Nas sociedades modernas ocorre às vezes a
chamada “judicialização da política”, um fenômeno que geralmente se manifesta quando
o Executivo extrapola seus poderes; neste caso, o direito é invocado como
corretivo não da política em si, mas de seu desvio autoritário, mais
especificamente, da negação do princípio da tolerância. Mas, outras vezes, como
está ocorrendo no caso do julgamento do “mensalão”, a Justiça se arvora em árbitra
suprema e substituta da política como forma de resolver os conflitos numa sociedade democrática.
Supremo político
Por Lincoln Secco, especial para o
Viomundo
Guilherme Marechal |
Conta-nos George Duby que no século XII o
cavaleiro Guilherme Marechal descobriu uma jovem dama e um monge em fuga. Ao saber que se
dirigiam a uma cidade para empregar seu dinheiro a juros, ele ordenou a seu
escudeiro que lhes retirassem o dinheiro. Para ele aquilo não era roubo! Ele
não tocou na jovem, não impediu que continuassem e nem lhes tomou a bagagem.
Nem mesmo quis ficar com o dinheiro tomado pelo escudeiro. É que para a moral
da cavalaria o metal era vil, a acumulação desonrada e a usura um pecado.
Ninguém nos dias de hoje concordaria com
aquele “Direito Medieval”. Todo o Direito corresponde ao seu tempo e à
leitura política que predomina numa sociedade.
No caso do Supremo Tribunal Federal, a sua
natureza política se torna quase transparente. É que os juízes do STF não fazem
concurso, eles são indicados. A Constituição garante ao Presidente da República
e à maioria que ele constitui no Senado Federal, o poder de interferir na sua
composição.
Dessa forma é dever constitucional do
presidente nomear pessoas que estejam de acordo com a correlação de forças
políticas que a população livremente estabeleceu pelo voto. Quando Fernando
Henrique Cardoso foi eleito, ele nomeou juízes que estavam afinados com o seu
projeto liberal de privatizações. Nomeou pessoas que deveriam criar o
ordenamento jurídico dentro do qual ele ergueu o modelo econômico escolhido
pelo povo. Caberia aos juízes inviabilizar questionamentos que duvidassem das
privatizações, por exemplo.
Em 2002 o povo escolheu um novo modelo de
desenvolvimento oposto ao anterior e era esperado do presidente que nomeasse
para o STF juízes que calçariam a sua opção pelo social com uma segurança
jurídica mínima que impedisse ações contra sua política de cotas ou seus
programas de transferência de renda, por exemplo. Mas, ao contrário de
FHC, Lula seguiu uma interpretação errônea do que seria a República.
O STF tenta substituir a política como mediadora dos conflitos |
Ocorre que se o STF não é politizado
pelo presidente ele o é pela oposição. É que o Direito não é só um conjunto de
fatos ou normas, como rezam os positivistas, mas a expressão de uma
relação de poder. Se um lado hesita em exercê-lo o outro o fará. Nada
disso atenta contra a Democracia. Esta é apenas a forma de um domínio
encoberto pelo consenso da sociedade. A violação do direito ocorre se
um dos lados usa a força e se põe fora da legalidade.
Até ontem, o consenso jurídico era o de
que na dúvida prevalecia a absolvição do réu. Cabia ao acusador fornecer a
prova, e não o contrário. Provas não podiam ser substituídas pela crença
espírita de que uma pessoa devia necessariamente conhecer determinado fato.
Todo cidadão tinha o direito de ser julgado em mais de uma instância.
No século XIX havia escravos que iam às
barras do tribunal para requerer a liberdade alegando que teriam ingressado
cativos no Brasil depois da proibição do tráfico. E quando perdiam num
Tribunal da Relação, podiam recorrer até a última instância,
embora a nossa mais alta corte defendesse a escravidão.
Olga Benário, vítima do STF |
No Estado Novo esta mesma corte
autorizou a entrega de uma judia comunista para morrer nas Câmaras de Gás de
Hitler. Esteve dentro da estrita legalidade de uma ditadura. Em 1988 recebemos
um ordenamento jurídico resultante da luta contra o terrorismo de Estado que
imperou no Brasil depois de 1964.
A condenação de José Dirceu mostra que o
consenso de 1988 mudou. Doravante, empresários, políticos e lideres de
movimentos sociais terão grande dificuldade de se defender no STF.
A não ser que o julgamento tenha sido
de exceção!
Neste caso, tudo voltará a ser como antes.
Mas então a ilusão que a esquerda acalentou na democracia será posta em causa e
ela poderá se voltar aos exemplos tão temidos pela oposição, como a Argentina,
a Bolívia, o Equador e a Venezuela.
Lincoln Secco é professor do Departamento
de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP
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