Trechos do livro Massa e
Poder, de Elias Canetti (1905-1994), uma reflexão fundamental sobre o fenômeno das massas:
Elias Canetti |
“Não há nada que o homem mais tema do que o contato
com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que está tocando, que ser capaz de
classificá-lo ou, ao menos, de classificá-lo. Por toda parte, o homem evita o
contato com o que lhe é estranho. À noite ou no escuro, o pavor ante o contato
inesperado pode intensificar-se até o pânico. Nem mesmo suas roupas
proporcionam segurança suficiente – quão facilmente se pode rasgá-las, quão
fácil é avançar até a carne nua, lisa, indefesa da vítima”.
(...)
“Tal aversão ao contato não nos deixa nem quando
caminhamos em meio a outras pessoas. A maneira como nos movemos na rua, em meio
aos muitos transeuntes, ou em restaurantes, trens e ônibus, é ditada por esse
medo. Mesmo quando nos encontramos bastante próximos das pessoas; mesmo quando
podemos observá-las bem e inspecioná-las, ainda assim evitamos, tanto quanto
possível, qualquer contato com elas. Se fazemos o contrário, é porque gostamos
de alguém, e, nesse caso, a iniciativa da aproximação parte de nós mesmos”.
(...)
“A presteza com que nos
desculpamos quando do contato não intencional; a tensão com que se aguardam
tais desculpas; a reação veemente e, por vezes, violenta quando elas não vêm; a
repugnância e o ódio sentidos em relação ao “malfeitor”, mesmo quando não nos é
possível ter certeza de quem foi que nos tocou – todo esse emaranhado de
reações psíquicas em torno do contato com o estranho demonstra, pela instabilidade
e irritabilidade extremas, tratar-se aí de algo muito profundo, sempre desperto
e melindroso, algo que, uma vez tendo o homem estabelecido as fronteiras de sua
pessoa, nunca mais o abandona. Mesmo o sono, estado em que nos encontramos
muito mais indefesos, é facilmente perturbado por este tipo de temor”.
(...)
“Somente na massa é possível ao homem libertar-se do temor do contato. Tem-se aí a única
situação na qual esse temor transforma-se no seu oposto. E é da massa densa que se precisa para tanto, aquela na qual um corpo
comprime-se contra o outro, densa inclusive em sua constituição psíquica, de modo que
não atentamos para quem é que nos “comprime”. Tão logo nos entregamos à massa
não tememos o seu contato. Na massa ideal, todos são iguais. Nenhuma
diversidade conta, nem mesmo a dos sexos. Quem quer que nos comprima é igual a
nós. Sentimo-lo como sentimos a nós mesmos. Subitamente, tudo se passa então
como no interior de um único corpo. talvez essa seja uma das razões pelas quais a massa
busca concentrar-se de maneira tão densa: ela deseja libertar-se tão
completamente quanto possível do temor individual do contato. Quanto mais
energicamente os homens se apertam uns contra os outros, tanto mais seguros
eles se sentirão de não se temerem mutuamente. Essa inversão do temor do contato é característico da massa”.
(...)
“Absoluta e indiscutível,
tal igualdade jamais é questionada pela própria massa. Ela é de tão fundamental
importância que se poderia definir o estado da massa como um estado de
igualdade absoluta. Uma cabeça é uma cabeça; um braço é um braço – as
diferenças não importam. É por causa dessa igualdade que as pessoas
transformam-se em massa. O
que quer que possa desviá-la desse propósito é ignorado. Toda demanda de
justiça, todas as teorias igualitárias retiram sua energia dessa experiência de
igualdade que todos, cada um a seu modo, conhecem a partir da massa”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário