Joseph A. Schumpeter |
O que o
economista Joseph Alois Schumpeter, pai da ideia da “destruição criativa” do
capitalismo, pode nos ensinar sobre as eleições e o processo de oligarquização
da democracia profetizado no século passado por Robert Michels (Os Partidos Políticos,
1912) e Walter Lippmann (A Opinião Pública). O corolário desse processo é a exacerbação
do papel da propaganda nos processos eleitorais, em detrimento da política.
“Pode deixar que
eu cuido disso”: a infantilização do voto
Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida
(*)
Le Monde Diplomatique - Brasil
A “despolitização” induz a maioria das
pessoas a perceber as eleições como o único meio de fazer política. Essa
contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” na TV e
no rádio. Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo
conservador, transforma tudo em entretenimento
Processos de infantilização das campanhas eleitorais
sempre ocorrem nas democracias de massa. No esforço para capturar os votos da
maioria em sociedades em que o poder político e econômico é detido por uma
minoria, algum tipo de manipulação é imprescindível. Referindo-se ao século
XIX, quando surgiram as primeiras democracias eleitorais, Eric Hobsbawm
observou as afinidades entre a era da democratização e a hipocrisia política.
Estudiosos sofisticados não apenas
teorizaram como justificaram esse processo, considerando-o um componente
positivo de qualquer democracia possível. Foi o caso de Joseph Schumpeter, em
seu clássico Capitalismo, socialismo e democracia, publicado em 1942 e
hoje mais influente do que nunca. Para esse autor austríaco exilado nos Estados
Unidos, é teoricamente incorreto e politicamente arriscado levar a sério a
etimologia de democracia (poder do povo). O povo jamais teve ou terá o poder,
que sempre foi e será das elites. Nesse sentido, a democracia se define como um
conjunto de procedimentos que asseguram a concorrência entre elites organizadas
em empresas políticas, ou seja, partidos, que concorrem pela preferência do
consumidor político, isto é, o eleitor. Este, como qualquer consumidor, não é
um exemplo de racionalidade ao fazer sua escolha. Daí algumas condições para
que a democracia prospere, como, por exemplo, um debate político que não
coloque questões estruturais em
pauta. E que o eleitor deixe o eleito em paz. A este, e não àquele,
o mandato pertence.
Essa concepção
dita procedimental da democracia, ao traçar uma forte analogia entre a política
e o mercado (idealizando este último), contribui para legitimar a
superficialização do debate político, o alijamento da maior parte da população
de questões mais sérias e a forte presença dos profissionais em propaganda
eleitoral. É provável que o fantasma de Schumpeter ronde as atuais eleições
brasileiras, especialmente no “horário político” da TV e nas matérias
publicadas pela grande imprensa. Até porque, como se trata de pleitos
municipais, é mais fácil a disseminação da ideia de que basta um bom gerente
para que os principais “problemas” estejam em boas mãos.
Cena do filme "Metropolis", de Fritz Lang |
Não exageremos
nas simplificações. Para além da manipulação – e para que esta funcione em
maior ou menor grau –, existem fortes determinações estruturais. É o caso da
construção altamente ideologizada de uma comunidade de indivíduos-cidadãos
livres e iguais, inclusive quanto ao acesso à informação política, em
sociedades marcadas por ferozes relações de exploração e dominação. Uma
propaganda do TSE que apresenta o eleitor como “patrão” expressa, de modo
enviesado e um tanto confuso, essa construção. Não ficaria mais próximo da vida
como ela é apresentar a maioria dos eleitores como “não patrões”?
Essa maioria não
patronal é o grande alvo do “horário político”. A ela se dirigem os candidatos
travestidos de super-heróis, prometendo, a cada quatro anos, resolver os
“problemas” de moradia, assistência médico-hospitalar, creche, esgoto, água
tratada, emprego, habitação etc. Só não explicam a origem de seus superpoderes
ungidos de espírito público e amor ao próximo, bem como por que,
historicamente, tudo isso desaparece assim que se encerra a estação de caça aos
votos.
Na vida real, os
“patrões” não costumam rasgar dinheiro. Não gastam seu precioso tempo
assistindo ao show dos horários eleitorais em que um promete mudar aeroportos
ou erguer aerotrens; outro afirma com a maior seriedade que eliminará
congestionamentos de trânsito aproximando locais de trabalho e de moradia (e
vice-versa); um terceiro garante que nomeará um ministério do nível de
ministros (grito socorro?) e que os serviços públicos funcionarão porque ele
aparecerá onde não o esperam (Jânio vem aí?).
Nenhum se refere
a um aspecto importantíssimo para a aplicação de políticas, inclusive no plano
municipal: nessa situação de crise capitalista que se aprofunda e de forte
comprometimento das contas nacionais com o pagamento da dívida pública a boa
parte dos grandes “patrões” (bancos, fundos de pensão, grandes empresas
industriais brasileiras e transnacionais), é quase nula a capacidade do Estado,
em seus distintos níveis, de colocar em prática políticas sérias, especialmente
sociais. Poupa-se o eleitor desse assunto enfadonho, até porque – reza o
saudável senso comum – crise capitalista não é assunto de prefeito ou vereador.
Melhor destacar que é amigo da presidenta e do governador; que é administrador
experiente e competente; que, assim como foi o maior ministro de tal área, será
o maior prefeito. E que, ao contrário do adversário, não é amigo do Maluf.
É claro que
existem diferenças políticas entre as candidaturas relevantes, aí se incluindo
partidos cuja competitividade eleitoral é ínfima. E, mesmo em seus melhores
momentos, as disputas eleitorais filtram e refratam os principais interesses
das forças sociais. Mas um importante aspecto comum em uma cidade altamente
politizada como São Paulo consiste no peso extraordinário que adquire a
interpelação do eleitorado como essencialmente passivo. Lutas populares, nem
pensar. Basta o voto (claro que em mim!) para mudar o destino da maioria
daqueles a quem a propaganda eleitoral se dirige. Um grande autor, em sua fase
juvenil, fez uma crítica mordaz desse duplo mundo, o “celestial”, onde,
apagadas as diferenças, todos viram “cidadãos”; e o “terreno”, onde o homem é o
lobo do homem. Nas grandes metrópoles brasileiras, essa dupla vida nos incomoda
quando deparamos com homens e mulheres pobres, expostos ao sol inclemente deste
inverno surreal, segurando cartazes de candidatos com os quais não têm nenhuma
afinidade político-eleitoral, até porque isso é o que menos importa. Para quem
paga, é tirar partido de mão de obra sobrante e, portanto, barata. Para quem
segura o rojão, também tanto faz ser placa de empreendimento imobiliário ou de
qualquer “político”. Melhor do que “compro ouro”. Para todos nós que passamos
de carro, por que se indignar? No melhor dos casos, cumpriremos nosso dever
cívico, depositando o voto na urna, e esperamos – quem sabe até cobrando – que
as “autoridades” resolvam a situação dessa gente com as quais (situação e
gente) nada temos a ver.
Exatamente
devido aos impactos que produz no sentido de desorganizar a ação coletiva e
autônoma dos dominados – inclusive no que se refere à produção e circulação de
informações –, esse processo de “despolitização” não é politicamente neutro. Ao
contrário, contribui, em São
Paulo ou em
São Luís , para a reprodução de um dos padrões de dominação e
exploração mais predatórios do planeta.
Também cabe
evitar a ideia igualmente simplista de que o esforço de manipulação opera sobre
um terreno vazio e passivo (um espécie de folha de papel em branco) e sempre
obtém os mesmos resultados. No fundamental, o que está em jogo é, em cada
conjuntura, a maior ou menor capacidade de intervenção popular na vida
política.
Essa capacidade
sofreu drástica redução nos últimos anos. Partidos antes combativos passaram
por fortes mutações, ao longo das quais obliteraram seus espaços de
participação (inclusive debates internos). Políticas sociais importantes para,
em caráter emergencial, melhorar as condições de vida de populações que estavam
em extrema miséria tampouco ampliaram aquela capacidade. Ao contrário,
reforçaram a percepção de que o governante é um pai (ou uma mãe), com especial
carinho para com os mais desprotegidos. E, como vimos, no plano nacional, sem
tempo para negociar com a totalidade dos professores das universidades federais
envolvidos numa ação coletiva (uma greve) durante mais de cem dias; e, no estadual/municipal,
o bárbaro massacre dos moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP),
também organizados na luta política por direitos constitucionais elementares.
Enquanto isso, o especulador não tem do que se queixar, e um candidato “do bem”
se vangloria de, quando secretário estadual da Educação, jamais ter deparado
com uma greve de professores.
Sorte dos
trabalhadores e trabalhadoras que não se metem em confusão, até porque esse
processo de despolitização segue pari
passu com o de judicialização da vida política. Mas por que nos
preocuparmos? Afinal, a essência da maioria dos candidatos pode se resumir no
refrão de um deles: passa o tempo todo pensando nos pobres.
Campanha de Lula em 1989: nascia um sonho |
Com essa
drástica redução da capacidade de ação popular coletiva, não é mais necessário,
como foi em 1989, que um importante dirigente industrial, Mário Amato, alerte
que, caso determinado candidato vencesse, 800 mil empresários abandonariam o
Brasil; ou, no pleito seguinte, outro peso pesado dos industriais advertisse
que a eleição do mesmo candidato seria o equivalente a uma bomba de hidrogênio
despencar sobre este país abençoado por Deus. Na campanha eleitoral de 2002, o
marqueteiro-mor do mesmo candidato, ao coordenar importantes figuras políticas
na feitura de uma propaganda televisiva, disse para todos erguerem a mão em
forma de L. “A mão direita ou a esquerda?”, perguntou alguém. “Como quiser”,
respondeu o pragmático guru, “quem for de direita, com a direita; quem for de
esquerda, com a esquerda.” Não por mera coincidência, assinou-se a “Carta aos
brasileiros”; apesar de algumas rusgas passageiras, houve forte apoio
empresarial; e o partido concluiu sua passagem para a idade da razão.
Os impactos
“despolitizadores” sobre os processos induzem a grande maioria das classes
populares a perceber as eleições como o único meio legítimo de fazer política.
Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem”
principalmente na televisão e no rádio (as chamadas redes sociais ainda
engatinham nesse processo). Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que,
além do conteúdo abertamente conservador, transforma tudo em entretenimento. Em
outros termos, o centro da atividade eleitoral mais visível se transfere para
meios de comunicação tremendamente oligopolizados e que reproduzem, na imensa
maioria das transmissões, (novelas, noticiários, propagandas) processos de
infantilização. Lutas pelo aprofundamento da participação política no Brasil
requerem democratizar e diversificar os meios de comunicação.
Quando
Schumpeter escreveu seu célebre livro sobre democracia, o desfecho da Segunda
Guerra Mundial, fortemente articulada a uma crise do capitalismo, ainda estava
incerto e restavam poucas democracias liberais no planeta. Em um livro
schumpeteriano bem mais simplista, A
terceira onda, Samuel Huntington se congratulava, em 1993, pelo
espraiamento desse regime por grande parte do planeta. Todavia, no atual
contexto de profunda crise capitalista, tendem a aumentar os desencontros entre
esse regime e a participação popular. Se Schumpeter e tantos outros negam a
possibilidade do poder do povo, diversos estudiosos, como Slavoj Žižek, ao
abordar uma questão bem mais específica, recorrem a uma expressão cada vez mais
em voga para nos referirmos a essa reviravolta sinistra: a democracia se volta
contra os povos.
Eleições 2012: o debate interditado |
Diante dos
riscos de que o modelo schumpeteriano de democracia chegue ao seu esgotamento
no bojo da atual crise, é urgente inventar novas e profundas formas de efetiva
participação popular na política.
Resta saber se
isso é possível sem reinventar a sociedade.
(*) Professor do
Departamento de Política da PUC-SP
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