Carlos Lacerda, governador da Guanabara, ao lado dos golpistas de 1964 |
A
direita brasileira, que nos últimos anos tentou repaginar o discurso moralista
de Carlos Lacerda, ficou desmoralizada com os mais recentes escândalos de
corrupção que envolveram Demóstenes Torres e José Roberto Arruda – dois de seus
quadros mais incensados pela “mídia Casa Grande”. Com isso, agarraram-se com
todas as forças ao julgamento do “mensalão” no STF, tentando transformá-lo no “julgamento do século”, como se não houvesse outros escândalos, como a compra
de votos para aprovar a reeleição de FHC, a privataria na venda das estatais, o
caso Sivam, a pasta Rosa, o mensalão tucano etc. etc. etc.
Ademais,
ao contrário do que supõe o moralismo neo-udenista,
a corrupção não é um fenômeno individual, nem a política é uma atividade
intrinsecamente corrupta. A corrupção é fruto do abuso do poder econômico;
segundo o pensador Norberto Bobbio, ela tende a se acentuar com a existência de
um sistema representativo imperfeito e com o acesso discricionário de uma
oligarquia ao poder decisório. “Quanto mais ameaçada se sentir, tanto mais a
elite recorrerá a meios ilegais e à corrupção para se manter no poder”,
ensinava o mestre italiano.
Moralidade
de um lado só
Paulo
Moreira Leite, em seu blog
Meu
ponto de vista é que o mensalão não foi apenas caixa 2 para campanhas eleitorais
nem apenas um esquema de desvio de recursos públicos. Foi uma combinação de
ambos, como sempre acontece em sistemas eleitorais que permitem ao poder
econômico privatizar o poder político com contribuições eleitorais privadas.
Um
julgamento justo será aquele capaz de distinguir uma coisa da outra, uma
acusação da outra, um réu do outro.
Quem
combate o financiamento público de campanha não quer garantir a liberdade de
expressão financeira dos eleitores, como, acredite, alguns pensadores do Estado
mínimo argumentam por aí e nem sempre ficam ruborizados.
Quer,
sim, garantir a colonização do Estado pelo poder econômico, impedindo que um
governo seja produto da equação 1 homem = 1 voto.
É aqui o centro da questão.
Tesoureiros
políticos arrecadam para seus candidatos, empresários fazem contribuições
clandestinas enquanto executivos que têm posições de mando em empresas do
Estado ajudam no desvio. Operadores organizam a arrecadação eleitoral e contam
com portas abertas para tocar negócios privados. Fica tudo em família – quando
são pessoas com o mesmo sobrenome.
Foi
assim no mensalão tucano, também, com o mesmo Marcos Valério, as mesmas
agências de publicidade e o mesmo Visanet. Um publicitário paulista
garante pelos filhos que em 2003 participava de reuniões com Marcos
Valério para fazer acertos com tucanos e petistas. Era tudo igual, no mesmo
endereço, duas fases do mesmo espetáculo.
O mensalão tucano: foi diferente? |
Só não
houve igualdade na hora de investigar e julgar. Por decisão do mesmo tribunal,
acusados pelos mesmos crimes, os mesmos personagens receberam tratamentos
diferentes quando vestiam a camisa tucana e quando vestiam a camisa petista. É
tão absurdo que deveriam dizer, em voz baixa: “Sou ou não sou?” Ou: “Que rei
sou eu?”
Mesmo o
mensalão do DEM, que, sob certos aspectos, envolveu momentos de muito mau
gosto, foi desmembrado.
Diante
da hipocrisia absoluta da legislação eleitoral, sua contrapartida necessária é
o discurso moralista, indispensável para dar uma satisfação ao cidadão comum.
Os escândalos geram um sentimento de revolta e inconformismo, estimulando
o coro de “pega ladrão!”, estimulado para “dar uma satisfação à sociedade” ou
para “dar um basta na impunidade!” Bonito e inócuo.
Perverso, também.
Até
porque é feito sempre de forma seletiva, controlada, por quem tem o poder de
escolher os inimigos, uma força que está muito acima de onze juízes. Estes são,
acima de tudo, pressionados a andar na linha…
A "Marcha da Família com Deus pela Liberdade": a classe média apoia o golpe |
Em 1964,
o mais duradouro golpe contra a democracia brasileira em sua história teve como
um dos motes ilusórios a eliminação da corrupção. O outro era eliminar a
subversão, como nós sabemos. Isso demonstra não só que a corrupção é antiga,
mas que a manipulação da denúncia e do escândalo também é. Também lembra que
está sempre associada a uma motivação política.
Entre
aqueles que se tornaram campeões da moralidade de 64, um número considerável de
parlamentares recebeu, um ano e meio antes do golpe, US$ 5 milhões da CIA para
tentar emparedar João Goulart no Congresso. Depois do 31 de março, essa turma é
que deu posse a Ranieri Mazzilli, alegando que Jango abandonara a presidência
embora ele nunca tenha pedido a renúncia.
Rubens Paiva: assassinado por investigar quem financiou os golpistas |
Seis
anos depois do golpe, o deputado Rubens Paiva, que liderou a CPI que apurou a
distribuição de verbas da CIA e foi cassado logo nos primeiros dias, foi sequestrado
e executado por militares que diziam combater a subversão e a corrupção. Não
informam sequer o que aconteceu com seu corpo. Está desaparecido e ninguém sabe
quem deu a ordem nem quem executou. Segredo dos que combatiam a subversão
e a corrupção, você entende.
O alvo
era outro. A democracia, a sempre insuportável equação de 1 homem = 1 voto.
Eu acho
curioso que a oposição e grande parte da imprensa – nem sempre elas se
distinguem, vamos combinar, e recentemente uma executiva dos jornais disse que
eram de fato a mesma coisa – tenham assumido a perspectiva de associar, quatro
décadas depois, a corrupção com aquelas forças e aquelas ideias que, em 64, se
chamavam de subversão.
A coisa
pretende ser refinada, embora pratique-se uma antropologia de segunda mão, uma
grosseria impar. Não faltam intelectuais para associar Estado forte a maior
corrupção, proteção social a paternalismo e distribuição de renda à troca de
favores. Ou seja: a simples ideia de bem-estar social, conforme essa visão, já
é um meio caminho da corrupção.
Bolsa-Família,
claro, é compra de votos. Como o mensalão, ainda que nenhuma das 300
testemunhas ouvidas no inquérito tenha confirmado isso e o próprio calendário
das votações desminta uma conexão entre uma coisa e outra. Roberto Jefferson
disse, na Policia Federal, que o mensalão era uma “criação mental”, mas a
denúncia reafirma que a distribuição de recursos era compra de consciência, era
corrupção – você já viu aonde essa turma pretende chegar.
A
corrupção dos subversivos é intolerável enquanto a dos amigos de sempre vai
para debaixo do tapete.
Desse
ponto de vista, eu acho mesmo que o julgamento tem um sentido histórico. Não
por ser inédito, mas por ser repetitivo, por representar uma nova tentativa de
ajuste de contas. Não é uma farsa, como lembrou Bob Fernandes (...).
A farsa
é o contexto.
Veja
quantas iniciativas já ocorreram. O desmembramento, que só foi oferecido aos
tucanos. O fatiamento, que nunca havia ocorrido num processo penal e que
apanhou o revisor de surpresa.
Agora
que a mudança de regras garantiu que Cezar Peluso possa votar pelo menos em
algumas fases do processo (“é melhor do que nada”, diz o procurador geral) já
se coloca uma outra questão: o que acontece se o plenário, reduzido a dez,
votar em empate? Valerá a regra histórica, que eu aprendi com uns oito anos de
idade, pela qual em dúvida os réus se beneficiam? Ou o presidente Ayres Britto
irá votar duas vezes?
E, se,
mesmo assim, houver uma minoria de quatro votos, o que acontece? Vai-se aceitar
a ideia de que é possível tentar um recurso?
Ali, no
arquivo das possibilidades eventuais, surgiu uma conversa do ministro Toffoli,
às 2 e meia da manhã, numa festa em Brasília. Já tem sido usada para dar liçãozinha
de moral no ministro. No vale-tudo, servirá para criar constrangimento.
Enquanto
isso, os visitantes que chegam a Praça dos Três Poderes demonstram mais
interesse em tirar foto turística para o Facebook do que em seguir os debates,
como revelou reportagem de O Globo. Calma. O julgamento não vai ser tão rápido
como se gostaria. Com a cobertura diária no horário nobre, manchetes
frequentes, é possível mudar isso…
O golpe de 1964: os militares diziam que iriam lutar contra a corrupção |
Minha
mãe ria muito de uma vizinha, que dias antes do 31 de março de 64 foi às ruas
de São Paulo protestar a favor de Deus, da Família, contra a corrupção e a
subversão. Quando essa vizinha descobriu, era um pouco tarde demais e a filha
dela já tinha virado base de apoio da guerrilha do PC do B. O diplomata e
historiador Moniz Bandeira conta que a CIA trouxe até padre americano para
ajudar na organização daqueles protestos.
A
marcha de 64 foi um sucesso, escreveu o embaixador norte-americano Lincoln
Gordon, num despacho enviado a seus chefes em Washington, já envolvidos no
apoio e nos preparativos do golpe. Mas era uma pena, reparou Gordon, que havia
poucos trabalhadores e homens do povo.
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