Em 20 anos, o Brasil avançou muito em termos de desenvolvimento econômico, estabilidade, democratização e inclusão social. Mas ainda não nos livramos da pesada herança da ditadura militar: a violência do Estado nas prisões, desta vez só contra os excluídos. Parte do problema está na impunidade: nenhum dos oficiais da PM envolvidos no massacre do Carandiru, por exemplo, foi punido até agora. Muito menos seus mandantes, o ex-governador Luiz Antônio Fleury e o ex-secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos.
Abaixo, um texto reproduzido do blog do Rodrigo Vianna.
20 anos do massacre do Carandiru:
“os massacres continuarão”
Por Juliana
Sada
No blog Escrevinhador, de Rodrigo
Vianna
Não terás medo (…) da peste que anda na escuridão, nem da
mortandade que assola ao meio-dia. Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita,
mas não chegará a ti.
Sangue no chão: o horror, o horror |
Os versos do salmo 91 foram repetidos inúmeras vezes por Sidney
Salles naquela sexta-feira, 02 de outubro de 1992. Ele estava no quinto andar
do pavilhão 9 da Casa de Detenção quando a Polícia Militar entrou e perpetuaria
o maior massacre do sistema carcerário brasileiro. Foram 111 detentos
assassinados pela PM após o início de uma rebelião. Com o olhar firme, Sidney
relembra que carregou cerca de 35 corpos, obedecendo às ordens dos policiais.
“Eu vi uma poça de sangue e fiquei com medo de pisar, não por medo do HIV, e
sim porque poderia ser sangue de um conhecido”. Quando tentava entrar em uma
cela, encontrou um policial que lhe propôs um desafio macabro. Com um molho de
chaves na mão e a cela trancada por um cadeado, disse: “vou pegar uma chave, se
abrir, você pode entrar, se não, a gente te executa”. Sidney voltou a recitar
mentalmente o salmo 91, que havia lido numa carta enviada por sua mãe na semana
anterior. “Ele pegou a chave e fez ‘clac’, a porta abriu”, relembra Sidney.
O coronel Modesto Madia, acusado de 78 mortes |
O Massacre do Carandiru já virou filme, livro, seriado e músicas.
A antiga Casa de Detenção foi quase inteiramente demolida e o governo já teve
tempo de transformar o local num parque, com biblioteca e escolas técnicas. Só
não houve tempo para que os agentes responsáveis pelo massacre fossem punidos.
Ao contrário, os policiais envolvidos no massacre seguem nas ruas e sendo
premiados pelo governo, com cargos de comando. O atual comandante da Rota
(unidade de elite da PM), assim como seu antecessor, é réu no processo do
Carandiru. Salvador Modestio Madia, que deixou o comando nesta semana, é
acusado diretamente por 78 das 111 mortes. Já o atual comandante, Nivaldo César
Restivo, responde por lesão corporal grave.
Não só apenas os indivíduos diretamente envolvidos seguem na ativa
como a estrutura repressiva do Estado segue fortalecida. O padre Valdir
Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária, chama a atenção para a
necessidade de mudanças estruturais. “Ou você põe no banco de réus quem
comanda, ou você vai culpar apenas quem está na ponta”, avalia Silveira.
A violência policial pode ser medida pelos números alarmantes de
mortes em supostos confrontos. A letalidade da Polícia Militar paulista está
entre as mais altas do mundo. De 2006 a 2010, foram 2.262 mortes em supostos
confronto com a PM. Nos primeiros cinco meses deste ano, somente a Rota matou
45 pessoas, 104% a mais que em 2010. Apesar de corresponder apenas a menos de
1% do efetivo, a Rota responde por 20% das mortes cometidas pela Polícia.
Já dentro das prisões os massacres agora ocorrem à conta gotas.
Entre 1999 e 2006, foram cerca de 3.200 mortes dentro das penitenciárias do
estado de São Paulo, uma média de 457 por ano. Fora das prisões, os massacres
também seguem. Em maio de 2006, após ataques de um grupo criminoso na cidade de
São Paulo, cerca de 505 civis foram assassinados na cidade. O perfil dos mortos
era similar: jovem, pardo, pobre e morador da periferia. O episódio ficou
conhecido como “Crimes de Maio”.
Débora Maria da Silva teve um filho assassinado em 2006 e hoje
coordena o grupo Mães de Maio, que luta em busca da verdade e por justiça. Seis
anos após a morte de seu filho, Débora conseguiu a exumação do corpo para que
se investigasse as causas de sua morte. Para Débora, o Estado foi e segue sendo
omisso no caso, além de tentar tratar o caso como “passado”. O Mães de Maio
tenta criar um memorial às vítimas mas sem sucesso: “o governo não quer lembrar
dessa mazela”, critica Débora.
O direito à memória também está em pauta no caso do Massacre do Carandiru.
O parque que foi construído no local da penitenciária não possui qualquer
indicação do que ocorreu no local. O padre Silveira defende que haja ao menos
uma placa no local para “provocar quem vai no parque: aqui é um cemitério”. O
padre propõe que o dia 2 de outubro seja considerado o dia de luta contra os
massacres.
Sidney Sales, sobrevivente do massacre do Carandiru |
Hoje, numa cadeira de rodas e como pastor evangélico, Sidney
Salles afirma ter perdoado os autores do massacre mas tampouco acredita que
possa haver justiça. “Os massacres continuarão acontecendo constantemente.
Enquanto não acabar os massacres, a periferia vai sofrer”. Débora Maria da
Silva concorda e pede punição aos responsáveis: “nós queremos viver, nós
queremos justiça. Não há paz e não haverá paz, enquanto não houver justiça. A ditadura
segue viva”.
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