Trata-se de um blog despretensioso de um jornalista dublê de sociólogo que deixou as grandes redações depois de ter acumulado décadas de experiência e, em função disso, acredita que tenha algo a transmitir a eventuais leitores... além de, claro, cumprir o dever de ofício de ajudar a "desafinar o coro dos contentes", como dizia Torquato Neto, e de "consolar os aflitos e afligir os consolados", como pregava Joseph Pulitzer.
Publico abaixo um esclarecedor artigo do jornalista e ex-preso político Celso Lungaretti sobre mais uma tentativa da Folha de S. Paulo de igualar os atos de resistência à ditadura às práticas de torturas e assassinatos cometidos pelos agentes do Estado.
O JORNAL DA DITABRANDA
VENDE
O MESMO PEIXE PODRE
PELA 2ª VEZ!
Celso Lungaretti
Sempre que estão em evidência no noticiário as atrocidades e execuções
perpetradas pelo regime militar, as viúvas da ditadura requentam os
mesmíssimos episódios de vítimas dos grupos armados, apostando na desinformação
dos brasileiros.
Orlando Lovecchio Filho
Realmente, por aqui poucos sabem que, através dos tempos, TODAS as vezes
em que cidadãos comuns pegaram em armas contra tiranias registraram-se erros e
acasos infelizes, sem que isto descaracterizasse o fundamental: o fato de uns
estarem utilizando a violência DESMEDIDAMENTE para manter o despotismo e outros
SELETIVAMENTE para o combater. E a indústria cultural tudo faz para que tal
conhecimento continue restrito a minorias.
No Brasil, para contrapor às muitas dezenas de episódios chocantes
protagonizados pelas bestas-feras da ditadura, a extrema-direita utiliza
invariavelmente os casos de Mario Kozel Filho e Alberto Mendes Júnior
–lamentáveis, sem dúvida, mas CIRCUNSTANCIAIS, enquanto os carrascos abrigados
no aparelho de estado implementaram uma política DELIBERADA de extermínio dos
guerrilheiros, repetindo em menor escala a solução final dos
nazistas para os judeus.
Em março/2008, o jornalista Elio Gaspari, na Folha de S. Paulo e em outros
jornais nos quais sua coluna é publicada, colocou em evidência um terceiro
episódio: o do jovem Orlando Lovecchio Filho, que teve a perna amputada depois
de atingido pela explosão de uma bomba que a ALN deixou em março/1968 no
estacionamento do Conjunto Nacional (av. Paulista), diante do consulado
estadunidense em São Paulo.
Na ocasião, ficou esclarecido que Gaspari não só atribuíra o atentado à
organização errada (culpava a VPR) e às pessoas erradas (nomeou quatro mas duas
eram inocentes, tendo uma delas, Dulce Maia, sido vitoriosa na ação que moveu
contra o acusador leviano), mas também que Lovecchio PERDEU A PERNA PORQUE A
REPRESSÃO DA DITADURA, SUSPEITANDO QUE ELE PUDESSE SER TAMBÉM UM PARTICIPANTE
DO ATENTADO, INTERROMPEU O SOCORRO MÉDICO PARA INTERROGÁ-LO E, QUANDO O
LIBEROU, HORAS MAIS TARDE, A GANGRENA JÁ SE ESTABELECERA.
Lovecchio levou à Justiça um dos verdadeiros autores da ação, Sérgio Ferro, e
PERDEU!
A derrota judicial se deveu aos relatórios médicos que Ferro apresentou em sua
defesa: o primeiro informando que o ferimento de Lovecchio era grave, mas
existia possibilidade de recuperação. O segundo, que quando o atendimento foi
retomado, horas mais tarde, sua perna já havia gangrenado, o que tornou
obrigatória a amputação.
Inacreditavelmente, quatro anos mais tarde o jornal da ditabranda, neste
domingo (20), bate novamente na mesma tecla e esquece o que ficou
evidenciado em 2008: A CRIMINOSA INTERRUPÇÃO DOS CUIDADOS MÉDICOS A UM FERIDO
QUE, AINDA QUE FOSSE UM GUERRILHEIRO ATINGIDO PELA PRÓPRIA BOMBA, DEVERIA TER
SIDO SOCORRIDO ANTES DE INTERROGADO.
A nova manipulação jornalística tem o título de Vítima de bomba também espera
receber reparação. E gasta muitas palavras para recapitular a explosão, menos o
detalhe fundamental que levou a Justiça a rechaçar a acusação de Lovecchio
contra Ferro. Constatem:
“…Era 1h30 do dia 19, avenida vazia, lojas fechadas, consulado idem, quando o
DKW desceu a rampa do estacionamento. Lovecchio estava com um primo e um amigo
de Santos, que o visitavam. Lovecchio estava com um primo e um amigo de Santos,
que o visitavam.
Um cano tampado com papel kraft. Saída do prédio. Fumacinha. Acabam aí as
lembranças. Lovecchio não ouviu nada, não viu clarão.
Quando acordou, estava deitado no chão, cercado por pessoas perguntando-lhe
isso e aquilo. Achou estranho que a sola do sapato estivesse ‘olhando’ para
ele.
Os jovens foram os primeiros suspeitos do atentado. Nos jornais dos dias
seguintes, a polícia avisava: a explosão podia ser um ‘acidente de trabalho’.
Os três do DKW entraram na mira da Polícia do Exército e do Dops.
Internado no Hospital das Clínicas, Lovecchio lutou para controlar a infecção
na perna dilacerada. Os pais dele recusavam-se a aceitar a hipótese de
amputação. ‘Mas já estava gangrenando’”.
Para quem quiser recapitular a polêmica de 2008, eis os artigos que então
lancei, aqui, aqui e aqui.
A narrativa folhetinesca e choramingas, calibrada para indispor os leitores com
os antigos resistentes, admite que Lovecchio foi inicialmente tido como suspeito,
omite o restante e ainda registra sem comentar que o atentado se deu em plena
madrugada, num estacionamento quase vazio.
Ou seja, tanto quanto o carro-bomba lançado contra o QG do II Exército, FOI UMA
DESNECESSÁRIA E CONDENÁVEL DEMONSTRAÇÃO DE FORÇA, MAS O PRÓPRIO HORÁRIO
ESCOLHIDO ATESTA QUE HAVIA A INTENÇÃO DE NÃO FERIR NINGUÉM.
Mário Kozel Filho
Ignoro se a ALN reconsiderou a conveniência de tais ações, mas a VPR o fez, no
Congresso de Mongaguá, em abril de 1969, do qual participei. E dou meu
testemunho: a morte do recruta Kozel era bastante lamentada pelos companheiros
de origem militar, que estimavam –e muito!– os subalternos. Até por quase todos
serem antigos sargentos e cabos, acostumados a ZELAR pelos recrutas, um ano
depois continuavam cheios de remorsos.
Sentimento de pesar compartilhado pelo próprio Lamarca, que ainda não
ingressara na VPR quando o atentado ocorreu: embora tivesse chegado a capitão,
ele identificava-se mesmo é com a soldadesca, afirmando amiúde que se
diferenciava dos outros oficiais por ser filho de sapateiro, e não de famílias
burguesas ou de classe média.
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