi nomeado por Allende para ser o embaixador do Chile nos Estados Unidos, com a impossível missão de justificar a nacionalização da indústria do cobre chilena. Em 1973, foi nomeado chanceler, depois ministro do Interior e ministro da Defesa. Com o golpe de 11 de setembro, Letelier foi preso e encaminhado a vários campos de concentração, onde foi barbaramente torturado. Sob intensa pressão internacional, foi libertado e se exilou nos EUA, fixando residência em Washington, DC. Trabalhou no IPS (Instituto de Estudos Políticos) e foi diretor do Transnational Institute (TNI), uma organização independente baseada em Amsterdã. Fez intensa campanha contra o regime de Pinochet e se tornou o porta-voz da resistência chilena no exterior, obtendo ajuda financeira (especialmente da Europa) para atividades oposicionistas. A ditadura chilena cassou sua nacionalidade em setembro de 1976, dias antes de seu assassinato.

Documentos do Departamento de Estado americano liberados em 2010 revelaram que o governo dos Estados Unidos foi obrigado a suspender a colaboração com a Operação Condor – uma rede das ditaduras militares latino-americanas para troca de informações e captura de dissidentes políticos – depois do assassinato de Orlando Letelier. O próprio Henry Kissinger, secretário de Estado profundamente envolvido na desestabilização e deposição de Allende, comandou a marcha-à-ré de Washington.   

terça-feira, 20 de setembro de 2011

E POR FALAR EM MARX...

Uma arguta análise das previsões marxianas sobre o fim do capitalismo:

Marx e a instabilidade do capitalismo


John Gray (*)

Como efeito colateral da crise financeira, mais e mais pessoas estão começando a pensar que Karl Marx estava certo. O grande filósofo, economista e revolucionário alemão do século XIX acreditava que o capitalismo era radicalmente instável.


Ele tem uma tendência intrínseca de produzir avanços e fracassos cada vez maiores e, no longo prazo, ele estava destinado a se autodestruir. Marx saudava a autodestruição do capitalismo. Ele era confiante que uma revolução popular ocorreria e daria origem a um sistema comunista que seria mais produtivo e muito mais humano.


Marx estava errado sobre o comunismo. Aquilo sobre o que ele estava profeticamente certo era a sua compreensão da revolução do capitalismo. Não era somente a instabilidade endêmica do capitalismo que ele compreendia, embora neste sentido ele fosse muito mais perspicaz do que a maioria dos economistas da sua época e da nossa. Mais profundamente, Marx compreendeu como o capitalismo destrói a sua própria base social - o meio de vida da classe média. [ é verdade que ] a terminologia marxista de burguês e proletário tem um tom arcaico. Mas quando ele argumentava que o capitalismo iria arrastar as classes médias a algo parecido com a existência precária dos sobrecarregados trabalhadores de sua época, Marx previu uma mudança na maneira como vivemos à qual só agora estamos lutando para nos adaptarmos.


Ele via o capitalismo como o sistema econômico mais revolucionário da história, e não pode haver dúvida de que ele se diferencia daqueles que vieram antes dele. Os caçadores e coletores persistiram nesta forma de vida por milhares de anos, enquanto as culturas escravagistas permaneceram assim por quase o mesmo tempo, e as sociedades feudais sobreviveram por muitos séculos. Em contraste, o capitalismo transforma tudo que ele toca. Não são só as marcas que estão mudando constantemente. As empresas e as indústrias são criadas e destruídas em um fluxo incessante de inovação, enquanto as relações humanas são dissolvidas e reinventadas em novas formas.


O capitalismo foi descrito como um processo de destruição criativa [apud Joseph Schumpeter], e ninguém pode negar que ele foi prodigiosamente produtivo. Praticamente qualquer um que esteja vivo na Grã-Bretanha hoje tem uma renda real maior do que eles teriam se o capitalismo nunca tivesse existido.


Retorno negativo
O problema é que entre as coisas que foram destruídas no processo está o estilo de vida do qual o capitalismo dependia no passado.
Defensores do capitalismo argumentam que ele oferece a todos os benefícios que, na época de Marx, eram desfrutados somente pela burguesia, a "classe média" estabelecida que possuía capital e tinha um razoável nível de segurança e liberdade em suas vidas.

No capitalismo do século XIX, a maioria das pessoas não tinha nada. Elas viviam de vender o seu trabalho e, quando os mercados entravam em queda, enfrentavam tempos difíceis. Mas à medida que o capitalismo evolui, seus defensores dizem, um número crescente de pessoas pode se beneficiar dele.

Carreiras bem-sucedidas não serão mais a prerrogativa de uns poucos. As pessoas não terão dificuldades todo mês para subsistir por causa de um salário inseguro. Protegidos pelas economias, pela casa que possui e uma pensão decente, eles seriam capazes de planejar suas vidas sem medo. Com o crescimento da democracia e a distribuição da riqueza, ninguém precisará ser privado da vida burguesa. Todo mundo poderá ser da classe média.


Na verdade, na Grã-Bretanha, nos EUA e em muitos outros países desenvolvidos nos últimos 20 ou 30 anos, o contrário vem ocorrendo. A segurança do emprego não existe, as atividades e as profissões do passado em grande parte acabaram e as carreiras que duram uma vida inteira são meramente lembranças.


Se as pessoas têm qualquer riqueza, isto está nas suas casas, mas os preços dos imóveis nem sempre crescem. Quando o crédito fica restrito, como agora, eles podem ficar estagnados por anos. Uma minoria cada vez menor pode contar com uma pensão com a qual pode viver confortavelmente, e não são muitos os que tem economias significativas.


Mais e mais pessoas vivem um dia de cada vez, com pouca noção do que o futuro pode reservar. AS pessoas da classe média costumavam imaginar as suas vidas desdobradas em uma progressão ordenada. Mas não é mais possível olhar para uma vida como uma sucessão de estágios em que cada um é um passo dado a partir do último.


No processo da destruição criativa, a escada foi afastada, e para um número cada vez maior de pessoas, uma existência de classe média não é mais sequer uma aspiração.


Assumindo riscos
Enquanto o capitalismo avançava, ele devolveu as pessoas a uma nova versão da existência precária do proletariado de Marx. As nossas rendas são muito maiores, e em algum grau nós estamos protegidos contra os choques por aquilo que resta do Estado de bem-estar social do pós-guerra.


Mas nós temos muito pouco controle efetivo sobre o curso das nossas vidas, e a incerteza na qual vivemos está sendo piorada pelas políticas voltadas para lidar com a crise financeira.

As taxas de juros a zero e meio a preços crescentes querem dizer que as pessoas estão tendo um retorno negativo de seu dinheiro, e ao longo do tempo o seu capital está se erodindo.


A situação de muitas das pessoas mais jovens é ainda pior. Para adquirir os talentos de que precisa, a pessoa tem de se endividar. Já que em algum ponto será necessário se reciclar, é preciso tentar economizar, mas se a pessoa está endividada desde o começo, esta é a última coisa que ela poderá fazer.

O que há em comum entre eles e os vitorianos?

Não importa a sua idade, a perspectiva que a maioria das pessoas enfrenta é de uma vida de insegurança.


Ao mesmo tempo em que privou as pessoas da segurança da vida burguesa, o capitalismo criou o tipo de pessoa que vive a obsoleta vida burguesa. Nos anos 80, havia muita conversa sobre valores vitorianos, e propagandistas do livre mercado costumavam argumentar que ele traria de volta para nós os íntegros valores de outrora.


Para muitos, as mulheres e os pobres, por exemplo, estes valores vitorianos podem ser bastante ilógicos em seus efeitos. Mas o fato mais importante é que o livre mercado funciona para corroer as virtudes que mantêm a vida burguesa.


Quando as economias estão se perdendo, ser econômico pode ser o caminho para a ruína. É a pessoa que toma pesados empréstimos e não tem medo de declarar a insolvência que sobrevive e consegue prosperar.


Quando o mercado de trabalho está altamente volátil, não são aqueles que se mantém obedientemente fiéis a sua tarefa que são bem-sucedidos, e sim as pessoas que estão sempre prontas para tentar algo novo e que parece mais promissor.

Em uma sociedade que está sendo continuamente transformada pelas forças do mercado, os valores tradicionais são disfuncionais, e qualquer um que tentar viver com base neles está arriscado a acabar no ferro-velho.


Vasta riqueza
Olhando para um futuro no qual o mercado permeia cada canto da vida, Marx escreveu no Manifesto Comunista: "Tudo que é sólido se desmancha no ar". Para alguém que vivia na Grã-Bretanha no início do período vitoriano - o Manifesto foi publicado em 1848 -, isto era uma observação incrivelmente perspicaz.

Naquela época, nada parecia mais sólido que a sociedade às margens daquela em que Marx vivia. Um século e meio depois, nos encontramos no mundo que ele previu, onde a vida de todo mundo é experimental e provisória, e a ruína súbita pode ocorrer a qualquer momento.


Uns poucos acumularam uma vasta riqueza, mas mesmo isso tem uma característica evanescente, quase espectral. Na época vitoriana, os muito ricos podiam relaxar, desde que eles fossem conservadores com a maneira como eles investiam seu dinheiro. Quando os heróis dos romances de Dickens finalmente recebem sua herança, eles nunca mais fazem nada na vida.

Hoje, não existe o porto seguro. As rotações do mercado são tais que ninguém pode saber o que terá valor dentro de alguns anos.

Este estado de inquietação perpétua é a revolução permanente do capitalismo, e eu acho que ele vai ficar conosco em qualquer futuro que seja realisticamente imaginável. Nós estamos apenas no meio do caminho de uma crise financeira que ainda deixará muitas coisas de cabeça para baixo.

As moedas e os governos provavelmente ficarão de ponta-cabeça, junto de partes do sistema financeiro que nós acreditávamos estar a salvo. Os riscos que ameaçavam congelar a economia mundial apenas três anos atrás não foram enfrentados. Eles foram simplesmente deslocados para os Estados.


Não importa o que políticos nos digam sobre a necessidade de controlar o déficit. Dívidas do tamanho das que foram contraídas não podem ser pagas. Elas quase que certamente serão infladas - um processo que está destinado a ser doloroso e empobrecedor para muitos.


O resultado só pode ser mais revoltas, em uma escala ainda maior. Mas isto não será o fim do mundo, ou mesmo do capitalismo. Aconteça o que acontecer, nós ainda teremos que aprender a viver com a energia mercurial que o mercado emitiu.


O capitalismo levou a uma revolução, mas não a que Marx esperava. O feroz pensador alemão odiava a vida burguesa e queria que o comunismo a destruísse. E assim como ele previu, o mundo burguês foi destruído.


Mas não foi o comunismo que conseguiu esta proeza. Foi o capitalismo que eliminou a burguesia.

(*) Filósofo político e escritor