Há exatos 100 anos morria o Barão do Rio Branco, nosso diplomata maior e patrono do Itamaraty. Ele era uma figura tão popular que, como morreu no Carnaval, o governo adiou o "tríduo momesco" para abril. Esse texto do meu amigo Marcos Guterman, escrito no ano passado, sintetiza um livro recente que trata da importância do Barão como "formador" da ideia de Brasil.
Por Marcos Guterman
Em tempos de ufanismo revisitado, que a propaganda estatal reduz ao "orgulho de ser brasileiro" em relação ao resto do mundo, o livro recém-lançado O Dia em Que Adiaram o Carnaval (Unesp), do diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, revela-se um ensaio precioso, ao reconstituir a invenção da nacionalidade brasileira.
O título da obra diz respeito à curiosa ordem do governo republicano de adiar o carnaval em respeito à morte de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, em 10 de fevereiro de 1912. Rio Branco tinha status de astro, porque lhe era atribuído o feito de ter desenhado as fronteiras do País - isto é, de ter dado um "corpo" à pátria que estava sendo criada.
Villafañe faz uma reflexão sobre o mito do Barão como construtor da nacionalidade e sua identificação com uma "certa ideia de Brasil" quase um século depois da independência. Trata-se de uma "paralisadora herança", como comentou o embaixador Rubens Ricupero a propósito da persistente imagem de um país que atua no exterior tendo como lastro o genoma da "tolerância natural do brasileiro", descrito por Stefan Zweig em Brasil, País do Futuro (1941).
O modo como o Brasil se enxerga no mundo, traduzido em sua política externa, é portanto o eixo em torno do qual Villafañe trabalha. A construção política dessa entidade, mostra o autor, começa como afirmação antilusitana e, ao mesmo tempo, como contraponto monárquico "ordeiro" ao "caos" republicano dos vizinhos latino-americanos. A "nação brasileira" que surge daí é formada por brancos europeus ricos. A escravidão criará o desconforto de uma imensa massa de pessoas que estão em toda parte, mas não integram a nação.
O sentido nacional só se completará no período republicano, mas a desigualdade social dificultou drasticamente a legitimidade do Estado. A "invenção" do Brasil, naquela oportunidade, dividia-se entre o passado português e a afirmação do mundo americano, sem lugar, contudo, para os brasileiros comuns.
Mesmo a república, porém, não ofereceu à massa, de imediato, um lugar na construção da identidade nacional brasileira. Foi preciso que houvesse a difusão das culturas ditas "subalternas", contaminando a atmosfera da elite com o carnaval e o futebol como elos da nacionalidade. Foi necessário ainda criar "heróis" para representar o evangelho republicano - e Tiradentes foi o primeiro deles, embora tenha sido representante de um movimento que nem de longe era nacionalista; mas o alferes (ou a imagem que foi criada para ele) era alguém construído para simbolizar a união dos cidadãos, a participação popular e a luta autêntica pela independência.
A identidade internacional do Brasil, diz o autor, tem como referência fundamental, desde seu início como país independente, a América - entendida primeiramente como os EUA e depois como as repúblicas latino-americanas. O Brasil foi o único país americano que, em sua independência, não desenvolveu proximidade com a ideia de ruptura com o modo de vida europeu. Com a república, o antiamericanismo monárquico foi substituído pela defesa do "espírito americano". É justamente com Rio Branco que a aliança com os EUA se consolida, sob a perspectiva de domínio geral estadunidense nas Américas e na hegemonia brasileira no nível sul-americano.
A partir de Getúlio Vargas, e desde então com esporádicos intervalos, a política externa brasileira se fundaria na dimensão do desenvolvimento econômico nacional em contraponto ao Hemisfério Norte, num apenas aparente afastamento do evangelho de Rio Branco. No início da Guerra Fria, o Brasil viu-se em condições de invocar o americanismo do Barão para cobrar tratamento preferencial dos EUA. A frustração com a resposta vaga de Washington a esse pleito - e também à promessa de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, feita pelo presidente Franklin Roosevelt a Vargas - empurrou o Brasil para uma aproximação maior com os demais países latino-americanos e para a ideia de que havia um bloco regional de subdesenvolvidos, entre os quais os brasileiros passaram a se incluir, que precisavam ser ouvidos.
Esse bloco se considerava moralmente superior às potências globais, porque seria vítima da corrida armamentista e das guerras imperialistas. Tal movimento rompeu a bipolaridade Leste-Oeste da Guerra Fria e estabeleceu a complexidade do debate Norte-Sul, com a defesa de um modelo de desenvolvimento fortemente estatal, em contraponto à doutrina democrático-liberal que se consideraria vitoriosa na queda do Muro de Berlim e que se fazia representar pelos EUA, justamente o "outro" na relação com a América Latina ao longo do século 20.
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