Jean-Marie Domenach |
Um trecho do livro seminal La Propagande Politique (1950), de Jean-Marie Domenach (1922-1997), escritor francês católico
de esquerda que lutou contra os nazistas na Resistência. Ele dirigiu a revista Esprit, fundada por Emmnuel Mounier, porta-voz
do chamado Movimento Personalista. Durante a Guerra Civil da Argélia, a revista
criticou duramente o uso da tortura pelo Exército francês. Hoje Domenach está quase
esquecido.
“A propaganda política
moderna não é simplesmente o uso pervertido das técnicas de difusão destinadas
às massas. Ela precedeu a invenção da maior parte dessas técnicas: seu
aparecimento coincide com o dos grandes mitos que arrastam um povo e o
galvanizam em torno de uma visão comum do futuro.
No século XVIII, na França,
desabrochou o mito revolucionário; depois, na metade do XIX, verificou-se a cristalização,
lenta e perturbadora, do mito socialista e pro1etário. O primeiro, depois de ter
explodido, tal qual uma série de bombas de efeito retardado nos países
europeus, progressivamente perdeu sua virulência até o fim do século XIX,
quando ainda animava a vivência da III República; antes de passar ao estágio de
culto histórico, chegou a conhecer o rejuvenescimento com a questão Dreyfus;
quanto ao
segundo, depois de haver
suscitado grandes lutas civis, a Comuna em junho de 1848 e inúmeras greves, foi
empolgado pelo marxismo e, mais tarde, pelo leninismo; hoje movimenta massas
gigantescas, no Extremo Oriente.
A força com que esses dois
grandes mitos revolucionários se espraiaram pelo mundo serviu de ligação aos
pensadores políticos. Compreenderam a ajuda que poderia advir dessas
representações motrizes, cujo conteúdo, a um só tempo ideológico e sentimental,
atua diretamente na alma das multidões. Georges Sorel, antes de qualquer outro,
discerniu perfeitamente a insipidez que ameaçava uma social-democracia que se
tornara verbalista e parlamentar, propondo, como remédio, que se recorresse a mitos
violentos, capazes de aliciar os trabalhadores na Revolução: “Enquanto o
socialismo permanece uma doutrina inteiramente exposta em palavras, é muito
fácil desviá-lo no sentido de um meio-termo; essa transformação, porém, é
manifestamente impossível quando se introduz o mito da greve geral, que comporta
uma revolução absoluta”, disse Sorel. Foram as reflexões de Sorel que,
exploradas em um sentido inteiramente diverso por Mussolini, o impeliram a
construir o fascismo na base de mitos nacionais de outrora (grandeza da antiga
Roma) e de mitos conquistadores do futuro (exaltação da força, da guerra e da
vocação imperial da Itália). Doravante, a revivescência dos mitos do passado e
a criação dos mitos do futuro caracterizam as propagandas fascistas, seja a de
Hitler, de Mussolini ou de Franco. Ao passo que, na Itália ou na Espanha, os
mitos assim fabricados permanecem argumentos retóricos e conseguem inflamar
apenas uma minoria de fanáticos, logram profundo eco nas grandes massas alemãs.
Nessa primeira metade do
século XX, discerne-se por toda parte na Europa uma reação contra o abuso do
pensamento racionalista e liberal do século XVIII francês. Em verdade, tal
pensamento tornou-se o apanágio de uma elite. Entram em cena massas que não se
reconhecem na sociedade libera1, sem os quadros naturais nem os valores comuns,
que a burguesia capitalista oferece, e ainda menos no funcionamento descolorido
e complexo do regime parlamentar. O tédio não é apenas a chave stendhaliana de
uma psicologia individual; é decisivo fator da psicologia coletiva moderna. As
massas aborrecem-se. Isso é evidente na França do século XIX, depois da queda
de Napoleão. O segundo Napoleão aposta e ganha nesta carta. Ao sonho de glória,
contudo, soma-se o sonho de felicidade das massas sofredoras, e o sonho de
comunidade das massas alienadas. O socialismo apresenta-se como “ideal”, como “mística”,
antes de ser filosofia e, com Marx, doutrina de ação; assim permanecerá, em uma
proporção considerável. Gustave Le Bon sublinhou “a que ponto a imprecisão das
doutrinas socialistas é um dos elementos de seu êxito”. Dessa esperança de libertação,
dessa ânsia de fraternidade sempre vítima de decepções e, por vezes, afogada em
sangue, os fascismos vão-se apoderar, desviando-as em proveito próprio. Um
mundo privado de alegria é entregue ao império dos mitos A função desses é de
aproximar o desejo obscuro, informulado, de sua satisfação: entre aquele e essa
não subsiste mais que diminuto intervalo que a luta e o sacrifício preencherão;
essa distância já fora abolida pelas imagens, pelos cantos, pelos discursos,
pelas bandeiras desfraldadas e desfiles ameaçadores: o alvo está quase ao
alcance de nossas mãos e nos regozijamos de antemão pela felicidade que nos
proporciona; milhões de homens “vivem” a terra prometida graças a essa exaltação
poética da multidão, que decuplica a fé, antecipando sem dores o futuro. O mito
é uma participação antecipada, que preenche um momento e reaviva o desejo de
felicidade e o instinto de potência; o mito é indissoluvelmente promessa e
comunhão.”
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