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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

LIBERDADE RELIGIOSA E LAICIDADE


Parece inacreditável mas, em pleno século XXI, o Brasil ainda se debate com questões – como a separação do Estado e da Igreja – que, em alguns países, já foram resolvidas há mais de um século, inclusive no nosso vizinho Uruguai. O pior é que os líderes religiosos de confissões minoritárias não percebem que a maior vítima de um Estado confessional, ainda que não se assuma enquanto tal, são justamente as denominações religiosas não-hegemônicas.

Que a “retaguada do atraso” (José Sarney) tenha se pronunciado contra a medida do MP que pede a retirada da expressão “Deus seja louvado” das cédulas do Real não constitui nenhuma surpresa. Foi ele quem determinou a colocação da frase na moeda nacional quando era presidente. Poucos – os “encrenqueiros de sempre” – protestaram na época, mas a decisão, além de ferir um preceito constitucional, revela o espírito colonizado que copiou a fórmula que os norte-americanos cravaram nas notas de dólar (In God We Trust).

Agora, falta o MP exigir que os símbolos religiosos, como os crucifixos, sejam retirados das repartições públicas. Ou então que sejam também colocados símbolos da umbanda, do budismo, do judaísmo, do islamismo... Aliás, qual seriam os símbolos dos ateus e agnósticos? 
Abaixo, o texto do Leonardo Sakamoto sobre o tema:    


"Deus seja louvado" ou "Deus não existe": o que soa melhor na nota de Real?

Na França, os símbolos religiosos de sedes de governos, tribunais e escolas públicas no final do século XIX. Nossa primeira Constituição republicana já contemplava a separação entre Estado e Igreja, mas estamos 120 anos atrasados em cumprir a promessas dos legisladores de então

Por Leonardo Sakamoto, em seu blog

A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo pediu que a Justiça Federal determine que as novas notas de reais a serem impressas venham sem a expressão “Deus seja louvado”.

De acordo com o MPF, o Banco Central (responsável pelo conteúdo das notas) informou que o fundamento legal para a inserção da expressão “Deus seja louvado” nas cédulas é o preâmbulo da Constituição, que afirma que ela foi promulgada “sob a proteção de Deus”. Depois, teria permanecido por uma questão de tradição.

O procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, lembrou – em nota divulgada pelo MPF – que não existe lei autorizando a inclusão da expressão nas cédulas. “Quando o Estado ostenta um símbolo religioso ou adota uma expressão verbal em sua moeda, declara sua predileção pela religião que o símbolo ou a frase representam, o que resulta na discriminação das demais religiões professadas no Brasil”.

Um trecho da ação civil pública exemplifica bem isso: “Imaginemos a cédula de real com as seguintes expressões: ‘Alá seja louvado’, ‘Buda seja louvado’, ‘Salve Oxossi’, ‘Salve Lord Ganesha’, ‘Deus Não existe’. Com certeza haveria agitação na sociedade brasileira em razão do constrangimento sofrido pelos cidadãos crentes em Deus”.


A França retirou os símbolos religiosos de sedes de governos, tribunais e escolas públicas no final do século 19. Nossa primeira Constituição republicana já contemplava a separação entre Estado e Igreja, mas estamos 120 anos atrasados em cumprir a promessas dos legisladores de então.

Em janeiro de 2010, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou uma nota em que rejeitou “a criação de ‘mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União’, pois considera que tal medida intolerante pretende ignorar nossas raízes históricas”.

Adoro quando alguém apela para as “raízes históricas” para discutir algo. Como aqui já disse, a escravidão está em nossas raízes históricas. A sociedade patriarcal está em nossas raízes históricas. A desigualdade social estrutural está em nossas raízes históricas.

A exploração irracional dos recursos naturais está em nossas raízes históricas. A submissão da mulher como mera reprodutora e objeto sexual está em nossas raízes históricas. As decisões de Estado serem tomadas por meia dúzia de iluminados ignorando a participação popular estão em nossas raízes históricas. Lavar a honra com sangue está em nossas raízes históricas. Caçar índios no mato está em nossas raízes históricas. E isso para falar apenas de Brasil. Até porque queimar pessoas por intolerância de pensamento está nas raízes históricas de muita gente.

Quando o ser humano consegue caminhar a ponto de ver no horizonte a possibilidade de se livrar das amarras de suas “raízes históricas”, obtendo a liberdade para acreditar ou não, fazer ou não fazer, ser o que quiser ser, instituições importantes trazem justificativas para manter tudo como está.

Como foi noticiado na época, o Ministério Público do Piauí solicitou, em 2009, a retirada de símbolos religiosos dos prédios públicos, atendendo a uma representação feita por entidades da sociedade civil e, no mesmo ano, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mandou recolher os crucifixos que adornavam o prédio e converteu a capela católica em local de culto ecumênico. Algumas dessas ações têm vida curta, mas o que importa é que percebe-se um processo em defesa de um Estado que proteja e acolha todas as religiões, mas não seja atrelado a nenhuma delas.

É necessário que se retirem adornos e referência religiosas de edifícios públicos, como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Não é porque o país tem uma maioria de católicos que espíritas, judeus, muçulmanos, enfim, minorias, precisem aceitar um crucifixo em um espaço do Estado. Ou uma oração em sua moeda.

E, o mais relevante: as denominações cristãs são parte interessada em polêmicas judiciais, como pesquisas com célula-tronco ao direito ao aborto. Se esses elementos estão presentes nos locais onde são tomadas as decisões, como garantir que as decisões serão isentas? O Estado deve garantir que todas as religiões tenham liberdade para exercer seus cultos, tenham seus templos, igrejas e terreiros e ostentem seus símbolos.

Mas não pode se envolver, positiva ou negativamente, para promover nenhuma delas.
E não sou eu quem diz isso. Em Mateus, capítulo 22, versículo 21, o livro sagrado do cristianismo deixa bem claro o que o pessoal de hoje quer fazer de conta que não entende: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus”.
Estado é Estado. Religião é religião. Simples assim.

É um debate pequeno? Nem de longe, pois é simbólico. E, portanto, estruturante. De quem somos nós e o que limita nossas liberdades.

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