Um texto – um dos poucos
da grande imprensa – que vai na contramão do coro dos contentes e da unanimidade
burra que assola a grande mídia, principalmente no que se refere ao julgamento do "mensalão".
Ditadura gostava de
criminalizar a política
Paulo Moreira Leite,
em seu blog
George W. Bush |
Eu estava nos EUA,
em 2000, quando George W. Bush tornou-se presidente por decisão da Suprema
Corte. Havia ocorrido uma fraude na Flórida, que necessitava recontar seus
votos. A Suprema Corte, de folgada maioria republicana, decidiu interromper o
processo e deu posse a Bush. Nós sabemos as consequências.
Em 2009, quando
Manoel Zelaya foi deposto em Honduras, a Corte Suprema local deu respaldo ao
golpe.
O mesmo ocorreu no
Paraguai, quando Fernando Lugo foi afastado do cargo sem direito de defesa, por
uma acusação que, está demonstrado agora, não tinha fundamento em provas – mas
em denúncias que, conforme a oposição não teve medo de anunciar, envolviam
fatos que “todo mundo sabe.”
Silvio "bunga-bunga" Berlusconi |
Para quem só enxerga
uma face da Operação Mãos Limpas, não custa recordar que a Justiça italiana colocou
muitos corruptos fora de combate na Itália e transformou o bunga-bunga Silvio
Berlusconi no grande protagonista da política atual italiana. Os partidos foram
destruídos e, em seu lugar, ficou uma rede de TV. Quem é o dono? O bunga-bunga.
É tão bunga que, quando os mercados quiseram afastá-lo do cargo, foi preciso
convencer Berlusconi a renunciar. Não havia quem desse a bungada de
misericórdia.
Lembra da guilhotina
da Revolução Francesa? Após dois anos de terror, de condenados em processos
sumários, o saldo foi o esvaziamento da democracia e a lenta recuperação da
aristocracia. Depois de guerras e ditaduras, proclamou-se o Império.
É claro que esses
fatos servem de advertência e angustia diante do julgamento do mensalão.
O Supremo está
diante de crimes graves, que devem ser investigados e punidos. O
inquérito da Polícia Federal aponta para vários crimes bem demonstrados.
Mas não dá para
aceitar longas condenações sem que as acusações não estejam provadas nem
demonstradas de forma clara e consistente. O mesmo inquérito não oferece
base para denúncias contra vários condenados. O confronto de depoimentos e as
mudanças de versões da principal testemunha, Roberto Jefferson, mostra a
fragilidade da acusação.
Vamos reconhecer o seguinte. Não tenho condições de afirmar, entre 38 réus, quantos foram condenados com provas e quantos não foram. Não conheço cada caso em cada detalhe.
As confusões das votações e debates sobre as penas mostram que os
próprios ministros têm dificuldade para armazenar tantas informações, o que não
diminui a responsabilidade de cada um deles pelo destino de todos.
Embora tivesse até uma conta em paraíso secreto, o publicitário Duda Mendonça saiu são e salvo do processo. Me explicam que seu advogado fez uma defesa técnica e nada se provou que pudesse demonstrar seu envolvimento no caso.
Me parece impecável.
E justo, porque
embora se possa falar em domínio do fato, é preciso mostrar quem tinha o
domínio em cada fato.
José Dirceu e José
Genoíno estão sendo condenados porque “não se acredita” que não tivessem
participado de nada… Não é possível, dizem.
O problema é que a
denuncia é de 2005 e até hoje não surgiu uma prova consistente para
condená-los.
Eu posso até
“imaginar” uma coisa. Mas o fato de poder imaginar, admitir que faz muita
lógica, não quer dizer que tenha acontecido.
O risco é alvejar
pessoas honradas em nome da indignação popular, estimulada por uma visão
unilateral da acusação e da defesa. Nem todos os meios de comunicação cobrem o
caso da mesma maneira. Mas é fácil perceber o tom da maioria, certo?
Assim se cria um
ambiente de linchamento, que pode ocorrer até em situações que ninguém
acompanha. A justiça brasileira está cheia de cidadãos – anônimos e pobres, de
preferência – que são julgados e condenados a penas longas e duríssimas até
que, anos e até décadas depois, descobre-se que foram vítimas de um erro e de
uma injustiça.(continua)
De vez em quando, um
deles consegue uma reparação pelo erro. Às vezes, a vítima já morreu e seus
parentes recebem alguns trocados. Às vezes, fica tudo por isso mesmo.
O cidadão tem medo
de ser vítima de uma nova injustiça e não faz nada.
Nesta semana, o
ministro Celso Mello comparou o mensalão ao PCC e o Comando Vermelho.
O ministro Gilmar Mendes |
Os dois ministros
têm uma erudição jurídica reconhecida. Expressaram suas convicções com
competência e lógica. Não é só por educação que admito minha ignorância para
falar de seus votos.
Mas essas
comparações não fazem justiça a cultura que possuem.
Nos piores momentos
do regime militar, os brasileiros que enfrentavam a ditadura de armas na mão
eram descritos como “assaltantes de banco”, “ladrões”, “assassinos” ou
“terroristas.” Até menores de idade foram presos – sem julgamento – com essa
acusação.
As organizações
armadas cometeram assaltos e sequestros. Também cometeram ações que resultaram
em mortes, algumas na forma de justiçamento.
Carlos Marighella mostrando o tiro que levou da polícia |
Deu-se o golpe de 64
com a alegação de que se deveria eliminar a subversão e a corrupção. Uma coisa
leva a outra, dizia-se. E era por isso que era preciso ligar uma coisa a outra.
O PCB estimulava a corrupção como forma de desagregar o país, escreveu um dos
editores da Tribuna da Imprensa, um dos principais envolvidos no golpe, logo
depois da vitória dos militares.
[...]
A comparação entre o
esquema político de Marcos Valério e Delúbio Soares – com todos os crimes apontados
– com quadrilhas criminosas é tão absurda que eu pergunto se essa visão estará
de pé, no Supremo, quando (e se) o mensalão PSDB-MG for a julgamento. Duvido
por boas e más razões que você sabe muito bem quais são.
É fantasia falar em
quadrilha que opera nos subterrâneos do poder.
Por mais que muitas
pessoas não enxerguem – e outras não queiram enxergar – diferenças entre os
partidos políticos e organizações criminosas, eles tem projetos diferentes,
visões diferentes e assim por diante.
Por mais que se
queira criminalizar a atividade política – é isso o que acontece hoje – é pura
miopia confundir políticos e bandidos comuns. Não é uma questão de classe
social, nem de status ou coisa semelhante.
É uma questão de
atividade profissional, digamos assim.
Eu acho diferente
controlar o território numa favela para vender cocaína e colher contribuições
financeiras para disputar uma eleição. Mesmo que se deva considerar um desvio
de verbas públicas como um crime gravíssimo, eu acho que é diferente quando se
comete um assalto a mão armada, um assassinato, o justiçamento, como
método de trabalho.
E eu acho que um
crime com homicídio é diferente daquele que não usa violência.
Mesmo frequentando
uma zona de cinzenta da política brasileira que é o mundo das finanças
partidárias – quem cunhou a expressão foi o filósofo tucano José Arthur
Gianotti – José Genoíno tem o direito de assegurar que só fez o que era
“legítimo e necessário.”
Da mesma forma, José
Dirceu tem toda razão em sustentar: “nunca fiz parte de uma quadrilha.”
Quem
discorda, prove.
Não vale ganhar no
grito, na dedução, no discurso. A gente sabe como se tentava demonstrar – sem
provas — que Marighella, Lamarca, Cara de Cavalo e o Bandido da Luz Vermelha
eram as mesmas pessoas.
O mundo real das finanças
de campanha, organizadas e estruturadas para permitir o acesso do poder privado
ao Estado, impõe uma realidade material aos partidos que, em todo lugar,
precisam de recursos para buscar votos, montar estruturas, contratar
funcionários e assim por diante.
Não custa lembrar: o
PCC persegue e mata policiais, planeja o assassinato de juízes. Controla o
sistema carcerário em São
Paulo e impõe a paz de sua conveniência em várias regiões
miseráveis do Estado.
O Comando Vermelho
tem ligações conhecidas com o narcotráfico colombiano e controla parte do
território do Rio de Janeiro. Está integrado à rede de tráfico de armas.
De uma forma ou de
outra, estamos falando de bandidos comuns e essa distinção é necessária.
São
pessoas que cometem crimes com a finalidade de praticar mais
crimes.
A ministra Rosa
Weber estabeleceu muitas distinções em seu voto.
Observadores que
tentam nivelar uma coisa e outra praticam é uma demagogia baixa, de quem
investe na ignorância e desinformação do eleitor. Achar que o julgamento mostra
que os poderosos vão para a cadeia é vender uma visão ridícula.
Primeiro, porque se
houvesse mesmo essa disposição, a turma do mensalão PSDB-MG estaria sentada no
mesmo banco dos réus petistas, já que respondem pelos mesmos crimes.
O ex-deputado José Genoino |
Terceiro: se
você acha que, ah… mas há algo de errado com José Dirceu, precisa não só
admitir que Genoíno não pode pagar por aquilo que se imputa a Dirceu – mas
também deve lembrar que o ex-ministro da Casa Civil teve o sigilo bancário e
fiscal quebrado e nada se encontrou de comprometedor.
Alvo de um
linchamento de caráter político no passado, o ex-ministro Alceni Guerra já
comparou seu drama pessoal ao de Dirceu e disse que eram casos semelhantes.
As duas únicas
historinhas que pareciam comprometedoras contra o ex-ministro da Casa
Civil não resistiram ao confronto de provas e versões.
Quarto: embora se
diga que o mensalão está provado, até agora não surgiu um caso, sequer um, de
político que tenha vendido seus votos. Nenhum. (E não vou falar da emenda da
reeleição, compra assumida, confessada e gravada. Nem de denuncias de troca de
favores e cargos na administração pública pelo mesmo motivo…)
A base desse
argumento é a visão criminalizada de que toda aliança é um ato de suborno e
todo acordo político é uma negociata. Quem fala que partidos que mudam de
posição depois da eleição está cometendo um crime precisa me explicar como
ficam os Verdes alemães, que ora são social-democratas, ora estão com a
conservadora Angela Merkel. (grifos
meus).
Também poderia fazer
isso com o PPS que mudou de lado depois de 2002, com políticos que trocam de
partidos, com quem funda partidos novos. Tudo é pilantragem?
A melhor descrição
do funcionamento das alianças políticas – e seus reflexos financeiros – foi
feita por Eliane Cantanhede na biografia do vice-presidente José Alencar. É tão
desfavorável à acusação que vários parágrafos da obra foram incorporados ao
processo pela defesa de Delúbio Soares – como argumento de sua inocência!
Embora a denúncia
tenha tantas suposições falsas e conclusões imaginativas que se pode apontar
para muita acusação sem base, estou convencido de que, como sempre
acontece em sistema de arrecadação financeira, ocorreram desvios — mas nem tudo
é criminoso. Há fatos verdadeiros e é importante que sejam punidos. Mas é
preciso, como se diz, separar uma coisa da outra.
É lamentável que
erros do passado não tenham sido investigados e punidos. Mas concordo que erros
do passado não justificam erros do presente. Mas pelo menos deveriam servir de
lição para quem diz que “agora” a justiça ficou s igual para todos.
Querem punir os
ricos e poderosos com o mensalão?
Marcos Valério não
terminou o curso de engenharia.
Os banqueiros que
podem parar na prisão não têm o lastro financeiro nem político de empresários
que até agora ficaram de fora.
Convém pelo menos
calibrar a demagogia.
Com todas as
distorções, arrecadações financeiras fazem parte da política, essa atividade
criada pelo homem para resolver diferenças e defender interesses com métodos
mais ou menos civilizados. Ela que torna possível, nos regimes
democráticos, que a maioria possa defender seus direitos. E também permite que
a minoria possa expressar-se.
O objetivo era
levantar recursos financeiros para as campanhas eleitorais de um governo que –
eu acho que nem a oposição mais cega discute isso – que reorientou o Estado no
sentido de favorecer a população mais humilde.
Um fato fica para
você resolver. Tudo pode ser uma coincidência histórica. Mais uma vez.
Ou pode ser que
muitas pessoas estejam felizes com o STF porque essa “turma do PT está tomando
uma lição”.
Nós sabemos os
vários significados de “turma do PT”—os bairros onde seus eleitores moram, o
salário que recebem, escolas e hospitais que frequentam, e assim por diante.
O governo Lula tomou
medidas notáveis e muito eficazes para defender a Lei, a Ordem e a Justiça.
A saber:
a) financiou as
UPPs que emanciparam os moradores das favelas do Rio de Janeiro do controle do
tráfico e só não fez o mesmo, em São Paulo, porque as autoridades
se consideram mais capazes para dar conta do PCC;
b) protegeu a
autonomia do Ministério Público, nomeando para seu comando os procuradores mais
votados, embora o governo avaliasse que eles tivessem uma postura
oposicionista, motivo que já levou governadores da oposição a descartar
reitores e procuradores gerais que eram preferidos de suas corporações;
c) respeitou o
Supremo a ponto de nomear juízes com independência, que hoje asseguram uma
maioria de votos contra o ponto de vista do PT e seus aliados;
Estamos falando de
fatos de domínio público. Não são segredos imaginados, sugeridos, deduzidos. E
é um fato de domínio público que a política, sob qualquer partido, para
qualquer candidato, irá entrar na zona cinzenta de Gianotti.
É curioso notar que
nenhuma mudança neste sistema pode ser realizada, até agora, porque aqueles
políticos que se dedicam a denunciar Lula e o PT não querem abrir mão de seus
canais com o poder econômico privado e impedem que o país adote um sistema de
financiamento público de campanhas.
Com essa mudança, seria
possível corrigir as principais distorções. As verbas seriam controladas pelo
Estado, com uma contabilidade oficial, e cada partido receberia recursos em
função de seus votos. A oposição não aceita.
Sabe por quê?
Porque tem recebido
tão poucos votos que ficaria em desvantagem. Embora tenha-se feito uma oferta
para garantir um piso financeiro, ela não mudou a postura.
Prefere o dinheiro
privado, particular. Mas anda tão ruim de voto que, para evitar o desperdício,
tem sido até abandonada por seus financiadores tradicionais.
É mesmo de dar pena,
não?
Prefiro uma
democracia que funcione com defeitos – que podem ser corrigidos – do que
qualquer solução sem o respeito pelos direitos integrais dos acusados, mesmo
que produzida em nome de princípios que muitos aplaudem sem medir suas
consequências para o país.
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