Nas sociedades democráticas desenvolvidas, em que o
mercado fala mais alto do que o eleitor, o voto livre se tornou um paradoxo. O
cidadão é livre para escolher, mas desde que faça a “escolha certa” – aquela
que não assuste os mercados. Como disse o filósofo Slavoj Zizek, “quando se faz
a escolha errada (como quando a Irlanda rejeitou a Constituição da União
Europeia), ela é tratada como erro e o establishment, imediatamente, exige que se repita
o processo ‘democrático’, para que o erro seja reparado”.
A ideologia neoliberal se tornou uma religião - tão
ortodoxa e decrépita quanto o catolicismo no Renascimento. Como lembrou T.
S. Eliot (Notes towards the Definition of
Culture), há
momentos em que as heresias são a única maneira de renovar as grandes religiões.
Em outras palavras, é essa a posição em que se encontra a ideia de Europa,
quase uma religião. Só uma nova “heresia” pode salvar o legado europeu de democracia,
tolerância e solidariedade igualitária.
Essa heresia poderia ter sido o Syriza, a coalizão grega
que rejeitava o plano de austeridade que foi imposto à Grécia pela “troika”
(FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia). Agora, quem sabe, ela possa
ser o caminho proposto pela pequena, mas valente Islândia. Este texto, do Paulo
Moreira Leite, explica um pouco como foi a adoção desse caminho não-ortodoxo.
Fanáticos do mercado perdem de novo na Islândia
PAULO MOREIRA LEITE, em seu blog
A premiê islandesa Jóhanna Siguroardóttir |
Há dois motivos para
se prestar atenção à política da Islândia, mas a maioria das pessoas só costuma
prestar atenção num deles.
A primeira ministra
é Jóhanna Sigurôardóttir, primeira chefe de governo assumidamente homossexual
do planeta. Mãe de dois filhos, divorciada, quando a união entre pessoas do
mesmo sexo foi legalizada a primeira ministra oficializou o casamento com uma
escritora.
O outro motivo para
se prestar atenção na Islândia é político. Seu presidente, o socialista Olafur
Ragnar Grimsson, que foi reeleito ontem com mais de 52,7% dos votos, é uma das
personalidades mais relevantes da crise econômica mundial.
Enquanto os demais
governos europeus caem como dominó, repudiados por eleitores que se recusam a
pagar a conta de uma crise criada pelo cassino financeiro, Grimsson recebeu o
quinto mandato consecutivo. Sua margem de votos equivale a uma vitória em
primeiro turno.
A razão é simples.
Recusando-se a sacrificar a população em nome da saúde dos bancos, em duas
ocasiões Grimsson vetou uma lei que pretendia obrigar o país a pagar a conta
pelos prejuízos do cassino financeiro de 2008, que levou o principal banco do
país à falência.
O presidente Olafur Grimsson |
Governos muito mais
poderosos e influentes, da Inglaterra e da Holanda, cobravam a conta a
população dos 400 mil habitantes da Islândia.
Abrigo de um sistema de bem-estar
social típico dos países nórdicos, com uma boa renda per capita e uma das
sociedades mais equilibradas do planeta, nas décadas anteriores a Islândia fora
transformada num paraíso neoliberal, abandonando a atividade industrial
tradicional, em torno da pesca, para se transformar num paraíso financeiro e
fiscal sob encomenda para grandes bancos europeus.
A ideia para
enfrentar a crise depois da quebra de 2008 era o modelito dos fanáticos do
mercado, aplicado na Grécia, na Espanha, em Portugal e Itália: cortar
investimentos sociais e aumentar impostos, elevando o desemprego e aumentando
as receitas dos bancos.
Com seu veto,
Grimsson abriu caminho para um referendo sobre o tema – venceu a proposta de
não pagar a dívida e arrumar a economia, com prioridade a investimentos que
gerassem empregos e crescimento. Seus adversários levantaram o previsível
espantalho da crise sem fim, mas se deram mal, como demonstra a votação de
ontem.
Essa trajetória
inovadora explica a reação preventiva dos mercados quando, no final de 2011,
então primeiro ministro grego Georges Papandreou resolveu fazer um referendo
sobre o plano de austeridade imposto pela União Europeia. Papandreou foi
obrigado a renunciar ao cargo em menos de uma semana. O capítulo seguinte da
história nós sabemos: o país foi entregue a um homem de confiança do Goldman
Sachs, que, após duas eleições apertadas e pouco conclusivas, transferiu o
governo para um candidato conservador.
A cena atual na
Grécia é previsível: o pacote de austeridade é tão rico em sacrifícios e pobre
em perspectivas reais que dias depois da vitória, quando fez campanha a seu
favor, o novo governo já pede uma revisão de suas condições. A comparação com a
Islândia mostra que há opção.
Você já deve ter
lido um bom número de articulistas que se queixam que faltam governantes duros,
com coragem de pedir sacrifícios da população. Eles gostam de acusar esses
governos de populistas. É puro xingatório de quem apoia políticas que não tem
voto – mas prefere se esconder atrás de um conceito político que já teve
momentos de maior prestígio no passado.
O sucesso único de
Grimsson mostra o contrário. Não faltam autoridades dispostas a servir aos
interesses financeiros e entregar a população à própria sorte. São uma
unanimidade – ou quase.
A reeleição de
Grimsson apenas confirma uma lição óbvia das democracias: a população rejeita
políticos.
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