Roma teve Catão; Florença, Savonarola e a Espanha, Torquemada – os três, guardiões da moral e dos bons costumes, dispostos a cortar a cabeça dos corruptos e impuros e a extirpar o mal pela raiz.
Demóstenes não é Collor. Mas pode ser pior
Saul Leblon, da CartaMaior
Enganam-se os que equiparam o caso Demóstenes Torres ao revés sofrido pelo conservadorismo brasileiro no impeachment de Collor há quase duas décadas. O baque atual pode ser maior. Não pela importância intrínseca de Demóstenes, mas pelo entorno histórico que cerca o streap-tease ético do aspirante a novo S
Savonarola das elites nativas.
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As delicadas relações do senador goiano com o bicheiro Carlinhos Cachoeira - e a possibilidade de que o governador tucano Marconi Perillo venha a ser o próximo alvo- pôs em operação o “duplipensar” orwelliano que, desde a posse de Lula, está incorporado aos manuais de redação. Como o objetivo é afastar o ex-varão de Plutarco de cena, para prosseguir atacando o governo da presidente Dilma, os “cães de guarda” cumprem a tarefa com afinco.
No reduzido vocabulário da “Novilíngua”, o “duplipensamento” é assim explicado por um dos personagens de “1984”:
“capacidade de manter simultaneamente duas crenças opostas, acreditado igualmente em ambas(…). Saber que está brincando com a realidade mas, mediante o exercício de tal raciocínio, convencer a si próprio, que não está violentando a realidade. O processo deve ser consciente, pois do contrário não funcionará com a previsão necessária: mas, ao mesmo tempo, deve ser inconsciente para não produzir sensação de falsidade e culpa”.
Com esse trecho, cremos ter decifrado os sorrisos de Merval Pereira, Dora Kramer, Augusto Nunes, Eliane Catanhede, entre outros, quando confrontados com a palavra “ética”.
Para eternizar a ordem que defendem com unhas e dentes o cenário político, submetido ao pensamento único, passa por processos de ocultamento e simplificação, visando a eliminar todas as possibilidades de pensar dos membros do Partido Imprensa.
Outra implicação do “duplipensar” da mídia corporativa é a constante alteração do passado. O registro – e consequentemente a memória – dos fatos ocorridos devem ser refeitos sempre, a fim de adaptarem-se ao presente. O trabalho de um “bom” editorialista é reescrever a visão dos veículos em que trabalha para que não contradiga a realidade de hoje. Assim, por exemplo, Folha, Globo e Estadão podem condenar o golpe de 1964, mesmo o tendo apoiado ostensivamente. Se um livro denuncia um líder político como Serra e outras figuras no seu entorno, a solução é simples: Ele nunca foi escrito e, portanto, jamais será resenhado, sendo passível de punição severa quem não entender como funcionam as “leis naturais”.
Além da eliminação do passado como elemento de desarmonia com o presente e como instrumento de verificação das afirmações do Partido Imprensa, este recorre a outros meios, bem mais convencionais, para moldar a consciência de seus filiados e simpatizantes (leitores e telespectadores): educação permanente assegurada pela propriedade cruzada dos meios de comunicação, atividade coletiva sem intervalos, o que pode ser obtido mediante ampla oferta de blogs, sites, jornais e redes que digam sempre o mais do mesmo . Para concluir, vem a valorização do poder político como fim, não como meio.
O incômodo Demóstenes deve, após a sequência de denúncias, ter um diagnóstico clínico que despolitize o seu desvio. Merece, pelos serviços prestados, um roteiro que conte a tragédia do Catão caído, até que, finalmente, desapareça na lata de lixo reservada aos que fugiram da trama original. Assim agem os bons autores ao tomar como ponto de partida uma realidade familiar e palpável e transformá-la em espetáculo perecível. Em tempo: o DEM, assim como o PFL, nunca contou com o apoio das corporações midiáticas por um simples motivo: nunca existiu.
Vejam como operam nossos talentosos colunistas. Orwell ficaria tão contente que, com certeza, lhes arrumaria um lugar no Ministério da Verdade.
“Em um mês, o senador Demóstenes Torres passou de acima de qualquer suspeita para abaixo de qualquer certeza, num episódio que desafia os romances policiai s mais surpreendentes. Alem da atuação implacável contra a corrupção, ele tinha a cara, vestia o figurino e se comportava como um incorruptível homem de bem – e talvez seja mesmo sócio da holding criminosa de Cachoeira (Nélson Motta, 6/04/2012, o Globo)
“Demóstenes Torres não seria beneficiado pelo “vício insanável da amizade” – expressão usada pelo notório Edmar Moreira (o deputado do “castelo”) para definir o principal obstáculo a punições -, pois os amigos que fez ali estão entre as exceções e os demais confirmam a regra.Por terem sido alvos do senador na face clara de sua vida agora descoberta dupla, podem querer mostrar-se ao público em brios. O problema, porém, é a falta de credibilidade” (Dora Kramer, 6/04/2012, Estado de S. Paulo)
“Esse personagem que o senador criou para si próprio não era uma mentira de Demóstenes, ele incorporou esse personagem e acreditava nele. Podia acusar com veemência seus colegas senadores apanhados em desvios, como Renan Calheiros, enquanto mantinha o relacionamento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira porque, como todo psicopata, não misturava as personalidades “(Merval Pereira, reproduzindo argumento do psicanalista Joel Birman, 30/03/2012, O Globo)
Marco Pórcio Catão |
O Brasil, repetindo a máxima marxiana de que a história se repete duas vezes, a segunda como farsa, teve vários candidatos a salvadores da pátria: Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Fernando Collor de Melo e, agora, Demóstenes Torres. Todos de direita, todos vestais da República; todos farsantes. Lacerda, que denunciava o "mar de lama" de Getúlio, foi o maior golpista da nossa história; conspirou abertamente contra vários presidentes constitucionais: Getúlio (o do segundo governo), JK, Jânio e Jango. Jânio, a “UDN de porre”, igualmente golpista e corrupto até a raiz dos cabelos; Collor, o “caçador de marajás” que a mídia inventou para enfrentar o “sapo barbudo” (Lula), era um gângster de província. Agora, esse patético senador Demóstenes Torres, até pouco incensado pela grande mídia como paladino dos bons costumes e da ética na política, ícone da classe média “qualunquista” que não passava de uma cascata a serviço de Carlinhos Cachoeira. Como dizia Evgene Ievetuchenko, "o verdadeiro hipócrita não é o que dissimula, mas o que tenta persuadir os outros daquilo em que não acredita".
Abaixo dois artigos sobre o affair Demóstenes: o primeiro o compara a Collor em perspectiva histórica; o segundo versa sobre o método "orwelliano" da mídia tupiniquim de construção do consenso conservador.
Saul Leblon, da CartaMaior
Savonarola das elites nativas.
Collor renunciou ao final de 1992. No ano seguinte Bill Clinton sucederia a Reagan na maratona desregulatória nos EUA. A retroescavadeira neoliberal sacudiria o legado de Roosevelt por quase dez anos (até 2001), sobretudo no sistema financeiro. A direita brasileira, portanto, estava amparada ideologicamente no ambiente internacional. Rapidamente ela se refez da queda do caçador de marajás que ajudara a eleger (e como!). Seu dispositivo midiático agiu em duas frentes. Reduziu o ex-herói à insignificância política de um personagem que não estava à altura do seu enredo. Mas preservou o enredo, encontrando um similar de Clinton para comandar as 'reformas' aqui: FHC
A gestão democrata em Washington foi um lastro decisivo nesse processo. Clinton não apenas incorporou o legado de Reagan (que por sua vez havia replicado Tatcher), como aprofundou-o estendendo a desregulação e o Estado mínimo à esfera bancária para pavimentar a supremacia das finanças desreguladas. Não é retórica. A eliminação da lei Glass Stegall, em 1999, liberou a formação dos grandes conglomerados financeiros ao suprimir as barreiras criadas por Roosevelt, em 1933, que separavam bancos de investimentos da banca comercial. A fusão dos dois balcões num só permitiu aos financistas especularem com dinheiro alheio, sem contrapartidas equivalentes.
O afrouxamento da supervisão estatal gerou o fastígio do crescimento sem poupança, à base do crédito ilimitado. Foi um sucesso enquanto a corrente se ampliava. A coisa desmoronou em 2008, com o estouro das subprime. O resto é sabido. E o sabido foi tragicamente sintetizado no suicídio de um aposentado grego, na semana passada. Ao tirar a própria vida com um tiro, ele deixou um bilhete no qual exorta os jovens à luta armada e declara sua recusa à opção cada dia mais coerente com a persistência da lógica dos livres mercado: comer lixo. É nesse ambiente ideologicamente abafado dos interesses conservadores que se dá o streap-tease do aspirante a novo Collor dos Cerrados.
A mídia investia pesado na face do novo Savonarola, lambuzando-o com o glacê da 'direita preparada e linha-dura'. Abandonado agora à sarjeta reservado aos que encerram elevado teor contagioso, o senador dublê de contraventor escancara a indigência ideológica do projeto conservador para o Brasil. Ao contrário do que se viu nos anos 90, hoje à crise moral personificada no centurião goiano superpõe-se a assustadora deriva de uma economia mundial em que o reiteração das ideias mercadistas tornou-se sinônimo de recessão e desespero. A margem de manobra estreitou-se a olhos vistos.
Quem se habilita a preencher o hiato com um salto progressista de abrangência e profundidade equivalentes ao que representou o ciclo neoliberal, nos anos 90? Esse é o ponto.
Demóstenes e o ‘duplipensar’ da imprensa
por Gilson Caroni Filho
Qualquer pessoa de bom senso, que tenha lido os articulistas da grande imprensa, desde o surgimento dos escândalos envolvendo o senador Demóstenes Torres, concluirá facilmente que os trabalhadores das oficinas de consenso, aturdidos com o que lhes parece um ponto fora da curva, uma desconstrução dispendiosa e extemporânea, são como aqueles motoristas que imaginam poder dirigir um veículo com os olhos presos ao retrovisor. Não enxergam a clareza da realidade. O círculo do jornalismo de encomenda, minúsculo e cego, está só, murado no seu isolamento.
A pedagogia dos fatos, inexorável nas suas evidências, parece passar ao largo das redações. O que se faz ali não é jornalismo, mas um simulacro de literatura de antecipação marcada por profundo pessimismo e cenários de devastação. Talvez George Orwell e seu clássico “1984” expliquem melhor o suporte narrativo da fábula que não deixa de trazer uma concepção de história autoritária e retrógada.
No reduzido vocabulário da “Novilíngua”, o “duplipensamento” é assim explicado por um dos personagens de “1984”:
“capacidade de manter simultaneamente duas crenças opostas, acreditado igualmente em ambas(…). Saber que está brincando com a realidade mas, mediante o exercício de tal raciocínio, convencer a si próprio, que não está violentando a realidade. O processo deve ser consciente, pois do contrário não funcionará com a previsão necessária: mas, ao mesmo tempo, deve ser inconsciente para não produzir sensação de falsidade e culpa”.
Com esse trecho, cremos ter decifrado os sorrisos de Merval Pereira, Dora Kramer, Augusto Nunes, Eliane Catanhede, entre outros, quando confrontados com a palavra “ética”.
Para eternizar a ordem que defendem com unhas e dentes o cenário político, submetido ao pensamento único, passa por processos de ocultamento e simplificação, visando a eliminar todas as possibilidades de pensar dos membros do Partido Imprensa.
Outra implicação do “duplipensar” da mídia corporativa é a constante alteração do passado. O registro – e consequentemente a memória – dos fatos ocorridos devem ser refeitos sempre, a fim de adaptarem-se ao presente. O trabalho de um “bom” editorialista é reescrever a visão dos veículos em que trabalha para que não contradiga a realidade de hoje. Assim, por exemplo, Folha, Globo e Estadão podem condenar o golpe de 1964, mesmo o tendo apoiado ostensivamente. Se um livro denuncia um líder político como Serra e outras figuras no seu entorno, a solução é simples: Ele nunca foi escrito e, portanto, jamais será resenhado, sendo passível de punição severa quem não entender como funcionam as “leis naturais”.
Além da eliminação do passado como elemento de desarmonia com o presente e como instrumento de verificação das afirmações do Partido Imprensa, este recorre a outros meios, bem mais convencionais, para moldar a consciência de seus filiados e simpatizantes (leitores e telespectadores): educação permanente assegurada pela propriedade cruzada dos meios de comunicação, atividade coletiva sem intervalos, o que pode ser obtido mediante ampla oferta de blogs, sites, jornais e redes que digam sempre o mais do mesmo . Para concluir, vem a valorização do poder político como fim, não como meio.
O incômodo Demóstenes deve, após a sequência de denúncias, ter um diagnóstico clínico que despolitize o seu desvio. Merece, pelos serviços prestados, um roteiro que conte a tragédia do Catão caído, até que, finalmente, desapareça na lata de lixo reservada aos que fugiram da trama original. Assim agem os bons autores ao tomar como ponto de partida uma realidade familiar e palpável e transformá-la em espetáculo perecível. Em tempo: o DEM, assim como o PFL, nunca contou com o apoio das corporações midiáticas por um simples motivo: nunca existiu.
Vejam como operam nossos talentosos colunistas. Orwell ficaria tão contente que, com certeza, lhes arrumaria um lugar no Ministério da Verdade.
“Em um mês, o senador Demóstenes Torres passou de acima de qualquer suspeita para abaixo de qualquer certeza, num episódio que desafia os romances policiai s mais surpreendentes. Alem da atuação implacável contra a corrupção, ele tinha a cara, vestia o figurino e se comportava como um incorruptível homem de bem – e talvez seja mesmo sócio da holding criminosa de Cachoeira (Nélson Motta, 6/04/2012, o Globo)
“Demóstenes Torres não seria beneficiado pelo “vício insanável da amizade” – expressão usada pelo notório Edmar Moreira (o deputado do “castelo”) para definir o principal obstáculo a punições -, pois os amigos que fez ali estão entre as exceções e os demais confirmam a regra.Por terem sido alvos do senador na face clara de sua vida agora descoberta dupla, podem querer mostrar-se ao público em brios. O problema, porém, é a falta de credibilidade” (Dora Kramer, 6/04/2012, Estado de S. Paulo)
“Esse personagem que o senador criou para si próprio não era uma mentira de Demóstenes, ele incorporou esse personagem e acreditava nele. Podia acusar com veemência seus colegas senadores apanhados em desvios, como Renan Calheiros, enquanto mantinha o relacionamento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira porque, como todo psicopata, não misturava as personalidades “(Merval Pereira, reproduzindo argumento do psicanalista Joel Birman, 30/03/2012, O Globo)
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