Nesta
postagem do Paulo Moreira Leite, uma análise sobre a questão do racismo nos livros
de Monteiro Lobato que não cai na armadilha da simplificação maniqueísta. Esta simplificação
pretende opor censura x liberdade de
expressão, mas acaba evitando a discussão do cerne do problema, que é nossa
vergonhosa herança colonial-escravista.
Racismo
entre nós
Paulo
Moreira Leite, em seu blog
Eu já
não era tão jovem quando se dizia que a melhor definição de bobo era do sujeito
que não consegue mascar chiclete e andar ao mesmo tempo.
Acho que
isso se aplica ao debate sobre Monteiro Lobato. É nosso maior autor infantil.
Deixou uma obra densa e complexa, com várias contribuições ao
entendimento do país. Mas Lobato era um autor racista e isso não pode ser
escondido nem disfarçado. Precisa ser reconhecido e discutido pelos
brasileiros, num sinal de respeito por nossa história e pelas vítimas de uma
atitude que nossa Constituição define com crime inafiançável. Creio que devemos
esse favor às futuras gerações, já que pouco podemos fazer pelas passadas, além
de realizar um esforço para conhecer e estudar as dores do tempo em que
viveram.
O
racismo de Lobato aparece para crianças, quando ele fala do “beiço” de Tia Nastácia,
de sua “carne preta” e chega a dizer que ela subia numa árvore como “macaca de
carvão.” O racismo para adultos foi explicitado em sua correspondência privada.
Em cartas, ele admitiu que sentia inveja dos norte-americanos porque
tinham sido capazes de formar uma organização como a Ku Klux Klan,
associação terrorista que sequestrava, torturava e enforcava negros no Sul,
como uma vingança pela abolição da escravatura.
Monteiro Lobato admirava o Ku Klux Klan |
(Observação minha, Cláudio Camargo: para
quem tem dúvida, basta ler o que Lobato escreveu sobre o KKK: “Um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos uma
defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos livres da
peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre
demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”).
Este aspecto da obra de Lobato é horrível e inaceitável, mas não é um traço pessoal do autor. É expressão do Brasil daquela época. Aprendi com Edward Said, um dos grandes autores de nosso tempo, indispensável para entendermos outro tipo de preconceito – contra povos árabes – que nenhum homem está 100% livre dos atrasos mentais de sua época. Estamos condenados a carregar, por herança familiar e social, as mazelas de nossa cultura e nosso meio. Podemos nos considerar felizes quando somos capazes de reconhecer e nos emancipar de parte deles, em vez de apenas reproduzir e fortalecer as forças daninhas que foram interiorizadas em nossa formação. Mas ninguém é 100% livre de seu passado.
Fingir
que o racismo não existe e denunciar toda reação como patrulha politicamente
correta é um ato simplista, de quem se esconde atrás da liberdade de expressão
para manter a discriminação e o preconceito.
Tia Nastácia, personagem de Monteiro Lobato |
Quando
Lobato escreveu muitos de seus livros infantis, a escravidão fora abolida há
apenas 50 anos. Os antigos escravos eram marginalizados, discriminados e
segregados.
Sem
resposta aceitável para uma situação aberrante e vergonhosa, a
cultura oficial brasileira daquela época olhava para estes brasileiros e tudo
aquilo que representavam como uma visão de superioridade – racismo. Era
uma fora de jogá-los para fora da história. Sofriam porque mereciam. A
escravidão, no fundo, era justa. Civilizava o negro, dizia outro grande
escritor, José de Alencar, adversário empedernido da abolição, mesmo em 1888. A ciência explicava
as raças e, com elas, as diferenças entre os homens, dizia o racismo científico
que inspirava outro grande autor, Euclides da Cunha.
Num
momento posterior, tentou-se adotar uma outra visão sobre essa condição do
negro. A de que vivíamos numa democracia racial, onde todos eram iguais e não
havia preconceito em função da cor da pele. Hipocrisia organizada, a ideologia
da democracia racial atingiu um ponto maior de sofisticação a partir de um
silogismo maroto. Já que os homens de ciência não reconhecem raça como um valor
científico, biológico, e os homens são animais que acreditam na ciência, o
racismo simplesmente não pode existir. Logo, quem denuncia o racismo fala de um
fantasma.
Sabemos
que tem gente que se julga muito inteligente e ganha a vida repetindo isso.
Coisa de quem não sabe conviver com duas ideias diferentes. Racismo está na
cultura, nos livros, no pensamento e, como vimos, em Monteiro Lobato. O
porteiro da balada que cria dificuldade para deixar um negro entrar não tirou
nota 10 em biologia, certo?
Gilberto Freyre: o racismo cordial? |
Se você
for honesto pode encontrar racismo até na obra de Gilberto Freyre, que não
queria ser racista e condenava o racismo quando era capaz de enxergá-lo –
o que não acontecia sempre, como nós sabemos, a partir da regra de que ninguém
zera sua herança cultural ou ideológica. Freyre chega a atribuir o
temperamento, a inteligência e outros traços de um indivíduo ao fato de ser
descendente de branco, negro ou indígena. Dizia, por exemplo, que o negro
possuía uma “energia sempre fresca e nova quando em contato com a floresta
tropical,” sugerindo que isso explicava que fosse usado no trabalho duro do
engenho. Comparando populações brasileiras, Freyre dizia que o caráter “alegre,
expansivo, sociável, loquaz” dos brasileiros nascidos da Bahia, devia-se ao
elemento “negróide” de sua constituição, em contraste com populações
“tristonhas, aladas, sonsas e até sorumbáticas” de outros Estados, que seriam
“menos influenciadas pelo sangue negro e mais pelo indígena.”
É esta
herança que devemos debater, discutir e impedir que seja retransmitida às novas
gerações.
Eu acho,
por isso, que o racismo da obra de Lobato deve ser exposto e colocado, em sala
de aula, nas conversas de pais e filhos e toda vez que uma criança passar por
aquelas palavras horríveis, deprimentes – mas que, nós sabemos, fizeram parte
da experiência de homens e mulheres de uma época.
Sou
contra proibir uma obra de Lobato – e também seria contra proibir O Mercador de Veneza, de Shakespeare,
com várias passagens contra judeus, sucesso absoluto junto a certo público na
Alemanha nazista — embora eu entenda a indignação de quem teve essa ideia.
Entendo
porque é humilhante ser ofendido e ouvir, como resposta: que pena, deve ser
assim mesmo porque afinal de contas a Constituição garante a liberdade de
expressão.
É
verdade. Mas a Constituição garante, também, o respeito à dignidade de cada
cidadão – e o racismo é uma forma brutal de ataque à dignidade.
Minha
opinião é que cabe ao Estado, num país que teve a coragem de colocar o combate
ao racismo na própria Constituição, ser coerente com seus princípios e tomar a
iniciativa de combater o racismo aonde ele se encontra. Não vale esconder nem
fingir que não existe.
É por
isso que sou favorável à ideia que as edições de Caçadas de Pedrinho sejam acompanhadas de uma nota explicativa
capaz de situar Lobato e seu tempo. Este debate deve ser feito, irá formar
crianças e jovens melhores. É um dever com todos brasileiros. E não vai alterar
num único milímetro a obra original.
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