O ex-presidente americano Jimmy Carter |
Jimmy Carter governou
os EUA por um único mandato (1977-1980) e foi um dos mais desastrados presidentes
americanos. Apesar de ter um discurso em favor da defesa dos direitos humanos –
o que incomodou ditaduras pró-americanas como e a brasileira –, sua visão de
mundo era tão naïve e provinciana que sua política externa foi uma sucessão de
desastres. Carter apoiou até o fim as sangrentas ditaduras do xá Reza Pahlevi,
no Irã, e de Anastasio Somoza Debayle, na Nicarágua, o que só fez acelerar as
revoluções que varreram os regimes daqueles países. No Irã, com a vitória dos
fundamentalistas islâmicos, militantes da Guarda Revolucionária invadiram a
embaixada dos EUA em Teerã e mantiveram os diplomatas reféns por 444 dias. Uma
operação militar de resgate organizada pela CIA acabou em desastre e humilhou ainda
mais os americanos. Para piorar, sofrendo as conseqüências econômicas da Guerra
do Vietnã e das crises do petróleo, a economia americana entrou em crise e Carter
terminou o mandato com uma inflação recorde, de 12%.
Tudo isso
abriu caminho para a vitória do republicano Ronald Reagan, em 1980. Depois que deixou
a Casa Branca, Carter enveredou por uma cruzada efetiva em defesa dos direitos
humanos. Participou como observador de inúmeras eleições e começou a desafiar
Estados – coisa que, enquanto presidente, não se dispôs a fazer. Ele teve a
coragem, por exemplo, de criticar duramente a política de Israel, classificando
a postura do país em relação aos palestinos como “apartheid”, numa comparação
com o odioso regime de supremacia branca da África do Sul. Dessa maneira, ganhou
o respeito de entidades independentes de defesa dos direitos humanos. Agora,
aos 87 anos, mas ainda lúcido, Carter volta suas baterias contra a política
externa de seu país, gestada pelos neocons de W. Bush mas mantida quase que
integralmente pelo democrata Barack Obama. Como um franco atirador, ele responsabiliza
tanto republicanos quanto democratas pelo desastre moral do país. Esse texto,
embora ainda seja um pouco ingênuo ao idealizar o passado dos Estados Unidos, surpreende
por ser um libelo contra o imperialismo escrito por quem já o liderou.
EUA: Um
recorde raro e cruel
Por Jimmy Carter
Por Jimmy Carter
Revelações de que altos funcionários do governo dos Estados Unidos
decidem quem será assassinado em países distantes, inclusive cidadãos
norte-americanos, são a prova apenas mais recente, e muito perturbadora, de
como se ampliou a lista das violações de direitos humanos cometidas pelos EUA.
Esse desenvolvimento começou depois dos ataques terroristas de 11/9/2001; e tem
sido autorizado, em escala crescente, por atos do Executivo e do Legislativo
norte-americanos, dos dois partidos, sem que se ouça protesto popular.
Resultado disso, os EUA já não podem falar, com autoridade moral, sobre esses
temas cruciais.
Por mais que os EUA tenham cometido erros no passado, o crescente
abuso contra direitos humanos na última década é dramaticamente diferente de
tudo que algum dia se viu. Sob liderança dos EUA, a Declaração Universal dos
Direitos do Homem foi adotada em 1948, como “fundamento da liberdade, justiça e
paz no mundo”. Foi compromisso claro e firme, com a ideia de que o poder não
mais serviria para acobertar a opressão ou a agressão a seres humanos. Aquele
compromisso fixava direitos iguais para todos, à vida, à liberdade, à segurança
pessoal, igual proteção legal e liberdade para todos, com o fim da tortura, da
detenção arbitrária e do exílio forçado.
Aquela Declaração tem sido invocada por ativistas dos direitos
humanos e da comunidade internacional, para trocar, em todo o mundo, ditaduras
por governos democráticos, e para promover o império da lei nos assuntos
domésticos e globais. É gravemente preocupante que, em vez de fortalecer esses
princípios, as políticas de contraterrorismo dos EUA vivam hoje de claramente
violar, pelo menos, 10 dos 30 artigos daquela Declaração, inclusive a proibição
de qualquer prática de “castigo cruel, desumano ou tratamento degradante.”
Legislação recente legalizou o direito do presidente dos EUA, para
manter pessoas sob detenção sem fim, no caso de haver suspeita de ligação com
organizações terroristas ou “forças associadas” fora do território dos EUA – um
poder mal delimitado que pode facilmente ser usado para finalidades
autoritárias, sem qualquer possibilidade de fiscalização pelas cortes de
justiça ou pelo Congresso (a aplicação da lei está hoje bloqueada, suspensa por
sentença de um (a) juiz(a) federal). Essa lei agride o direito à livre
manifestação e o direito à presunção de inocência, sempre que não houver crime
e criminoso determinados por sentença judicial – mais dois direitos protegidos
pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, aí pisoteados pelos EUA.
Além de cidadãos dos EUA assassinados em terra estrangeira ou
tornados alvos de detenção sem prazo e sem acusação clara, leis mais recentes
suspenderam as restrições da Foreign Intelligence Surveillance Act, de 1978,
para admitir violação sem precedentes de direitos de privacidade, legalizando a
prática de gravações clandestinas e de invasão das comunicações eletrônicas dos
cidadãos, sem mandato. Outras leis autorizam a prender indivíduos pela
aparência, modo de trajar, locais de culto e grupos de convivência social.
Além da regra arbitrária e criminosa, segundo a qual qualquer
pessoa assassinada por aviões-robôs comandados à distância (drones) por pilotos
do exército dos EUA é automaticamente declarada inimigo terrorista, os EUA já
consideram normais e inevitáveis também as mortes que ocorram ‘em torno’ do
‘alvo’, mulheres e crianças inocentes, em muitos casos. Depois de mais de 30
ataques aéreos contra residências de civis, esse ano, no Afeganistão, o
presidente Hamid Karzai exigiu o fim desse tipo de ataque. Mas os ataques
prosseguem em áreas do Paquistão, da Somália e do Iêmen, que sequer são zonas
oficiais de guerra. Os EUA nem sabem dizer quantas centenas de civis inocentes
foram assassinados nesses ataques – todos eles aprovados e autorizados pelas
mais altas autoridades do governo federal em Washington. Todos
esses crimes seriam impensáveis há apenas alguns anos.
Essas políticas têm efeito evidente e grave sobre a política
exterior dos EUA. Altos funcionários da inteligência e oficiais militares, além
de defensores dos direitos das vítimas nas áreas alvos, afirmam que a violenta
escalada no uso dos drones como armas de guerra está empurrando famílias
inteiras na direção das organizações terroristas; enfurece a população civil
contra os EUA e os norte-americanos; e autoriza governos antidemocráticos, em
todo o mundo, a usar os EUA como exemplo de nação violenta e agressora.
Prisioneiros em Guantánamo |
Simultaneamente, vivem hoje 169 prisioneiros na prisão
norte-americana de Guantánamo, em Cuba. Metade desses prisioneiros já foi
considerada livre de qualquer suspeita e poderia deixar a prisão. Mas nada
autoriza a esperar que consigam sair vivos de lá. Autoridades do governo dos
EUA revelaram que, para arrancar confissões de suspeitos, vários prisioneiros
foram torturados por torturadores a serviço do governo dos EUA, submetidos a
simulação de afogamento mais de 100 vezes; ou intimidados sob a mira de armas
semiautomáticas, furadeiras elétricas e ameaças (quando não muito mais do que
apenas ameaças) de violação sexual de esposas, mães e filhas. Espantosamente,
nenhuma dessas violências podem ser usadas pela defesa dos acusados, porque o
governo dos EUA alega que são práticas autorizadas por alguma espécie de ‘lei
secreta’ indispensável para preservar alguma “segurança nacional”.
Muitos desses prisioneiros – mantidos em Guantánamo como, noutros
tempos, outros inocentes também foram mantidos em campos de concentração de
prisioneiros na Europa – não têm qualquer esperança de algum dia receberem
julgamento justo nem, sequer, de virem a saber de que crimes são acusados.
Em tempos nos quais o mundo é varrido por revoluções e levantes
populares, os EUA deveriam estar lutando para fortalecer, não para enfraquecer
cada dia mais, os direitos que a lei existe para garantir a homens e mulheres e
todos os princípios da justiça listados na Declaração Universal dos Direitos do
Homem. Em vez de garantir um mundo mais seguro, a repetida violação de direitos
humanos, pelo governo dos EUA e seus agentes em todo o mundo, só faz afastar
dos EUA seus aliados tradicionais; e une, contra os EUA, inimigos históricos.
A revolta árabe sacudiu o Oriente Médio |
Como cidadãos norte-americanos preocupados, temos de convencer
Washington a mudar de curso, para recuperar a liderança moral que nos
orgulhamos de ter, no campo dos direitos humanos. Os EUA não foram o que foram
por terem ajudado a apagar as leis que preservam direitos humanos essenciais.
Fomos o que fomos, porque, então, andávamos na direção exatamente oposta à que
hoje trilhamos.
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