As comemorações de 9 de julho em São Paulo exaltam uma
rebelião oligárquica de oito décadas atrás. Curiosamente, outra revolta,
deflagrada em 5 de julho de 1924, que contou com forte componente popular,
passa em brancas nuvens nos calendários oficiais.
Gilberto
Maringoni, na Carta Maior
Os dias 5 e 9 de julho condensam caminhos
pelos quais a história paulista poderia seguir. São dois tabus no estado. Um é
esquecido, o outro é exaltado.
A primeira data marca uma violenta reação
ao poder do atraso, tendo por base setores médios e populares. E a segunda
representa a exaltação do atraso, capitaneada pela elite regional.
Soldados na Revolução de 1924 |
Dia 5 de julho, há 88 anos, uma intrincada
teia de tensões históricas desaguou no episódio que ficaria conhecido como
Revolução de 1924. Suas raízes estão no agravamento de problemas sociais, no
autoritarismo dos governos da República Velha e em descontentamentos nos meios
militares, que já haviam gerado o movimento tenentista, dois anos antes.
Naquele duro inverno, em meio a uma crise
econômica, eclodiu uma nova sublevação. Tropas do Exército e da Força Pública
tomaram quartéis, estações de trem e edifícios públicos e expulsaram da cidade
o governador Carlos de Campos. No comando, em sua maioria, camadas da média
oficialidade. Quatro dias depois, era instalado um governo provisório, que se
manteria até 27 de julho. O país vivia sob o estado de sítio do governo Arthur
Bernardes (1922-1926).
Entre as reivindicações dos revoltosos
estavam: “1º Voto secreto; 2º Justiça gratuita e reforma radical no sistema de
nomeação e recrutamento dos magistrados (…) e 3º Reforma não nos programas, mas
nos métodos de instrução pública”. No plano político, destaca-se ainda “A
proibição de reeleição do Presidente da República (…) e dos governadores dos
estados”.
Várias guarnições de cidades próximas
aderiram ao movimento. Apesar da falta de um programa claro, setores do
operariado organizado apoiaram os revolucionários e exortaram a população a
auxiliá-los no que fosse possível.
Bombas, tiros e mortes
As ruas da capital foram palco de intensos
combates, com direito a fuzilaria, granadas e tiros de morteiros. Cerca de
trezentas trincheiras e barricadas foram abertas em diversos bairros.
A partir do dia 11, o governador deposto,
instalado nas colinas da Penha, seguindo determinações do presidente da
República, decidiu lançar uma carga de canhões em direção ao centro. O objetivo
era aterrorizar a população e forçá-la a se insurgir contra os rebelados.
De forma intermitente, os bairros
operários da Mooca, Ipiranga, Belenzinho, Brás e Centro sofreram bombardeio por
vários dias. Casas modestas e fábricas foram reduzidas a escombros e cadáveres
multiplicavam-se pelas ruas.
Sem conseguir dobrar a resistência, o
governo federal decidiu bombardear a cidade com aviões de combate.
O fim da rebelião
Três semanas depois de iniciada, a
rebelião foi acuada. Dos 700 mil habitantes da cidade, cerca de 200 mil fugiram
para o interior, acotovelando-se nos trens que saiam da estação da Luz. O saldo
dos 23 dias de revolta foi 503 mortos e 4.846 feridos. O número de desabrigados
passou de vinte mil. No final da noite do dia 28, cerca de 3,5 mil insurgentes
retiraram-se da cidade com pesado armamento em três composições ferroviárias. O
destino imediato era Bauru, no centro do estado.
A Coluna Migue Costa-Luís Carlos Prestes |
Deixaram um manifesto, agradecendo o apoio
da população: “No desejo de
poupar São Paulo de uma destruição desoladora, grosseira e infame, vamos mudar
a nossa frente de trabalho e a sede governamental. (…) Deus vos pague o
conforto e o ânimo que nos transmitistes”.
As tensões não cessariam. No ano seguinte,
parte dos revolucionários engrossaria a Coluna Prestes (1925-1927). Mais tarde,
outros tantos protagonizariam – e venceriam – a Revolução de 30.
Promovida pelas camadas médias do meio
militar, o levante ganhou apoio de parcelas pobres da população. Talvez por
isso seja chamada de “a revolução esquecida”.
A revolução que não foi
A segunda data, 9 de julho, é marcada pelo
estopim de uma revolução que não faz jus ao nome. É exaltada e cultuada como
uma manifestação de defesa intransigente da democracia, ela faz parte da
criação de certa mitologia gloriosa para São Paulo.
O evento, em realidade, representa a
sublevação da oligarquia cafeeira contra a Revolução de 30, que a retirou do
governo e se constituiu no marco definidor do Brasil moderno.
Aquele processo não pode ser visto apenas
como uma tomada de poder por um punhado de descontentes. Suas causas envolvem
as contrariedades nos meios militares e tensões do próprio desenvolvimento do
país. A crise de 1929 acabara de chegar, colocando em xeque o liberalismo
reinante.
A Revolução consolidou a expansão das
relações capitalistas, que trouxe em seu bojo a integração ao mercado – via
Estado – de largos contingentes da população. O mecanismo utilizado foi a
formalização do trabalho.
As novas relações sociais e a intervenção
do Estado na economia – decisiva para a superação da crise e para o avanço da
industrialização – implicaram uma reconfiguração e uma modernização
institucional do país. A conseqüência imediata foi a perda da hegemonia da
economia cafeeira, centrada principalmente em São Paulo e parte de
Minas Gerais. Percebendo as mudanças no horizonte, as classes dominantes locais
foram à luta em 1932.
A locomotiva e os vagões
Explodiu então a rebelião armada das
forças insepultas da República Velha e da elite paulista, querendo recuperar
seu domínio sobre o país.
A oligarquia conquistou popularidade para sua causa |
Tendo na linha de frente a Associação
Comercial e a Federação das Indústrias (FIESP), o levante tinha entre seus
líderes sobrenomes importantes do Estado, como Simonsen, Mesquita, Silva Prado,
Pacheco e Chaves, Alves de Lima e outros. O movimento contou com expressivo
apoio popular, uma vez que os meios de comunicação (rádio, jornais e revistas)
reverberaram as demandas das classes altas.
A campanha que precedeu a sublevação
exacerbou uma espécie de nacionalismo paulista, incentivado por grupos
separatistas. Entre esses, notabilizava-se o escritor Monteiro Lobato. A
síntese da aversão local ao restante do país expressava-se na difundida frase,
que classificava o estado como “a locomotiva que puxa 21 vagões vazios”, em
referência às demais unidades da federação.
Contradição em termos
O objetivo do movimento, derrotado
militarmente em 4 de outubro, era derrubar o governo provisório de Getúlio
Vargas e aprovar uma nova Constituição. Daí a criação do nome “revolução
constitucionalista”, uma contradição em termos. Revolução
é uma ação decidida a destruir uma ordem estabelecida. A expressão “constitucionalista”
expressava uma tentativa recuperação do status quo, regido pela Carta de 1891.
Se é “constitucionalista”, não poderia ser “revolução”.
A "Revolução" de 1932 e a construção do mito heróico |
Os sempre proclamados “ideais de 1932” são vagas referências à
constitucionalidade e à democracia. Mas não existia, por parte da elite,
nenhuma formulação que fosse muito além da recuperação da hegemonia paulista
(leia-se, dos cafeicultores).
Exatos oitenta anos depois, o 9 de julho
segue comemorado como a data magna do estado, uma espécie de 7 de setembro local.
E os acontecimentos de 5 de julho de 1924 continuam como páginas obscuras de um
passado distante.
A elite paulista voltaria ao poder em
1994, pelas mãos de Fernando Henrique Cardoso e do PSDB. Seu mote foi dado no
discurso de despedida do senado, em 1994: “Um pedaço do nosso passado político
ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. Refiro-me ao legado
da Era Vargas, ao seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado
intervencionista”.
Os objetivos desse setor continuaram os mesmos,
décadas depois: realizar a contra-Revolução de 30.
As tensões entre as datas – 5 e 9 de julho
– expressam duas vias colocadas até hoje nos embates políticos paulistas: a
saída conservadora e a saída antielitista.
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista,
é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A
Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez”
(Editora Fundação Perseu Abramo).
Nenhum comentário:
Postar um comentário