Para desafinar o coro dos contentes:
Dom Eugênio Sales era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura
Dom Eugênio Sales era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura
JOSÉ RIBAMAR BESSA
FREIRE, No Blog Bob Fernandes
Cartaz do filme "Uma cidade sem passado" |
O tratamento que a mídia
deu à morte do cardeal dom Eugenio Sales, ocorrida na última segunda-feira, com
direito à pomba branca no velório, me fez lembrar o filme alemão "Uma
cidade sem passado", de 1990, dirigido por Michael Verhoven. Os dois casos
são exemplos típicos de como o poder manipula as versões sobre a história,
promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente novas
lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e
coerção.
Comecemos pelo filme,
que se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o Ministério da Educação
da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, de âmbito nacional, cujo
tema é "Minha cidade natal na época do III Reich". Milhares de
estudantes se inscrevem, entre eles a jovem Sônia Rosenberger, que busca
reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing – como é denominada no filme –
considerada até então baluarte da resistência antinazista.
Mas a estudante encontra
oposição. As instituições locais de memória – o arquivo municipal, a
biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal Pfilzinger Morgen – fecham-lhe suas
portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Ninguém quer que uma "judia e
comunista" futuque o passado. Sônia, porém, não desiste. Corre atrás. Busca
os documentos orais. Entrevista pessoas próximas, familiares, vizinhos, que
sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, são fragmentadas,
descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.
A jovem pesquisadora
procura, então, as autoridades locais, que se recusam a falar e ainda
consideram sua insistência como uma ameaça à manutenção da memória oficial, que
é a garantia da ordem vigente. Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde
os prazos do concurso. Desconfiada, porém, de que debaixo daquele angu tinha caroço
– perdão, de que sob aquele chucrute havia salsicha – resolve continuar
pesquisando por conta própria, mesmo depois de formada, casada e com filhos,
numa batalha desigual que durou alguns anos.
Hostilizada pelo poder
civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação na qual
reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente, consegue
ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela descobriu,
horrorizada, as razões da cortina de silêncio: sua cidade, longe de ter sido um
bastião da resistência ao nazismo, havia sediado um campo de concentração. Lá,
os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou
a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da
memória, forjando um passado que nunca existiu.
Os documentos
registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na época por dois
padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivíssimos,
tentando impedir o acesso de Sônia aos registros. No entanto, o mais doloroso,
era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão,
posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto
escárnio! Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os
documentos.
Deus tá vendo
E é aqui que entra a
forma como a mídia cobriu a morte do cardeal dom Eugênio Sales, que comandou a
Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo
os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? O Brasil
já elegeu três presidentes que foram reprimidos pela ditadura, mas até hoje,
não temos acesso aos principais documentos da repressão.
Se a Comissão Nacional
da Verdade, instalada em maio último pela presidente Dilma Rousseff, pudesse
criar, no campo da memória, algo similar à operação "Deus tá vendo",
organizada pela Policia Civil do Rio Grande do Sul, talvez encontrássemos a
resposta. Na tal operação, a Polícia prendeu na última quinta-feira quatro
pastores evangélicos envolvidos em golpes na venda de automóveis. Seria o caso
de perguntar: o que foi que Deus viu na época da ditadura militar?
Tem coisas que até Ele
duvida. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do cardeal Eugênio
Sales, na qualidade de repórter da ASAPRESS, uma agência nacional de notícias
arrendada pela CNBB em 1967. Também, cobri reuniões e assembleias da
Conferência dos Bispos para os jornais do Rio – O Sol, O Paiz e Correio da
Manhã, quando dom Eugênio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a partir desse
lugar que posso dar um modesto testemunho. Os bispos que lutavam contra as
arbitrariedades eram Helder Câmara, Waldir Calheiros, Cândido Padin, Paulo
Evaristo Arns e alguns outros mais que foram vigiados e perseguidos. Mas não
dom Eugênio, que jogava no time contrário. Um dos auxiliares de dom Helder, o
padre Henrique, foi torturado até a morte em 1969, num crime que continua
atravessado na garganta de todos nós e que esperamos seja esclarecido pela
Comissão da Verdade. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que
escutássemos um pio de protesto de dom Eugênio, contrário à teologia da
libertação e ao envolvimento da Igreja com os pobres.
Dom Eugênio Sales e o ditador Emílio Garrastazu Médici |
O cardeal Eugenio Sales
era um homem do poder, que amava a pompa e o rapapé, muito atuante no campo
político. Foi ele um dos inspiradores das "candocas" – como Stanislaw
Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia.
As "candocas" desenvolveram trabalhos sociais nas favelas
exclusivamente com o objetivo de mobilizar setores pobres para seus objetivos
golpistas. Foram elas, as "candocas", que organizaram manifestações
de rua contra o governo democraticamente eleito de João Goulart, incluindo a
famigerada "Marcha da família com Deus pela liberdade", que apoiou o
golpe militar, com financiamento de multinacionais, o que foi muito bem
documentado pelo cientista político René Dreifuss, em seu livro "1964: A
Conquista do Estado" (Vozes, 1981). Ele teve acesso ao Caixa 2 do
IPES/IBAD.
Nós, toda a torcida do
Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabíamos que dom Eugênio era, com todo o
respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia – e não sofro de
amnésia ou de qualquer doença neurodegenerativa – posso garantir que na época
ele nem disfarçava, ao contrário manifestava publicamente orgulho do livre
trânsito que tinha entre os militares e os poderosos.
"Quem tem
dúvidas…basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n'O Globo" –
escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e
avaliou assim a opção preferencial do cardeal:
"A Igreja Católica,
no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando
dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder.
Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de católicos no país: 45,8%…"
O então arcebispo do Rio passa em revista as tropas da ditadura |
Portões do Sumaré
Por isso, a jornalista
estranhou – e nós também – a forma como o cardeal Eugenio Sales foi retratado
no velório pelas autoridades. Ele foi apresentado como um combatente contra a
ditadura, que abriu os portões da residência episcopal para abrigar os
perseguidos políticos. O prefeito Eduardo Paes, em campanha eleitoral, declarou
que o cardeal "defendeu a liberdade e os direitos individuais". O
governador Sérgio Cabral e até o presidente do Senado, José Sarney, insistiram no
mesmo tema, apresentando dom Eugênio como o campeão "do respeito às
pessoas e aos direitos humanos".
Não foram só os
políticos. O jornalista e acadêmico Luiz Paulo Horta escreveu que dom Eugênio
chegou a abrigar no Rio "uma quantidade enorme de asilados
políticos", calculada, por baixo, numa estimativa do Globo, em "mais
de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do
Sul". Outro jornalista, José Casado, elevou o número para cinco mil. Ou
seja, o cardeal era um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por
baixo dos panos, na clandestinidade, ajudava quem lutava contra. Só faltou
arranjarem um codinome para ele, denominado pelo papa Bento XVI como "o
intrépido pastor".
Seria possível acreditar
nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vítimas. Bastaria 50
perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se solidarizou. No entanto, o
jornal não dá o nome de uma só – umazinha – dessas cinco mil pessoas. Enquanto
isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard
Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da
Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a
cara na porta do palácio episcopal.
Segundo Hilde, dom
Eugênio "fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura,
fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos
"subversivos" que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe
Zuzu Angel (e isso está documentado)". Ela acha surpreendente que os jornais
queiram nos fazer acreditar "que ocorreu justo o contrário!", como no
filme "Uma cidade sem passado".
Mas não é tão
surpreendente assim. O texto de Hildegard menciona a grande habilidade, em
vida, de dom Eugenio, em "manter ótimas relações com os grandes jornais,
para os quais contribuiu regularmente com artigos". As azeitadas relações
com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em postos-chave continuaram
depois da morte, como é possível constatar com a cobertura do velório. A defesa
de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mídia e do
poder.
Os jornais elogiaram,
como uma virtude e uma delicadeza, o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada
vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João Paulo II, com o mesmo
zelo e unção com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumã já descascado
para o café da manhã do então governador Amazonino Mendes. São os rituais do
poder com seus rapapés.
"Dentro de uma
sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e negociadas
entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que não possam
ser confundidas com a "verdade", as memórias têm valor social de
"verdade" e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem
"a verdade" – escreve Teun A. van Dijk, doutor pela Universidade de
Amsterdã.
A "verdade"
construída pela mídia foi capaz de fotografar até "a presença do Espírito
Santo" no funeral. Um voluntário da Cruz Vermelha, Gilberto de Almeida, 59
anos, corretor de imóveis, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo
abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25 e a soltou dentro
da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: "Foi um sinal de Deus, é a
presença do Espírito Santo" – berraram os jornais. Parece que vale tudo para
controlar a memória, até mesmo estabelecer preço tão baixo para uma das pessoas
da Santíssima Trindade. É muita falta de respeito com a fé das pessoas.
"A mídia deve ser
pensada não como um lugar neutro de observação, mas como um agente produtor de
imagens, representações e memória" nos diz o citado pesquisador holandês,
que estudou o tratamento racista dispensado às minorias étnicas pela imprensa
europeia. Para ele, os modos de produção e os meios de produção de uma imagem
social sobre o passado são usados no campo da disputa política.
Nessa disputa, a mídia
nos forçou a fazer os comentários que você acaba de ler, o que pode parecer
indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor para os amigos
do cardeal. Mas se a gente não falar agora, quando então? Stuart Angel e os que
combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de parecer indelicado.
É preciso dizer, em respeito à memória deles, que Dom Eugênio tinha suas
virtudes, mas uma delas não foi, certamente, a solidariedade aos perseguidos políticos
para quem os portões do Sumaré, até prova em contrário, permaneceram fechados.
Que ele descanse em paz!
P.S: O jornalista
amazonense Fábio Alencar foi quem me repassou o texto de Hildegard Angel, que
circulou nas redes sociais. O doutor Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, historiador e
professor da Universidade Federal do Amazonas, foi quem me indicou, há anos, o
filme "Uma cidade sem passado". Quem me permitiu discutir o conceito
de memória foram minhas colegas doutoras Jô Gondar e Vera Dodebei, organizadoras
do livro "O que é Memória Social" (Rio de Janeiro: Contra Capa/
Programa de Pós- Graduação em
Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, 2005). Nenhum deles tem qualquer responsabilidade sobre os juízos por
mim aqui emitidos.
José Ribamar Bessa Freire e
professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa
no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)
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