Umberto Eco |
Num texto escrito em 1979 (O Sagrado não é uma moda), Umberto Eco analisava a volta da religiosidade no mundo moderno, advinda com a percepção do fracasso do projeto iluminista de emancipação humana, do qual o marxismo tinha sido o último capítulo - e olha que ele escreveu dez anos antes da queda do Muro. Mas, fiel ao legado do Iluminismo, não à sua letra, Eco insiste nas velhas técnicas da razão e da lógica, mas desprovidas da tentação milenarista, para combater o fascínio irracionalista das religiões:
"Ao lado dessas manifestações de religiosidade 'positiva'(crescimento dos fundamentalismos islâmico, cristão e judaico, NR), eis a nova religiosidade dos ex-ateus, revolucionários desiludidos que se atiram à leitura dos clássicos da tradição, os astrólogos, os macrobióticos, os poetas visionários, o neofantástico [...] e, finalmente, não mais textos de Marx ou Lênin, mas obras obscuras de grande inatuais [...] que tinham grande raiva do fazer humano e do mundo moderno em geral.
"Sobre esses elementos, sobre essas inegáveis tendências, parece porém porém que os meios de massa estejam construindo um roteiro que repete o esquema sugerido por Feuerbach, para explicar o nascimento da religião. O homem, de algum modo, sente que é infinito, isto é, capaz de querer de modo ilimitado, de querer tudo, digamos. Mas não percebe não ser capaz de realizar o que deseja, e então precisa imaginar-se um Outro (que possua em medida optimal o que ele deseja de melhor) e a quem se delegue a tarefa de preencher a fratura entre o que se quer e o que se pode. [...]
Goya, O sonho da razão produz monstros |
"A questão é que as ideias de Deus que povoaram a história da humanidade são de dois tipos. De um lado está um Deus pessoal que é a plenitude do ser ("eu sou como aquele que é") e que, portanto, resume em si todas as virtudes que o homem não tem, sendo o Deus da onipotência e da vitória, o Deus dos Exércitos. Mas esse mesmo Deus se manifesta frequemente de maneira oposta: como aquele que não é. Não porque não possa ser nomeado, nem porque não possa ser descrito por nenhuma das categorias que usamos para designar as coisas que são. Esse Deus que não é atravessa a história mesma do cristianismo: esconde-se, é indizível, pode-se chegar a ele apenas por força de teologia negativa, é a suma daquilo que dele não pode ser dito, falamos dele celebrando nossa ignorância e o nomeamos, no máximo, como vórtice, abismo, deserto, solidão, silêncio, ausência.
"Desse Deus alimenta-se o sentido do sagrado, que ignora as igrejas institucionalizadas [...] O sagrado [...] é a intuição de que haja algo não produzido pelo homem e em relação ao qual a criatura sente atração e repulsa ao mesmo tempo. Ele produz um senso de terror, uam irresistível fascinação, um sentimento de inferioridade e um desejo de expiação e sofrimento. Nas religiões históricas esse sentimento confuso tomou a forma, a cada vez, de divindades mais ou menos terríveis. Mas no universo leigo há pelo menos cem anos que ele assume outras formas. O tremendo e o charmoso renunciaram a revestir-se das aparências antropomorfas do ser perfeitíssimo para assumir as de um Vazio, em relação ao qual nossos propósitos são fadados ao fracasso.
"Uma religiosidade do Inconsciente, do Vórtice, da Falta do Centro, da Diferença, da Alteridade absoluta, da Ruptura atravessou o pensamento moderno como contraconto subterrâneo à insegurança da ideologia oitocentista do progresso e ao jogo cíclico das crises econômicas. Esse Deus tornado leigo e infinitamente ausente acompanhou o pensamento contemporâneo sob vários nomes e explodiu no renascimento da psicanálise, na redescoberta de Nietzsche e de Heidegger, nas novas antimetafísicas da Ausência e da Diferença. Durante o período de otimismo político tinha-se criado uma nítida ruptura entre esses modos de pensar o sagrado, ou seja, o incognoscível e as ideologias da onipotência política; com a crise seja do otimismo marxista seja daquele liberal, essa religiosidade do vazio de que somos entretecidos invadiu o próprio pensamento da assim chamada esquerda.
"Sobre essas novas telogias negativas, sobre as liturgias que delas derivam, sobre sua incidência no pensamento revolucionário, valerá a pena interrogar-se ao longo dos próximos anos e ver quanto, elas também, permanecem sensíveis à crítica de Feuerbach, por exemplo. Ou seja, ver se através desses fenômenos culturais não está se perfilando uma nova idade média de místicos leigos, mais propensos ao retiro monástico do que à participação citatina. Deveríamos ver de que valia ainda pode ser, como antídoto [...] as velhas técnicas da razão, as artes do Trívio, a lógica, a dialética e a retórica. Pairando a dúvida de que, ao praticá-las ainda com obstinação, se possa vir a ser acusado de impiedade."
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