O relatório de Lord Brian Levenson, sobre as estripulias
do grupo Murdoch no Reino Unido e as medidas propostas para regular a mídia,
teve escassa repercussão na mídia nacional, que se prestou a minimizar o fato. Surpreendentemente,
o jornal conservador britânico Financial
Times condenou a “falta de humildade” da indústria de jornais, enquanto que
o outrora progressista The New York Times
partiu para a ofensiva, criticando o relatório como “ameaça à liberdade de
imprensa”.
Este belo texto de Alberto Dinas compara o panfleto do
poeta John Milton (1608-1674), contra a censura da Inquisição no século XVII,
ao relatório de Lord Levenson de agora, colocando-os como documentos em defesa
da liberdade de expressão e dos direitos do cidadão.
Aeropagítica, 368 anos depois,
Por
Alberto Dines, no Observatório da Imprensa
Na
verdade, 368 anos e seis dias: o famoso panfleto em prosa do poeta John Milton
foi apresentado ao Parlamento inglês no dia 23 de novembro de 1644, o relatório
do lorde-juiz Brian Leveson, com 1.977 páginas, foi apresentado à mesma Casa na
quinta-feira, 29 de novembro.
Milton
inspirou-se no discurso homônimo do ateniense Isócrates proferido no século 5,
antes de Era Comum. O Areopagus era um monte em Atenas onde se realizavam
grandes debates e julgamentos. Isócrates pretendia restabelecer o poder desse
tribunal, tal como Milton com o Parlamento, em plena guerra civil, 22 séculos
depois.
O
protestante Milton investia contra a Inquisição católica que permitia apenas a
impressão de textos autorizados por seus censores e, com isso, arrebanhou as
simpatias dos parlamentares puritanos. Os membros do Parlamento – entendia
Milton – deviam ter acesso a todas as opiniões e argumentações, não apenas
àquelas autorizadas pelos poderosos. Sua ideia inicial era um discurso perante
seus pares, mas ao defender a liberdade de impressão sem licenciamento e
entraves de qualquer espécie, considerou mais coerente e eficaz trazer um caso
concreto em defesa da liberdade de imprimir e expressar-se: optou pelo
panfleto.
Em nenhum momento do demorado
inquérito que presidiu ou em qualquer passagem do longo relatório que
coordenou, manifesta lorde Leveson qualquer sugestão restritiva ou censória.
Sequer prepara o caminho para uma intervenção do governo. A comissão que
preside foi constituída por determinação do gabinete com irrestrito apoio do
Parlamento e da sociedade britânica, todos igualmente indignados com a sórdida
atuação dos acionistas, executivos, editores e repórteres do tabloide News of the World, do magnata
Rupert Murdoch.
Show de cinismo
O
escândalo comprovou a precariedade, indecência e a complacência do sistema de
autorregulação da imprensa até então vigente no Reino Unido. O objetivo do
magistrado Leveson sempre foi o de reforçar a autorregulação colocando-a
efetivamente na esfera pública e em condições de atuar com agilidade, rigor e
livre de qualquer interferência política ou governamental.
A Comissão de Queixas contra a
Imprensa (PCC, na sigla em inglês) sempre foi um country club corporativo,
chancelou todos os abusos e jamais conseguiu protestar, denunciar ou penalizar
qualquer infâmia cometida pela mídia britânica. Não foram poucas.
Para livrar-se da acusação de
que era beneficiário da “imprensa marrom” (a designação original em inglês é yellow press, imprensa
amarela), o premiê conservador David Cameron está tentando assumir o papel de
paladino da liberdade de expressão e adversário do Relatório Leveson. Seu
parceiro na coligação que controla o gabinete, o liberal Nick Clegg, foi na
direção contrária e alinhou-se com os trabalhistas: apoia as ideias e o
receituário cauteloso, porém firme, do juiz Leveson.
O editorial do mais importante
diário de economia e negócios do mundo, o conservador Financial Times é surpreendente, revolucionário:
condena a falta de humildade da indústria de jornais ao recusar qualquer
crítica à sua atuação. A imprensa não pode colocar-se acima da lei, diz o FT, e radicaliza:
“Cabe à indústria acolher o relatório, mesmo que não
concorde com uma linha sequer de suas recomendações. O catálogo de abusos
expostos no relatório confirma que partes da indústria estavam fora de qualquer
controle. Há inúmeros exemplos de conduta temerária. O Quarto Poder aquecia-se
nos privilégios das rameiras: poder sem responsabilidade” (clique
aqui para a íntegra do editorial, em inglês).
No outro lado do Atlântico,
editorial do outrora liberal-progressista New
Yok Times deu um show de
cinismo ao qualificar o documento Leveson como ameaça à liberdade (ver “Liberdade
de imprensa em risco”). Esqueceu que se a indústria de jornais dos
EUA não fosse parcialmente regulada e protegida pela Comissão Federal de
Comunicação (FCC, na sigla em inglês), o próprio The New York Times já estaria despedaçado por um
concorrente autorizado a operar uma emissora de TV local.
Salto de qualidade
Separados
por quase quatro séculos, John Milton e Brian Leveson estão juntos, do lado do
interesse público e do bem comum: o sonho libertário de buscar o conhecimento
irrestrito iniciado em 1644 completou-se em 2012 com o estabelecimento de
regras para defender os cidadãos da barbarização através da informação.
O
processo é o mesmo, não desandou. A busca de informações sem constrangimentos
continua com o mesmo empenho, agora acrescida da preocupação pela lisura na sua
obtenção. A humanidade não abre mão da prerrogativa de buscar o saber sem
tutelas. A conquista da liberdade no século XVII completou-se agora no início
do século XXI com a consagração do princípio da responsabilidade. Liberdade sem
deveres é fraude, é isso que Leveson nos oferece de forma tão clara e cabal.
Ao
longo desses quatro séculos a humanidade preocupou-se quase exclusivamente com
o aumento das escalas, as novas tecnologias atendiam a esta obsessão. O desafio
contemporâneo é perseverar nos valores que deram sentido à extraordinária
caminhada em direção ao conhecimento. Aqueles que outrora não admitiam a busca
irrestrita da verdade são os ancestrais daqueles que hoje pregam o vale-tudo.
O
único senão do documento Leveson é a sua omissão no tocante às mídias digitais,
esqueceu-as. Terá que se explicar.
Importa o salto de qualidade
da primeira Areopagítica à sua segunda versão. Antes queríamos mais, hoje também queremos o melhor, o mais decente e o
correto.
***
Leveson e o
“jornalismo fiteiro”
A
grande imprensa brasileira preparou-se cuidadosamente para enfrentar as
repercussões da divulgação do relatório. A notícia não foi escamoteada,
parabéns! Mas foi habilmente desfibrada. Os jornalões comportaram-se de forma
idêntica: na sexta-feira (30/11) historiaram sem grande destaque o escândalo e
registraram a conclusão dos trabalhos. Mas não examinaram o teor do relatório,
suas condenações e propostas. No fim de semana, o nome Leveson evaporara
magicamente. Autorregulação é assunto tabu.
Na culminação da temporada do
mensalão perdemos uma excelente oportunidade para exercitar nossa capacidade de
comparar e buscar simetrias. As malfeitorias da gangue do News of the World realizaram-se majoritariamente no
campo das intrusões telefônicas ilegais. Na última emissão do Observatório da Imprensa na TV Brasil, o ex-ombudsman da Folha de S.Paulo e agora biógrafo de sucesso, Mário
Magalhães, lembrou que nas últimas décadas a maioria dos grandes escândalos
denunciados por nossa mídia foram produzidos por idênticas intrusões
telefônicas ilegais.
Acontece
que o “jornalismo fiteiro” no Reino Unido transformou-se no Inquérito Leveson.
Aqui, o máximo que se conseguiu foi o fim do ofício de araponga no mercado de
trabalho investigativo.
***
Em tempo: Para os interessados em conhecer Areopagítica, de John Milton,
o texto está publicado, em tradução de Hipólito José da Costa, no volume 4 da
coleção fac-similar do Correio
Braziliense (pág. 479 a 503, e pág. 616 a 639 – maio-junho de
1810), editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e por este Observatório.
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