“A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o
cérebro dos vivos”, dizia o velho Marx. Acuados pela inevitabilidade da instalação
da Comissão da Verdade, os torturadores, a direita e seus aliados insistem
na tese de “investigar os dois lados”. Aqui, duas contribuições a meu ver
bastante importantes para essa discussão.
Investigar “outro lado” na ditadura: seria igualar nazistas à
Resistência Francesa
RODRIGO VIANNA
Raymond Aubrac e sua mulher Lucie |
Raymond Aubrac morreu no mês passado. Tinha 97 anos, viúvo.
Na França, era tratado como herói. Lutou de armas na mão contra os nazistas e
contra os franceses colaboracionistas, que aceitaram manter um regime
fantoche em apoio a Hitler.
Aubrac e a mulher, morta há uma década, foram líderes da Resistência Francesa. Se morassem no Brasil, parte
dos comentaristas e colunistas da direita brazuca certamente diriam que eles
tinham sido “terroristas”. Sim, Aubrac lançou bombas, deu tiros. Foi
preso, escapou milagrosamente dos nazistas. Tinha inimigos. E lutou. E não
deixou de lutar. Depois da Guerra, tornou-se amigo de Ho Chi Minh. E na última
campanha eleitoral, declarou apoio a Hollande, do Partido Socialista. Ele tinha
um lado.
Um homem precisa ser “neutro” pra lutar por Justiça? Tolice. Mais
que tolice. Argumento falacioso a proteger criminosos de guerra. Seja na
Europa ou na América do Sul.
Aqui, às vezes cola. Lá, não cola…
No Brasil, Aubrac e a mulher talvez fossem chamados de
“petralhas”. Mais que isso. Talvez aparecesse um ex-ministro tucano dizendo que
“os dois lados” precisam ser investigados. Sim! Não é justo julgar (ou relatar
os crimes, que seja) apenas dos pobres nazistas. E as “vítimas inocentes” do
“outro lado”? Essa Resistência Francesa era “criminosa”…
Aubrac seria execrado, ofendido. Pela internet, circulariam
e-mails idiotas chamando o sujeito de “terrorista”, talvez achassem uma
foto dele com fuzil pra dizer: olha só, o “outro lado” era adepto da
força bruta, não era bonzinho, também precisa ser investigado…
[...] para a direita brasileira (e os apavorados que se acham de
esquerda e têm medo de enfrentá-la) seria preciso enviar a Resistência Francesa
a julgamento! Afinal, a Resistência pegou em armas, cometeu “crimes”.
No Brasil, por hora, nem se fala em julgamento. Mas
numa simples Comissão a relatar os crimes cometidos por agentes do Estado.
Crimes contra a Humanidade. Não se fala em execrar soldados, sargentos ou
oficiais que, eventualmente, tenham matado guerrilheiros em combate. Da mesma
forma, nunca ninguém se atreveu a “condenar” soldados alemães que lutaram nas
trincheiras ou nas ruas.
O que se pretende é relatar crimes de tortura, desaparecimento,
assassinatos cometidos a sangue frio… Ah, mas estávamos numa “guerra”, dizem
militares brasileiros (secundados por civis perversos, e até por gente de
boa fé mas desinformada) que atacam a Comissão. Há controvérsias se
aquilo que ocorreu no Brasil foi uma “guerra”…
Aqui, eles seriam criminosos e terroristas... |
De todo jeito, na Europa houve “guerra”. Pra valer. Nem por
isso, crimes contra a Humanidade deixaram de ser julgados. Nazistas e seus
colaboradores que torturaram, assassinaram e incineraram gente indefesa
foram a julgamento. A Resistência Francesa não foi a julgamento.
Nem irá.
A falácia dos dois lados
PAULO MOREIRA LEITE
Leio na
Folha que, conforme José Carlos Dias, um dos mais conhecidos integrantes da
Comissão da Verdade formada para investigar crimes de direitos humanos, ela
deverá focalizar as responsabilidades dos “dois lados”.
José
Carlos Dias foi advogado de presos políticos durante a ditadura. Também foi
ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Este
ponto de vista é preocupante.
A
Comissão não foi criada como um seminário genérico sobre desrespeito aos
direitos humanos – onde caberia avaliar erros e desvios de conduta de qualquer pessoa,
autoridade ou não, de direita ou de esquerda, em qualquer tempo e espaço
do território brasileiro. Caberia, nessa situação, discutir o papel dos “dois
lados”. Ou três “lados,” quatro, ou cinco…
Criou-se
a Comissão da Verdade com uma finalidade específica, que é examinar os crimes
da ditadura, porque esta foi a lacuna deixada pela história. Estamos
falando de crimes cometidos por representantes do Estado, em nome dele, e não
por qualquer pessoa.
E
queremos a verdade – não uma guerra de versões nem uma história declaratória.
Ou será
que vamos julgar o “lado bom” e o “lado ruim” da ditadura, ou lado “bom” e o
lado “ruim” de quem lhe fazia oposição?
A ideia
é mostrar que “os dois lados” cometeram erros e devem ser igualmente perdoados?
Ninguém
percebeu que toda ditadura é, por definição, um regime de “um lado só”?
Os atos
– violentos ou não, legítimos ou não — cometidos pelos adversários do regime
militar foram apurados, avaliados e punidos em seu devido tempo, como
demonstram as 7.367 denuncias apresentadas à Justiça Militar entre 1964 e 1979.
No
esforço para punir brasileiros que não aceitavam submeter-se a um regime de
força, criado a partir de um golpe que derrubou um governo constitucional, o
Estado brasileiro cometeu crimes inaceitáveis e vergonhosos. Executou pessoas
indefesas, não informou seu paradeiro às famílias nem deu esclarecimentos
fidedignos sobre os acontecimentos envolvidos em suas mortes. São estes fatos
que a Comissão deve apurar.
O
esforço para olhar os “dois lados” do período só faria sentido se naquele
período estivéssemos diante de um Poder legítimo, que teria cometido excessos e
abusos em nome de seu direito de exercer a violência para garantir o respeito à
lei e à ordem.
Mas não
é disso que se trata. Estamos falando do massacre da Lapa, ocorrido em 1976,
quando três militantes foram executados sem que pudessem representar perigo
algum, ameaça alguma. Ou sobre Rubens Paiva, empresário que compareceu em seu
carro para prestar um depoimento ao Exército e nunca mais foi visto.
A maioria
dos atos de violência cometidos pelos adversários do regime foram julgados e
esclarecidos, com emprego de tortura e violência nos interrogatórios, inclusive
contra menores, às vezes na presença de crianças.
Quando
isso não ocorreu, é porque os acusados não tiveram direito de defesa. Foram
executados de modo sumário e covarde em vez de serem levados aos tribunais.
Eliminá-los tinha prioridade sobre garantir o respeito à Lei – mesmo a lei do
regime militar.
Lamarca: executado |
Não por
acaso, todo esforço de esclarecer mesmo crimes atribuídos a oposição se volta
contra a ditadura e seus responsáveis — mais uma vez, é o regime de um lado só.
Por
exemplo: quem gosta de lembrar que o capitão Carlos Lamarca foi um dos
responsáveis pelo julgamento e execução do tenente PM Alberto Mendes, no Vale
da Ribeira, deveria perguntar a quem perseguiu e fuzilou o próprio Lamarca,
faminto e doente, no interior da Bahia, por que não se quis levar um dos chefes
da guerrilha ao banco dos réus. Ali Lamarca poderia esclarecer as
circunstâncias e motivações daquela decisão trágica.
Marighella: executado |
Outro
exemplo: quem gostaria de apurar assaltos e atos de violência cometidos pelos
Grupos Táticos Armados da ALN poderia conseguir um depoimento dos policiais
ainda vivos da equipe do delegado Fleury. Eles poderiam explicar por que se
preferiu executar Carlos Marighella numa rua dos Jardins, em São Paulo , em vez de lhe
dar uma chance de explicar-se num tribunal civilizado.
Isso
aconteceu porque, entre 1964 e 1985 o Brasil foi governado por um regime que
usurpou o Estado brasileiro ao impedir que a população escolhesse seus
governantes por métodos democráticos.
A longa
noite da ditadura foi uma sucessão de atos anti democráticos e ilegais, que
tiveram início com um golpe de Estado e prosseguiram em medidas autoritárias contra
a Justiça e os direitos do cidadão.
Por isso
seus atos não podem ser nivelados à resistência de quem teve disposição e
capacidade de sacrifício para enfrentar um regime de força.
Fazer
isso implica em embelezar a ditadura, dar-lhe uma estatura moral que ela não
possuía e nunca pretendeu possuir, pois governava essencialmente a partir da
força bruta.
Jean Moulin |
Guardando
todas as diferenças entre os dois casos, alguém acharia razoável que, para se
investigar Klaus Barbie, o carrasco nazista de Lyon, se apurasse a violência
organizada pela Resistência Francesa de Jean Moulin?
Ou que
as investigações sobre o ditador Rafael Vidella, chefe de uma ditadura que
matou milhares de argentinos, só pudessem ser iniciadas depois que se
esclarecesse o papel de Mário Santucho, um dos líderes da luta armada, em
atos de violência?
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