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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

ESQUEÇAM O QUE NÓS FIZEMOS

Nos anos 1990, a social-democracia se converteu ao neoliberalismo econômico como quem tivesse encontrado a estrada de Damasco. Abandonando a herança do welfare state, os grandes partidos socialistas, social-democratas ou trabalhistas europeus adotaram alegremente as teses do chamado Consenso de Washington, que incluíam privatizações, abertura econômica à outrance e cortes nos gastos sociais. A onda neoliberal foi tão forte que arrastou até o histórico Partido Comunista Italiano (PCI), que chegou a ser o maior partido comunista do Ocidente, mas que foi tão afoito em virar centrista que perdeu a importância e deixou de ser referência.

Um dos grandes defensores dessa linha "transformista" foi o líder socialista espanhol Felipe González, que por longos quatro mandados (de 1982 a 1996) chefiou o governo da Espanha. Ao lado de outros líderes socialistas “modernos” – leia-se "neothatcheristas" – Tony Blair, Gerard Schröder, Massimo D’Alema, FHC –, González era a sensação dos “mercados” e de seus porta-vozes na grande mídia internacional. Pois bem agora, com o euro afundando, González está fazendo o caminho de volta: numa entrevista ao jornal Valor Econômico, ele critica a insistência da Europa em manter a austeridade para enfrentar a crise e cita o Brasil como exemplo de adoção de medidas anticíclicas (“neokeynesianas”). Abaixo, trechos da entrevista:
Valor – A Europa continua inoperante diante da crise. Como sair dessa situação?
Felipe González – Há duas falhas em nível europeu. Uma, de como a Europa enfrenta a crise, que resposta dá à crise, que podemos chamar de falha de estratégia diante da explosão do sistema financeiro internacional e sua consequência na Europa. E, a segunda, é uma falha estrutural, do modelo de uma união monetária sem união econômica, fiscal e bancária.
A falha em relação ao combate à crise é que a Europa é fortemente influenciada pela Alemanha, que é o único país com equilíbrios macroeconômicos favoráveis e único exportador de capital que resta no mundo ocidental, incluindo aí os Estados Unidos.
E a Europa enfoca a luta contra a crise cometendo um gravíssimo erro que vem do pensamento equivocado de que a crise era, primeiro, americana, conjuntural e seria superada rapidamente. Ou seja, o enfoque considera que a crise da dívida é uma crise de solvência, em lugar de crise de liquidez, de um corte brutal de crédito. Essa obsessão pelo problema da solvência está provocando uma dinâmica de insolvência de um ou outro país.
Temos, sem dúvida, um problema de dívida. A dívida pública da Espanha era significativamente menor do que a da Alemanha, Grã-Bretanha, França, e tínhamos superávit no orçamento de 2% em 2007.
Enfocam o problema sob a base da austeridade em duas dimensões: cortar o gasto público para reduzir o déficit e a dívida, aumentar as receitas pressionando os impostos, cortar o crédito. E não há financiamento da economia privada. Ou seja, renuncia-se a qualquer impulso neokeynesiano para alimentar a demanda. 
É verdade que há países sem margem para fazer esse impulso de incremento, mas a Alemanha tem. O Banco Europeu de Investimentos (BEI) tem. O único instrumento que resta, e foi o que fez os EUA, é a política monetária.
A Europa faz uma política monetária fundamentalmente pró-cíclica, não pela taxa de juro, que é reduzida, e sim pelo controle da liquidez. Como se produziu choque assimétrico ao implodir o sistema financeiro, a situação de países que passaram de contas públicas sadias e contas privadas muito endividadas para contas públicas que galopam no crescimento do déficit e da dívida é uma situação recessiva permanente. Não só não há política de gastos, como tampouco há política monetária que permita pelo menos ao aparato produtivo manter a liquidez, sem que a atividade caia.

Valor - E isso aprofunda a crise ...
FG - Exato. Estamos num círculo vicioso recessivo acompanhado por políticas monetárias restritivas e a proibição absoluta a políticas de gastos. Temos uma diferença fundamental com o outro grande sócio, que são os Estados Unidos. Os EUA fazem o contrário. Quando Obama perde a maioria [no Congresso], o único instrumento que lhe resta é [Ben] Bernanke, [presidente] do Federal Reserve. A única maneira de ter política de gasto é dispor de linhas de crédito para projetos de infraestrutura e etc. Agora, a Comissão europeia discute o orçamento plurianual até 2014/2020,  que significa 1% do PIB europeu, e tem tudo para alimentar o ciclo restritivo. Não tem nenhuma indicação anticíclica, nem sequer para o drama do desemprego, no qual vivem alguns países, como a Espanha. Podemos resumir a situação: estão confundindo uma crise de dívida, que existe, com uma crise de solvência, que não existe. Porque, com US$ 35 mil per capita, a solvência para recuperar a capacidade de pagamento não pode ou não deve ser questionada. Com renda per capita de US$ 10 mil, haveria algum problema, mas com US$ 35 mil, o que é isso? É um suicídio voluntário.
Valor – Mas parte dos males europeus não vem de longe?
FG – Eu fui um dos que assinaram o tratado de união econômica e monetária. No Pacto de Maastricht, havia três pilares muito importantes: a serpente monetária, o mercado interno e a moeda única. Os que assinaram o tratado nunca conceberam uma união monetária sem união econômica.
Em 1998, decidiu-se colocar em marcha a mudança das moedas e chegar à moeda única, em três anos de adaptação. Mas decide-se fazer união monetária sem união econômica e fiscal, e com um banco europeu que não é banco de último recurso — como dizia Dilma em sua intervenção —, e cujo único objetivo é controlar a inflação.
E ainda também tem como objetivo a defesa da estabilidade do euro. Mas o euro de Berlim não é o euro de Alicante, e já nem falo do euro de Atenas. É a mesma moeda, mas não significa o mesmo em todo lugar, porque não há uma política econômico-fiscal de convergência.
Quando aconteceu aquilo em 1998, ninguém podia prever a gravidade da implosão do sistema financeiro em 2007/08. Em maio de 2008, fiz um artigo em que advertia que só com o pacote de estabilidade que acompanhava a união monetária não seria suficiente. Ou avançávamos na convergência de políticas econômica e fiscal ou, quando ocorresse uma crise financeira, se produziria o que estamos vivendo, os choques assimétricos entre os países. E choques assimétricos estão destroçando a possibilidade de avançar na estabilidade do euro, inclusive questionando  a moeda única, porque o modelo não é coerente.
A Europa está reagindo frente a isso, como dizia o ministro sul-africano, “sem sair da curva, fazendo pouco e tarde...”
Valor - ... e mais caro.
FG - Exato. Se a Grécia tivesse custado 30 bilhões de euros em março de 2010, agora 200 bilhões de euros tampouco resolve seu problema. Claro que para avançar numa mudança estrutural de tal magnitude, é preciso ter consciência de que é preciso ceder soberania nacional para compartir soberania. Outra coisa é o que ocorre com a Califórnia, o Estado falido mais rico do mundo. Tem o maior PIB per capita do mundo, a maior tecnologia do mundo, mas é incapaz de ajustar suas contas e é salvo pelo Fed com taxa de juros negativa. Está dentro de uma união monetária, mas também de uma união econômica e fiscal. E o Fed dos EUA defende a todo custo o espaço da união.
Na União Europeia, na época de bonança, excesso de consumo, bolha imobiliária, eu ouvia o presidente dizer que não há bolha imobiliária. Eu acho que pode haver pequenas bolhas, no Brasil não se pode excluir, ou na Colômbia. Numa conversa pessoal com o presidente [Juan Manuel] Santos [da Colômbia], eu disse que o primeiro sentimento que tenho, a  sensação de que pode se criar uma bolha imobiliária, é a de que não há bolha imobiliária. Quando chego a Bogotá ou São Paulo e vejo que os preços do metro quadrado são equivalentes ou maiores aos de Madri, com a diferença de renda per capita, digo que algo passa. É preciso prestar atenção.
A Europa comete um erro de enfrentamento da crise relativamente aos EUA, que a enfrenta de outra maneira. E segundo, a Europa tem um problema estrutural que tem de resolver. Para isso tem que haver vontade política de união, contraditória ao crescente egoísmo nacional.
Valor – Nesse contexto, todas as opções estão abertas para o euro?
FG – Eu tenho sido um responsável político, com consciência histórica. Não creio que o euro vá desaparecer. Mas se em dois anos desapareceu o império soviético e a Europa fez duas guerras mundiais no século 20, tampouco posso excluir a possibilidade de que o euro desapareça.
Os instintos suicidas da política são coisa muito séria e se repetem historicamente. Se alguém é capaz de racionalizar o custo do não-euro, primeiro para o país mais potente economicamente da Europa, que é a Alemanha, a resposta seria rotunda. O euro deveria se manter, e feitos estruturais deveriam ser corrigidos.
Mas quem disse que a política tem a ver com racionalidade e com pragmatismo, se fizemos duas guerras mundiais no século 20 e a União Soviética desapareceu em dois?
Há poucas possibilidades de o euro desaparecer, mas não significa que não haja nenhuma. A catástrofe seria geral para todos, começando pela Alemanha. Mas quantas vezes vimos uma catástrofe por falha da compreensão da realidade.
[...]

Valor – Só na Espanha ou Portugal o modelo social está se rompendo?
FG – A Europa chegou a uma conclusão equivocada, embora haja países que tenham êxito, como países nórdicos, que aumentaram a competitividade e melhoraram, não pioraram, a coesão social. Melhorar não quer dizer que aumentaram gastos, e sim que aumentaram a responsabilidade dos cidadãos frente a essa política de coesão social. Isso vale para o desemprego, saúde, educação. É o que se chama de eliminar abusos.
Mas a ideologia dominante na Europa, em aspas, é que, se queremos recuperar a competitividade, deve-se acabar o modelo de bem-estar social. É o contrário das aspirações do Brasil e da China. Na China, sem elementos de coesão social, as tensões de uma economia que cresce a cada dia são cada vez menos controláveis e menos eficientes. Portanto, há um paradoxo para um social-democrata.
A Europa do pós-guerra se identifica com um modelo de políticas keynesianas. Crescimento econômico, pleno emprego, vantagens e construção das bases de bem-estar, como educação, aposentadoria, saúde. A partir dos anos 80, começa a crescer algo que não havia aflorado, porque ninguém tinha contestado o modelo, com [Margaret] Thatcher e [Ronald] Reagan, adotando política alternativa neoliberal, política de oferta, flexibilidade sem limite etc.
E isso por dois fatores: a liquidação da política de blocos e o impacto da revolução tecnológica.
O mundo muda muito rapidamente. O modelo de globalização tem tendência inexorável de criar mais desigualdade na redistribuição de renda, compatível com menos pobreza, mas a distância de renda entre os que menos têm e os que mais têm é maior. O mundo muda muito rapidamente sob um modelo neoliberal que faz com que pessoas como [Bill] Clinton acreditem que a desigualdade que cria o modelo da globalização, de concentração de renda, pode ser compensada não por políticas sociais diretas, mas por efeito de crédito abundante para que a gente tenha sensação da riqueza.
Essa filosofia da desregulação no funcionamento da mão invisível do mercado, onde se aplica ao máximo o funcionamento do sistema financeiro global, vai criando uma imensa bolha financeira com crescimento de 60% ao ano numa economia mundial que cresce cerca de 3%.
Essa imensa bolha especulativa, supostamente autorregulada, rebenta entre 2007 e 2008, o que poderia significar o final do século da hegemonia neoconservadora na economia mundial, por seu próprio fracasso. Mas não tem sido assim, haveria ao menos teoricamente oportunidade para os que defendem políticas mais próximas da social-democracia. Mas não é assim.
Os atores financeiros conseguiram que os governos, obcecados em controlar as contas públicas, resgatassem os bancos e não se ocupassem de regular o sistema financeiro em nível internacional.
Valor – Ou seja, a social-democracia fracassa na crise?
FG – Sim. A social-democracia está perdendo uma grande oportunidade em parte porque suas propostas são defensivas. [François] Hollande ganhou [na França] porque disse que não estava disposto a desmontar o estado de bem-estar. Mas não oferece um modelo produtivo competitivo, sustentável, para manter a coesão social. E as pessoas estão fartas de [promessas] que depois não podem se sustentar, porque a economia não é competitiva.
A resposta da social-democracia não é a resposta para a mudança que se produziu na economia mundial. A esperança com resposta ofensiva é a de Dilma, Lula, de países emergentes. São políticas econômicas que garantem geração de emprego e luta contra a marginalização social, mas com manejo da política macroeconômica que não tem cor política, que é pragmática.
Mas atenção, que não caiam na tentação das utopias regressivas.

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