Ulysses à frente do PMDB: passado glorioso; presente pífio |
Esperança e mudança: o último grande marco do nacional-desenvolvimentismo
Por Gilberto Maringoni
Há trinta anos vinha há público o mais consistente programa partidário da fase final da ditadura. Era o Esperança e mudança, abrangente documento elaborado por intelectuais desenvolvimentistas e apresentado pelo PMDB, então uma frente de oposições. Era a expressão de um setor da sociedade que desejava fortalecer o caráter planejador do Estado como forma de superação da crise econômica daqueles anos
Luiz Gonzaga Belluzzo, um dos formuladores |
Com um tom
antiliberal e nacionalista, o programa peemedebista foi provavelmente a última
grande manifestação do nacional-desenvolvimentismo entre nós. Tais diretrizes,
como se sabe, balizaram quase todo nosso processo de industrialização, entre
1930 e 1980, quando o país deixou de ser um imenso produtor agrícola para se
tornar a 7ª economia do mundo capitalista. Apesar de suas inegáveis qualidades,
aquele programa tem sido minimizado pelos historiadores. Não está na internet.
O próprio PMDB, em sua página na rede, sequer o menciona. Nem mesmo o livro A história de um rebelde
(1966-2006), de autoria do ex-deputado federal Tarcísio Delgado, uma
espécie de levantamento oficial sobre a trajetória da agremiação, cita aquelas
formulações.
CRISE FINAL DA DITADURA O Esperança e mudança é um arrazoado de 119 páginas, dividido em quatro capítulos: “A transformação democrática”, “Uma nova estratégia de desenvolvimento social”, “Diretrizes para uma política econômica” e “A questão nacional”. Foi seguramente o programa partidário mais abrangente do período, que buscava resolver problemas renitentes de financiamento das estruturas produtivas, ao mesmo tempo em que sinalizava apoio às demandas dos trabalhadores.
CRISE FINAL DA DITADURA O Esperança e mudança é um arrazoado de 119 páginas, dividido em quatro capítulos: “A transformação democrática”, “Uma nova estratégia de desenvolvimento social”, “Diretrizes para uma política econômica” e “A questão nacional”. Foi seguramente o programa partidário mais abrangente do período, que buscava resolver problemas renitentes de financiamento das estruturas produtivas, ao mesmo tempo em que sinalizava apoio às demandas dos trabalhadores.
Entre outras questões, o documento propunha uma política de ampliação do mercado interno através de políticas de distribuição de renda, a elevação real do salário mínimo, queda dos juros, o aumento do crédito, a reforma agrária, uma reforma tributária progressiva, a adoção de uma política industrial planejada, a renegociação da dívida externa, a nacionalização das riquezas do subsolo, o fortalecimento das empresas estatais, uma política externa soberana e o estreitamento dos laços políticos com a América Latina. O texto foi publicado inicialmente pela Revista do PMDB, em seu número 4, de setembro/outubro de 1982. Logo seria aprovado pela comissão executiva nacional. O cenário em que o programa veio à luz foi o da crise final da ditadura. Seu modelo econômico, pautado pela construção de um setor de bens de capital lastreado pelo Estado, pelo capital privado nacional e financiado em boa parte por poupança externa, mostrava-se sem sustentação em um quadro de sérias turbulências internacionais. A elevação unilateral dos juros dos EUA, o fim da paridade ouro/dólar e a elevação dos preços internacionais do petróleo provocaram uma aguda desaceleração da economia mundial, com reflexos internos dramáticos.
ELEIÇÕES DE GOVERNADORES Em 1982, nas primeiras eleições diretas para governos de estado desde 1965, o PMDB conquistaria nove vitórias expressivas: São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo, Amazonas, Pará, Acre, Goiás e Mato Grosso do Sul. O resultado no pleito para prefeitos, vereadores, deputados estaduais, federais e senadores, realizadas concomitantemente, ampliou a expressão nacional da sigla. A chamada frente de oposições se capacitava ali como a principal alternativa de poder no plano nacional. Tal situação obrigou a agremiação a sofisticar seu arsenal programático. O programa partidário não era apenas uma teorização sobre a luta política em curso, o que já seria muito, mas se materializava como uma bússola para três contendas decisivas nos anos seguintes: a campanha das Diretas Já, as eleições presidenciais indiretas de 1985 e a Assembléia Constituinte, cujos membros seriam escolhidos em 1986.
OS DESENVOLVIMENTISTAS A elaboração do texto ficou a cargo de um time de peso na vida intelectual do país. A equipe era composta, entre outros, por Luiz Gonzaga Belluzzo, Luciano Coutinho, Carlos Lessa, João Manuel Cardoso de Mello e Maria da Conceição Tavares. Dizia-se, à época, que predominava no documento a visão dos “desenvolvimentistas da Unicamp”. Belluzzo lembra que uma das preocupações do grupo era fazer frente ao problema da carência de financiamentos de longo prazo para a constituição de grandes grupos industriais nacionais. O ideário peemedebista teria de se defrontar com a crise das dívidas externas dos países do terceiro mundo e pelo virtual estancamento de financiamentos estrangeiros. “Avaliávamos ser necessária a constituição de fundos públicos para financiar o desenvolvimento no longo prazo”, lembra o economista. “Nossos grupos empresariais eram frágeis, daí a necessidade que sentíamos de construir grandes empresas com forte indução do Estado, via BNDES”, ressalta ele. Era uma ideia formulada por alguns países asiáticos, que constituíram, entre os anos 1970 e 1980, poderosos conglomerados para competir internacionalmente, com suporte estatal. “Era o caso dos chaebols coreanos”, diz Belluzzo. O primeiro parágrafo do texto sintetiza a visão partidária sobre a disputa política e econômica da época:
O Brasil atravessa uma fase crítica: a pior crise econômica e social desde os anos 30 coexiste com uma profunda crise institucional. As estruturas do Estado estão carcomidas pela privatização do interesse público, a política econômica está imobilizada, o governo carece de largueza de visão para enfrentar o estado de desagregação crescente. O mais grave, porém, é a crise política – o divórcio profundo entre a sociedade e o Estado, a ausência de confiança e de representatividade. A dívida externa sufoca. Obriga o governo a curvar-se ante os grandes interesses bancários. Campeia a corrupção, a imprevidência, a desesperança.
DEFESA
DO PLANEJAMENTO Em
seguida, é apresentada a proposta de intervenção estatal no desenvolvimento
econômico:
O PMDB propõe o planejamento democrático como forma de estabelecer e garantir que o conjunto de políticas públicas obedeça a prioridades fixadas democraticamente – prioridades que busquem um novo estilo de desenvolvimento social. O Planejamento democrático implica na (sic) elaboração de um Plano, sob controle e sob a influência das instituições democráticas. Plano fixado através de lei, supervisionado eficazmente pelo Congresso com a interação e auxílio das organizações populares.
Linhas à frente, são definidas as principais medidas do ideário proposto:
Distribuição de renda começa com uma nova política salarial, começa com a elevação da base dos salários, com o aumento real do salário mínimo, com uma reforma que implante uma reforma justa para a previdência social. (...) É preciso conter a alta contínua do custo de vida através de uma política antiinflacionária eficaz. (...) A distribuição de renda e de riqueza nacional também não virá, de maneira progressiva e irreversível, sem grandes reformas sociais e institucionais. Sem uma reforma agrária – que garanta o acesso á terra a quem nela trabalhe – e a reorganização da vida rural, apoiada por múltiplas políticas, não será possível criar uma agricultura eficiente, com população rural livre e próspera. Sem uma ampla reforma tributária não será possível eliminar as enormes injustiças do atual sistema de impostos, que gravam muito pesadamente os assalariados de baixa renda enquanto que as classes privilegiadas pagam parcelas insignificantes de seus rendimentos. Sem uma reforma financeira não será possível democratizar o crédito, com taxas de juros baixas, acessíveis aos consumidores de baixa renda. (...) sem uma reforma fundiária urbana não será possível uma verdadeira política urbana, que regularize a situação de milhões de favelados, e que coíba a especulação imobiliária.
Além de propor uma estratégia de desenvolvimento “que liquide com a especulação parasita, sustentada atualmente pela dívida pública interna”, o PMDB advogava medidas emergenciais de curto prazo:
A dívida externa não pode continuar administrando o Brasil (...) não é mais suportável a continuidade de taxas reais de juros estratosféricas. A política alternativa do PMDB começa com a imediata redução do patamar de juros, desvinculando-o do giro da dívida externa. (...)
O PMDB propõe o planejamento democrático como forma de estabelecer e garantir que o conjunto de políticas públicas obedeça a prioridades fixadas democraticamente – prioridades que busquem um novo estilo de desenvolvimento social. O Planejamento democrático implica na (sic) elaboração de um Plano, sob controle e sob a influência das instituições democráticas. Plano fixado através de lei, supervisionado eficazmente pelo Congresso com a interação e auxílio das organizações populares.
Linhas à frente, são definidas as principais medidas do ideário proposto:
Distribuição de renda começa com uma nova política salarial, começa com a elevação da base dos salários, com o aumento real do salário mínimo, com uma reforma que implante uma reforma justa para a previdência social. (...) É preciso conter a alta contínua do custo de vida através de uma política antiinflacionária eficaz. (...) A distribuição de renda e de riqueza nacional também não virá, de maneira progressiva e irreversível, sem grandes reformas sociais e institucionais. Sem uma reforma agrária – que garanta o acesso á terra a quem nela trabalhe – e a reorganização da vida rural, apoiada por múltiplas políticas, não será possível criar uma agricultura eficiente, com população rural livre e próspera. Sem uma ampla reforma tributária não será possível eliminar as enormes injustiças do atual sistema de impostos, que gravam muito pesadamente os assalariados de baixa renda enquanto que as classes privilegiadas pagam parcelas insignificantes de seus rendimentos. Sem uma reforma financeira não será possível democratizar o crédito, com taxas de juros baixas, acessíveis aos consumidores de baixa renda. (...) sem uma reforma fundiária urbana não será possível uma verdadeira política urbana, que regularize a situação de milhões de favelados, e que coíba a especulação imobiliária.
Além de propor uma estratégia de desenvolvimento “que liquide com a especulação parasita, sustentada atualmente pela dívida pública interna”, o PMDB advogava medidas emergenciais de curto prazo:
A dívida externa não pode continuar administrando o Brasil (...) não é mais suportável a continuidade de taxas reais de juros estratosféricas. A política alternativa do PMDB começa com a imediata redução do patamar de juros, desvinculando-o do giro da dívida externa. (...)
Para concretizar suas diretrizes econômicas, o programa aponta a democratização do Estado como “o único caminho adequado para colocar, definitivamente, a política econômica e social a serviço dos interesses da sociedade”. A tradução política das mudanças era a convocação de uma “Assembléia Nacional Constituinte como solução-síntese”. Ou seja, o documento via nos desarranjos econômicos uma expressão de problemas que só poderiam ser resolvidos no âmbito político. Um grande peso era dado à necessidade da participação dos movimentos sociais na vida nacional e ao fortalecimento dos partidos políticos.
As políticas sociais As iniciativas sociais seriam divididas em três grandes vertentes:
- Políticas sociais clássicas, como a salarial, previdenciária, de
abastecimento alimentar, saúde, educação, que atuam diretamente sobre o
atendimento às necessidades básicas da população.
- Políticas de reordenamento do espaço urbano, regional e do meio
ambiente. (...)
- (...) Políticas estratégicas de reordenamento do sistema produtivo
que devem ajustar-se às prioridades redistributivas.
- A reimposição imediata e rigorosa dos controles de preços, com
mecanismos antecipatórios de detecção dos aumentos de custo;
- A adoção de uma política seletiva de crédito, com mecanismos
penalizadores para as empresas que ultrapassem os tetos fixados;
- A adoção de uma política de estímulo da oferta de alimentos e
gêneros industriais básicos, com controle das margens de lucro industriais
e comerciais;
- A redução firme e gradativa dos coeficientes de correção monetária
e queda imediata da taxa de juros.
Ao se voltar para
a questão trabalhista, o PMDB propunha “A reposição gradativa do poder real de
compra do salário mínimo (...) visando duplicar seu valor real num prazo o mais
curto possível”. Concomitantemente a tal medida, o programa advogava a adoção
da estabilidade no emprego e de uma reforma na Previdência Social que ampliasse
direitos. Outra medida apontada pelo texto seria a realização de uma reforma
agrária, que reduzisse o fluxo migratório campo-cidade.
As formulações alcançavam ainda políticas de energia e de transportes, de desenvolvimento científico e tecnológico e de política agrícola. A dada altura, apresentava “Diretrizes para o financiamento da nova etapa de expansão”. Como aspecto central, reafirmava ser “essencial reverter a ‘privatização’ do Estado com uma Reforma Administrativa que recoloque em seus devidos lugares uma grande parte dos organismos e funções que se elidiram da administração direta”.
CONSTITUINTE E REGULAÇÃO O programa teve expressões na ação partidária durante a formulação da Carta de 1988. “Havia ecos do Esperança e mudança no PMDB daquela época, embora o partido já fosse governo e tivesse a experiência de participar dos planos econômicos da gestão Sarney” (1985- 1990), aponta Belluzzo. Em seu primeiro discurso como presidente da Assembléia Nacional Constituinte, em 2 de fevereiro de 1987, Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, vocalizava as diretrizes básicas do programa:
A ação reguladora do Estado na atividade econômica: a livre iniciativa, necessária ao desenvolvimento do país, deverá exercer-se sem o sacrifício dos trabalhadores, e a riqueza não poderá acumular-se ao mesmo tempo em que aumentam a miséria e a fome em benefício dos privilegiados.
Em nossos dias, quando o Brasil procura retomar uma rota de desenvolvimento sustentável, torna-se importante voltar-se ao Esperança e mudança e examinar suas linhasem detalhe. Isso
deve ser feito menos pelas questões político-partidárias ou pelo estudo do
passado recente e mais para se avaliar os dilemas e contradições atuais da
economia brasileira.
As formulações alcançavam ainda políticas de energia e de transportes, de desenvolvimento científico e tecnológico e de política agrícola. A dada altura, apresentava “Diretrizes para o financiamento da nova etapa de expansão”. Como aspecto central, reafirmava ser “essencial reverter a ‘privatização’ do Estado com uma Reforma Administrativa que recoloque em seus devidos lugares uma grande parte dos organismos e funções que se elidiram da administração direta”.
CONSTITUINTE E REGULAÇÃO O programa teve expressões na ação partidária durante a formulação da Carta de 1988. “Havia ecos do Esperança e mudança no PMDB daquela época, embora o partido já fosse governo e tivesse a experiência de participar dos planos econômicos da gestão Sarney” (1985- 1990), aponta Belluzzo. Em seu primeiro discurso como presidente da Assembléia Nacional Constituinte, em 2 de fevereiro de 1987, Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, vocalizava as diretrizes básicas do programa:
A ação reguladora do Estado na atividade econômica: a livre iniciativa, necessária ao desenvolvimento do país, deverá exercer-se sem o sacrifício dos trabalhadores, e a riqueza não poderá acumular-se ao mesmo tempo em que aumentam a miséria e a fome em benefício dos privilegiados.
Em nossos dias, quando o Brasil procura retomar uma rota de desenvolvimento sustentável, torna-se importante voltar-se ao Esperança e mudança e examinar suas linhas
“O Esperança e mudança é um programa elaborado num tempo em que os partidos se esmeravam por explicitar claramente o que pretendiam fazer em termos de política econômica. Nas últimas décadas, essa preocupação foi para o campo oposto, e os partidos se dedicam a listar aquilo que não vão fazer para não desagradar grupos de interesse de maior peso, aqueles eufemisticamente apelidados de “mercado”.
Além disso, três coisas importantes mudaram muito desde então.
Primeiro, a preocupação por apresentar uma concepção ampla e coerente, naquela época, ainda com uma predominância do nacional-desenvolvimentismo, desapareceu quase por completo.
Segundo, a visão de longo prazo, que desapareceu, nos anos 1980, engolida pelo contexto de hiperinflação e, nos anos 1990, pela aversão neoliberal à ideia de planejamento, sendo substituída, na melhor das hipóteses, pelos exercícios de cenarização de riscos e oportunidades aos quais o Brasil deveria simplesmente se adaptar. Só recentemente o longo prazo tem voltado a ter alguma importância, com os planos decenais, de forma setorial.
Finalmente, o terceiro aspecto importante que mudou é que a mediação existente entre economistas com vinculação partidária e a formulação dos programas de governo teve seus laços rompidos. Nesse último aspecto, cada vez mais se vê que esta interlocução é mais pragmática do que programática.
Tais mudanças tiraram dos
partidos a condição de espaço de debate e fonte de embates que, em outros
momentos, foram importantes para aprimorar a compreensão da sociedade sobre o
que estava acontecendo na economia e para engajá-la na mudança de rumos”.
Década perdida ou ganha?
A disputa que se abriu na sociedade brasileira entre 1985 e 2002 teve como agentes principais os partidos políticos. A seguir vieram entidades trabalhistas, empresariais, estudantis etc., além de universidades e outras instituições. A grande imprensa, que em sua maior parte apoiou a implantação da ditadura no país, também fez parte dos debates.
O pensamento conservador chama os anos 1980 de década perdida, por ter representado um tempo em que as classes dominantes não conseguiam materializar seu projeto de poder para a sociedade brasileira. Além disso, pesa na apreciação o fato do Brasil ter literalmente quebrado em 1982 e da alta inflação ter se tornado um problema virtualmente crônico.
De outra parte, do ponto de
vista dos movimentos democráticos da sociedade brasileira, aquela foi uma
década ganha. Não apenas nasceram e se firmaram inúmeras entidades e partidos
populares, como se abriu uma nova fase histórica para o país, através do fim da
ditadura e da promulgação da Constituição, em 1988.
O PMDB, fundado em 1980, é caudatário do antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), criado em 1966. À época vigorava o bipartidarismo consentido pela ditadura. O governo era sustentado pela Aliança Renovadora Nacional (Arena).
O PMDB abrigou entre os anos 1970 e 1980 um amplo espectro de forças políticas, que ia de liberais de direita até comunistas. Representava também anseios dos setores industriais paulistas, da grande e da média burguesia, das classes médias e de setores do movimento popular.
Com o fim da ditadura e o
surgimento de novas agremiações, o partido perdeu seu caráter de frente de
oposições.
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