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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A VITIMIZAÇÃO QUE LEGITIMA A CENSURA


Gisele Bünchen
A Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal pediu ao Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) a suspensão de uma peça publicitária da fabricante de lingerie Hope na qual a modelo Gisele Bünchen aparece primeiro usando roupas normais e depois apenas vestindo lingerie para contar ao marido que bateu o carro. "Você é brasileira, use seu charme", diz a peça. Para a secretaria, o anúncio “reforça o estereótipo equivocado da mulher como objeto sexual de seu marido e ignora os grandes avanços alcançados para desconstruir práticas e pensamentos sexistas”.

Por trás desse palavrório pseudo-progressista está a tentativa pura e simples de censura. Não está aqui em discussão o conteúdo da peça publicitária ("a massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa", dizia George Orwell), mas a tentativa de proibir veiculações de propaganda sob alegação de “proteção” à mulher. Aconteceu a mesma coisa ano passado com uma propaganda da cerveja Devassa com a participação de Paris Hilton. Como se mulheres emancipadas não fossem capazes de ignorar, xingar ou achar engraçada ou ridícula uma peça publicitária na qual aparecem como “objeto sexual”. Não, elas são coitadinhas que precisam ser protegidas contra os malvados machistas. Na falta de uma política que combata os problemas reais que as mulheres enfrentam – a violência doméstica, a discriminação profissional e o assédio sexual no trabalho – o governo vem com essa patasquada censória e moralista. 


O pano de fundo de tudo isso chama-se "cultura da reclamação", que é o estágio inicial da "cultura da vitimização". Por meio desta, supostos porta-vozes de segmentos da população – religiosos, étnicos, nacionais, raciais, mulheres, homossexuais etc. –, declaram-nos vitimados. Segundo o prof. Teixeira Coelho, a conseqüência disso é a confusão entre a discriminação cotidiana sofrida pelo indivíduo ou grupo no universo da cidadania e a alegada discriminação cultural ou estética contra eles exercida por meios de expressão. “Faz parte da cultura da lamentação a demanda da abolição dos cânones de gosto, dos critérios de qualidade e competência e dos juízos de valor: um certo filme ou romance é bom porque seu autor é, foi ou teria sido vítima de uma opressão racial, sexual ou religiosa e não por este ou aquele fator específico e intrínseco à produção cultural. Esta cultura levou a uma outra, a do politicamente correto, descrita por (Robert) Hughes como a cultura da ênfase no ego, uma cultura da cidadania infantilizada segundo a qual os direitos pairam acima dos deveres e destes estão desligados.” Em outras palavras, o problema, para essa postura, não é a realidade, mas o discurso. 



Essas diferentes “culturas” fazem parte de um fenômeno maior, o chamado multiculturalismo, que ganhou corpo nos anos 1970 como uma resposta “progressista” à situação de discriminação da massa de imigrantes nos países ocidentais, cujas origens estão na antropologia estrutural de Lévi-Strauss. O multiculturalismo nasceu como uma ideia generosa, com o objetivo de fazer com que as minorias étnicas e religiosas se sentissem mais valorizadas e respeitadas em países estranhos aos seus, tornando-se capazes de se integrar à sociedade em que viviam. O multiculturalismo afirmava a especificidade cultural dessas minorias e dava dignidade à diferença. Num primeiro momento, essa política atingiu seus objetivos; os países ocidentais se tornaram um ambiente mais aberto, diversificado e cosmopolita.

Ayaan Harsi Ali
Mas logo o multiculturalismo mostrou sua outra face e transformou-se em seu oposto, trocando a integração pela segregação; não apenas permitiu, como estimulou a separação de grupos étnicos e culturais, rejeitando qualquer forma de integração. Em nome da tolerância e da diferença, reproduziu-se a prática colonialista: criaram-se verdadeiros “bantustões” – os enclaves negros criados na África do Sul pelo apartheid –, só que com sinal trocado. As sociedades dominadas pelo multiculturalismo, supostamente mais civilizadas, tornaram-se mais hostis, fragmentadas e intolerantes.

Veja-se o exemplo de Ayaan Harsi Ali, a imigrante somali que virou deputada europeia na Holanda. Ela se viu acusada de fazer causa comum com a direita por denunciar as tradições religiosas reacionárias de seu clã islâmico, confortavelmente garantidas na Holanda pelas leis politicamente corretas do país. Segundo uma ótica pseudo-progressista, ela tinha que aceitá-las porque eram parte integrante da “sua cultura”. O subtexto é que os direitos humanos são um artigo exclusivo de ocidentais brancos e cristãos.  

Chinua Achebe
Não por acaso, um dos maiores escritores vivos, o nigeriano Chinua Achebe, autor, entre outros, de O Mundo se Despedaça, traça um vigoroso retrado das mazelas da herança colonial na África sem recorrer ao recurso fácil e enganoso da vitimização.   

A liberdade de expressão está ameaçada por esse comportamento culturalmente policialesco que se multiplica em vários países democráticos com sentimento de culpa pelo passivo colonial. E nós, sem essa herança maldita, copiamos esse comportamento. Essa combinação entre o politicamente correto e o separatismo étnico-religioso está destruindo os laços cívicos da sociedade civil e reproduzindo subrepticiamente os valores do colonizador. Grupos religiosos transformam-se em grupos de pressão; boicotes e campanhas políticas estão contaminando a atividade política; a cultura divide-se em sistemas de crenças que eliminam o discurso civil e impossibilitam o debate racional. A prática política está sendo ser abandonada em favor de atitudes midiáticas. É a uma mistura das distopias de Orwell e Huxley. 









 

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