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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

CONTRA A BARBARIZAÇÃO POR MEIO DA INFORMAÇÃO


O relatório de Lord Brian Levenson, sobre as estripulias do grupo Murdoch no Reino Unido e as medidas propostas para regular a mídia, teve escassa repercussão na mídia nacional, que se prestou a minimizar o fato. Surpreendentemente, o jornal conservador britânico Financial Times condenou a “falta de humildade” da indústria de jornais, enquanto que o outrora progressista The New York Times partiu para a ofensiva, criticando o relatório como “ameaça à liberdade de imprensa”.
Este belo texto de Alberto Dinas compara o panfleto do poeta John Milton (1608-1674), contra a censura da Inquisição no século XVII, ao relatório de Lord Levenson de agora, colocando-os como documentos em defesa da liberdade de expressão e dos direitos do cidadão.        
Aeropagítica, 368 anos depois,
Por Alberto Dines, no Observatório da Imprensa

Na verdade, 368 anos e seis dias: o famoso panfleto em prosa do poeta John Milton foi apresentado ao Parlamento inglês no dia 23 de novembro de 1644, o relatório do lorde-juiz Brian Leveson, com 1.977 páginas, foi apresentado à mesma Casa na quinta-feira, 29 de novembro.
Milton inspirou-se no discurso homônimo do ateniense Isócrates proferido no século 5, antes de Era Comum. O Areopagus era um monte em Atenas onde se realizavam grandes debates e julgamentos. Isócrates pretendia restabelecer o poder desse tribunal, tal como Milton com o Parlamento, em plena guerra civil, 22 séculos depois.
O protestante Milton investia contra a Inquisição católica que permitia apenas a impressão de textos autorizados por seus censores e, com isso, arrebanhou as simpatias dos parlamentares puritanos. Os membros do Parlamento – entendia Milton – deviam ter acesso a todas as opiniões e argumentações, não apenas àquelas autorizadas pelos poderosos. Sua ideia inicial era um discurso perante seus pares, mas ao defender a liberdade de impressão sem licenciamento e entraves de qualquer espécie, considerou mais coerente e eficaz trazer um caso concreto em defesa da liberdade de imprimir e expressar-se: optou pelo panfleto.


Em nenhum momento do demorado inquérito que presidiu ou em qualquer passagem do longo relatório que coordenou, manifesta lorde Leveson qualquer sugestão restritiva ou censória. Sequer prepara o caminho para uma intervenção do governo. A comissão que preside foi constituída por determinação do gabinete com irrestrito apoio do Parlamento e da sociedade britânica, todos igualmente indignados com a sórdida atuação dos acionistas, executivos, editores e repórteres do tabloide News of the World, do magnata Rupert Murdoch.

Show de cinismo
O escândalo comprovou a precariedade, indecência e a complacência do sistema de autorregulação da imprensa até então vigente no Reino Unido. O objetivo do magistrado Leveson sempre foi o de reforçar a autorregulação colocando-a efetivamente na esfera pública e em condições de atuar com agilidade, rigor e livre de qualquer interferência política ou governamental.
A Comissão de Queixas contra a Imprensa (PCC, na sigla em inglês) sempre foi um country club corporativo, chancelou todos os abusos e jamais conseguiu protestar, denunciar ou penalizar qualquer infâmia cometida pela mídia britânica. Não foram poucas.

Para livrar-se da acusação de que era beneficiário da “imprensa marrom” (a designação original em inglês é yellow press, imprensa amarela), o premiê conservador David Cameron está tentando assumir o papel de paladino da liberdade de expressão e adversário do Relatório Leveson. Seu parceiro na coligação que controla o gabinete, o liberal Nick Clegg, foi na direção contrária e alinhou-se com os trabalhistas: apoia as ideias e o receituário cauteloso, porém firme, do juiz Leveson.

O editorial do mais importante diário de economia e negócios do mundo, o conservador Financial Times é surpreendente, revolucionário: condena a falta de humildade da indústria de jornais ao recusar qualquer crítica à sua atuação. A imprensa não pode colocar-se acima da lei, diz o FT, e radicaliza:

“Cabe à indústria acolher o relatório, mesmo que não concorde com uma linha sequer de suas recomendações. O catálogo de abusos expostos no relatório confirma que partes da indústria estavam fora de qualquer controle. Há inúmeros exemplos de conduta temerária. O Quarto Poder aquecia-se nos privilégios das rameiras: poder sem responsabilidade” (clique aqui para a íntegra do editorial, em inglês).

No outro lado do Atlântico, editorial do outrora liberal-progressista New Yok Times deu um show de cinismo ao qualificar o documento Leveson como ameaça à liberdade (ver “Liberdade de imprensa em risco”). Esqueceu que se a indústria de jornais dos EUA não fosse parcialmente regulada e protegida pela Comissão Federal de Comunicação (FCC, na sigla em inglês), o próprio The New York Times já estaria despedaçado por um concorrente autorizado a operar uma emissora de TV local.

Salto de qualidade
Separados por quase quatro séculos, John Milton e Brian Leveson estão juntos, do lado do interesse público e do bem comum: o sonho libertário de buscar o conhecimento irrestrito iniciado em 1644 completou-se em 2012 com o estabelecimento de regras para defender os cidadãos da barbarização através da informação.
O processo é o mesmo, não desandou. A busca de informações sem constrangimentos continua com o mesmo empenho, agora acrescida da preocupação pela lisura na sua obtenção. A humanidade não abre mão da prerrogativa de buscar o saber sem tutelas. A conquista da liberdade no século XVII completou-se agora no início do século XXI com a consagração do princípio da responsabilidade. Liberdade sem deveres é fraude, é isso que Leveson nos oferece de forma tão clara e cabal.
Ao longo desses quatro séculos a humanidade preocupou-se quase exclusivamente com o aumento das escalas, as novas tecnologias atendiam a esta obsessão. O desafio contemporâneo é perseverar nos valores que deram sentido à extraordinária caminhada em direção ao conhecimento. Aqueles que outrora não admitiam a busca irrestrita da verdade são os ancestrais daqueles que hoje pregam o vale-tudo.
O único senão do documento Leveson é a sua omissão no tocante às mídias digitais, esqueceu-as. Terá que se explicar.
Importa o salto de qualidade da primeira Areopagítica à sua segunda versão. Antes queríamos mais, hoje também queremos o melhor, o mais decente e o correto.
***
Leveson e o “jornalismo fiteiro”
A grande imprensa brasileira preparou-se cuidadosamente para enfrentar as repercussões da divulgação do relatório. A notícia não foi escamoteada, parabéns! Mas foi habilmente desfibrada. Os jornalões comportaram-se de forma idêntica: na sexta-feira (30/11) historiaram sem grande destaque o escândalo e registraram a conclusão dos trabalhos. Mas não examinaram o teor do relatório, suas condenações e propostas. No fim de semana, o nome Leveson evaporara magicamente. Autorregulação é assunto tabu.
Na culminação da temporada do mensalão perdemos uma excelente oportunidade para exercitar nossa capacidade de comparar e buscar simetrias. As malfeitorias da gangue do News of the World realizaram-se majoritariamente no campo das intrusões telefônicas ilegais. Na última emissão do Observatório da Imprensa na TV Brasil, o ex-ombudsman da Folha de S.Paulo e agora biógrafo de sucesso, Mário Magalhães, lembrou que nas últimas décadas a maioria dos grandes escândalos denunciados por nossa mídia foram produzidos por idênticas intrusões telefônicas ilegais.

Acontece que o “jornalismo fiteiro” no Reino Unido transformou-se no Inquérito Leveson. Aqui, o máximo que se conseguiu foi o fim do ofício de araponga no mercado de trabalho investigativo.
***
Em tempo: Para os interessados em conhecer Areopagítica, de John Milton, o texto está publicado, em tradução de Hipólito José da Costa, no volume 4 da coleção fac-similar do Correio Braziliense (pág. 479 a 503, e pág. 616 a 639 – maio-junho de 1810), editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e por este Observatório.

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