Um texto irônico e sagaz de Morris Berman, que acabou de lançar Why
America Fail, sobre o lado sombrio do Iluminismo, nas pegadas da Escola de
Frankfurt (Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklãrung).
A Teoria Bambolê da História
por Morris Berman, no Conterpunch
“Acima
de tudo, sem fervor” (Talleyrand)
William Shakespeare: sem ilusões sobre o gênero humano |
Existe um ritmo curioso nos assuntos
humanos, ou talvez mais especificamente, na história do Ocidente. Algum
movimento ou ideia surge e todos somos varridos em sua esteira. É isso, então;
é a Resposta pela qual estávamos procurando.
Todas as respostas anteriores
estavam erradas; agora, finalmente, estamos no caminho certo.
Com a passagem do
tempo, naturalmente, esta nova ideia brilhante perde o brilho, nos trai, ou
mesmo resulta em milhões de mortes. Assim, aparentemente, fomos enganados. Mas,
espere: aqui está a verdadeira nova ideia, aquela que deveríamos ter adotado
desde sempre. Esta é a Resposta pela qual estávamos procurando! Etc.
O escritor norte-americano Eric Hoffer
descreveu esta síndrome há cerca de 60 anos em um livro que gerou muito
entusiasmo (pelo menos por algum tempo), o True
Believer. As pessoas se convertem com facilidade, observou Hoffer;
elas mudam de um ismo para o outro, do Catolicismo para o Marxismo para o que
quer que apareça no horizonte.
O sistema de crenças segue seu curso,
outro
toma o seu lugar. O que é significativo é a energia envolvida, não o alvo
em particular, que na verdade poderia ser qualquer coisa. O que move este motor
é a reafirmação psicológica, a busca por Significado, com S maiúsculo — um
sistema de crenças amplo, que explique tudo. Existe um sentimento, não
reconhecido, de que sem isso estamos perdidos; que sem isso a vida não tem
propósito, a história não tem significado; que ambos (como Shakespeare disse)
seriam pouco mais que uma fábula contada por um pateta, cheia de som e fúria,
significando nada.
Chamo isso de Teoria Bambolê da História,
mas poderia ser chamada de Teoria da Pedra de Estimação ou qualquer outra
doideira que conquista nossa atenção por uma semana ou um século. Tem muito em
comum com o pensamento cético do filósofo do século 16 Montaigne, que teve
grande influência sobre Eric Hoffer e muitos outros.
Em seus ensaios Montaigne indicou que as
novas ciências de Copérnico e Paracelso alegavam que as ciências antigas de
Aristóteles e Ptolomeu eram falsas. Mas quanto tempo levaria, ele argumentou,
até que um futuro cientista aparecesse para dizer o mesmo sobre Copérnico e
Paracelso? Nós realmente sabemos a verdade de uma vez por todas?
Esta teoria, suponho, também pode ser
chamada de Teoria da História do Marinheiro Bêbado. Refletindo sobre o primeiro
ímpeto da Revolução Francesa, William Wordsworth escreveu: “Felicidade estar
vivo naquele alvorecer”. Depois de Robespierre, do Terror e dos rios de sangue
que jorraram nas ruas de Paris, no entanto, um sóbrio Talleyrand comentou que o
que a raça humana precisava, acima de tudo, era ficar longe do zelo. O caminho
da felicidade para a barbárie pode não ser linear, mas parece bastante comum,
falando historicamente.
O último tratado da escola
Montaigne-Hoffer de história é do acadêmico britânico John Gray, Black Mass.
Gray se apropria com liberalidade do trabalho do historiador norte-americano
Carl Becker, cujo Heavenly City of the Eighteenth-Century
Philosophers (1932)
nunca foi sobrepujado como análise da modernidade.
Becker argumenta que a noção de redenção,
que se encontra no coração do Cristianismo, foi recolocada pelos filósofos do
Iluminismo francês em termos de progresso, de salvação secular. A utopia
iluminista, em uma palavra, era a transformação da escatologia cristã na crença
do aperfeiçoamento do homem-paraíso na terra, por assim dizer. Seria a Segunda
Vinda, a derrota da ignorância e do mal (=pecado) através de conhecimento
confiável, em particular da Ciência e Tecnologia.
Na visão de Grey, o “fundamentalismo
secular” moderno — Jacobinismo, Bolchevismo, Fascismo e, mais recentemente,
globalização — resultou diretamente desta transformação. Deu numa missa negra
satânica, invertida (isto é, recitada de trás para frente), na qual estas
pseudo-religiões todas causaram um mundo de danos.
A ideia comum para todas elas é que o
progresso e a perfectibilidade estão ao nosso alcance e podem ser atingidas
através de um processo histórico no qual o verdadeiro conhecimento vai derrotar
a ignorância (o mal). Assim o mundo e nossas psiques serão salvas em nosso
mundo secular moderno, não menos que no mundo cristão medieval, já que a
História em si está prenhe de Significado.
Triste dizer, mas as três primeiras destas
religiões seculares, com a passagem do tempo, mostraram ser não a Resposta, mas
um fracasso de Deus; e a globalização (descontando Thomas Friedman e seus
devotos) está na mesma rota, revelando ser um “falso alvorecer”. Naturalmente,
diz Gray, quando a globalização e o neoliberalismo forem expostos pelo que são
e ocuparem seu lugar no lixo da história, é difícil acreditar que vamos
abandonar as noções de progresso, utopia e do Significado da história. Sem
chance.
Nós no Ocidente teremos de encontrar outro
bambolê, outra pedra de estimação, porque como uma civilização Cristã, somos
incapazes de viver sem o mito da redenção. Assim, ele conclui, “o ciclo de
ordem e anarquia nunca vai terminar”. A tragédia é que nós “preferimos o
romance de uma busca sem sentido para enfrentar dificuldades que nunca poderão
ser finalmente superadas”. Daí, “a violência da fé parece pronta a moldar o
próximo século”.
No presente, não está claro qual será o
próximo bambolê; mas não estou certo de que isso importe tanto. Se a escola de
análise histórica de Montaigne-Hoffer-Gray estiver correta, o que é certo
é que não haverá descarte antecipado do zelo, nem condições de barrar a
bebedeira ideológica-religiosa depois do segundo martini, por assim dizer. A
palavra “algum” tem pouco significado em um mundo de fundamentalismo secular;
para nós, é tudo ou nada. “O homem não consegue fazer uma minhoca”, escreveu
Montaigne, “mas faz deuses às dúzias”.
Por ser tudo, de certa forma, uma espécie
de xamanismo, uma tentativa de se tornar completo usando mágica. Todos estamos
quebrados, afinal; é por isso que a promessa de redenção tem um poder tão
grande sobre nós. “Eu sou o que completa”, declarou um xamã Mazateca alguns
anos atrás. Tudo se resume a uma tentativa (mal dirigida) de cura, que é reforçada
pela prática tribal (conhecida comumente como pensamento coletivo).
Eu me lembro de ter participado de uma
conferência sobre pós-modernismo nos anos 90 e de notar como os seminários eram
similares, em forma, com os dos membros do Partido Comunista nos anos 30. Os
“nomes sagrados” eram diferentes — citados eram de Man e Derrida em vez de Marx
e Lênin — mas os olhos brilhantes e a repetição feito mantra das frases
politicamente pré-aprovadas era a mesma. Verdade seja dita, tenho observado o
mesmo comportamento hipnótico em todos os tipos de conferências acadêmicas, do
feminismo à ciência da computação.
Você assiste, escuta e reflete: quando
finalmente vamos acordar? E você sabe a verdade terrível: nunca. Na verdade,
deveremos continuar a erigir estátuas a Napoleão, mas nunca, ou raramente, a
Montaigne. Isso é claro.
O que me leva à base de tudo, a estrutura
do cérebro. O lobo frontal, o neocórtex que governa o pensamento racional e os
processos lógicos, é um novato na cena, em termos de evolução. O sistema
límbico, que é o centro do impulso e da emoção, está por aí faz muito mais
tempo. O conflito entre ambos é talvez melhor ilustrado pelo caso do alcoólatra
sentado no balcão do bar, vidrado numa caneca gelada de cerveja diante dele. O
neocórtex diz não, o sistema límbico diz vai. Estatisticamente, a maioria dos
alcoólatras morre de envenenamento alcoólico ou cirrose; poucos escapam do
canto da sereia do sistema límbico. Como Goethe escreveu, “o mundo não é
lógico, é psico-lógico”. E isso, me parece, sem nenhum exagero.
Não vamos escapar da devastação da mudança
do clima; não vamos escapar dos desastres econômicos e ecológicos que são
integrais ao capitalismo global; não seremos capazes de evitar uma crise do
petróleo, uma crise da energia e as crises dos alimentos e da água vão se
tornar extremas quando a população da terra chegar a 10 ou 11 bilhões na metade
do século. Estas coisas não serão resolvidas pela razão, pelo neocórtex,
independentemente de quantos artigos sejam publicados sobre estes temas nos
jornais e revistas populares.
E certamente eles não podem ser resolvidos
pelo cérebro límbico, cuja função é indulgência, não controle. Assim, é uma
especulação justa dizer que passaremos a fazer as coisas de jeito diferente
apenas quando não houver outra escolha; mesmo então, nós sem dúvidas vamos
colocar nossos esforços em alguma nova forma brilhante de bambolê, um sistema
de crenças que finalmente será o verdadeiro, depois de todas as largadas em
falso; aquele que deveríamos ter adotado desde sempre.
Como chamá-lo? Catastrofismo, talvez. Você
pode considerar este artigo seu documento fundador.
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